Uma parte importante da história da ilustração para a
infância, ou da literatura ilustrada para a infância, é constituída por
exemplos de livros-jogo. Objectos que, cumprindo todas as condições materiais e
conceptuais do livro, providenciam uma dimensão interactiva, no sentido mais
imediato do termo, que lhe altera a forma, desdobra sentidos semi-ocultos, o
coloca num qualquer movimento. Os três livros que trazemos aqui à colação são
unidos por um mesmo princípio muito geral: o de empregar filtros de celofane
colorido de modo a revelar (mas curiosamente, ao “contrário”, como veremos) as
imagens ocultas. (Mais)
Como grande parte da crítica moderna, interessa-nos menos
revelar que “significado” é que terão estes livros do que entender a sua
maquinaria operativa. A vantagem de ler estes três livros em conjunto está em
assinalar os empregos diferentes que fazem desta tecnologia (de impressão e apoio
à percepção), levando assim a que surjam mecanismos narrativos bem distintos. Desta
forma, não podemos dizer que “é a mesma coisa” em cada um dos casos, mas bem
pelo contrário, cada uma das experiências, por aproximação ou contraste,
ajuda-nos a compreender melhor a pertinência desses mesmos usos em cada um dos
seus contextos diegéticos. Porém, essa leitura de textos individuais é feita
sob a luz trazida à tona graças à semelhança desses mesmos mecanismos.
Outros livros em mercados internacionais têm surgido que tiram
partido destas formas de fabrico lúdico das imagens, tirando partido de simples
mas eficientes engenharias do papel ou de outros materiais. Não falamos aqui de
pop-ups, mas de livros tais como a série Pijamarama,
de Leblond e Bertrand, os volumes de “scanimation” de R. B. Seder (estes
incutindo um sentido de movimento às imagens), ou (mais próximo em mecanismo) o
recente L’enfant chasseur de A. Parlange.
Mas a relação das imagens em si, no interior de cada livro,
são diferentes, que em termos de construção visual, quer em termos de
pertinência narrativa ou estrutura retórica. Quer o livro de Bestard como o de
Chedru não são propriamente narrativos. Olá
Adeus simplesmente apresenta pares de oposições, e em relações bastante
básicas em termos cognitivos, espaciais, sensoriais, apropriados aos leitores
mais novos que ainda estão a ser aculturados nessas mesmas categorias (alto-baixo,
descer-subir, perto-longe; outras incutindo algum juízo de
valor, como cidade-campo, corajoso-receoso), mas infelizmente nem sempre procurando ir além dessas
mesmas percepções primeiras (um porco é mesmo sujo?, será o fumo das chaminés leve?,
será a oposição fada-bruxa coincidente com a de bondosa-malvada?). O efeito
das imagens, com cada “representação” impressa sobre a “outra” – mas detectáveis
ao mesmo tempo, e com o filtro azul nem sempre funcionando da melhor maneira -,
é de série, mas não propriamente cumulativa, uma vez que essas oposições não
são enquadradas em categorias maiores ou um meta-sentido. Os desenhos simples e
esquemáticos sublinham esse carácter primário e introdutório da obra.
La forêt
enchantée é um pouco mais complexo, já que agrega ao seu sentido lúdico
uma abordagem pedagógica, tal qual noutro par de livros lidos há pouco: ao
perscrutar vários cantos de uma floresta, olhando para os troncos de várias
árvores, a tessitura apertada de uns arbustos, uma colónia de cogumelos, uma
colmeia pendurada, vemos uma rede espessa de informação. Os “objectos” são
delineados com linhas e malhas apertadas, cheios de padrões, e aquilo que se vê
a “olho nu” é a densa vegetação. Depois, conforme usamos as lupas, descobrimos
o que se esconde na floresta: por vezes é a evolução das próprias árvores,
crescendo, enchendo-se de folhas, fazendo despontar as flores, outras os
troncos magníficos, isolados, mas muitas vezes descobrimos os animais que vivem
nas suas tocas, troncos, ocos, colmeias, ninhos, riachos, lagoas, ou então uma
casa escondida, mesmo que nunca descubramos quem lá vive (temos a imaginação).
A organização do texto é simples, já que se tratam de pequenos enigmas a
desvendar com as lupas correspondentes, mas a ordenação das páginas, das cenas,
já alimenta uma ideia de progressão conceptual, que tem a ver com renovação,
tempo, ciclos, renascimentos, do mais humilde dos fungos ao mais imponente dos
grandes mamíferos da floresta.
Finalmente, O meu irmão
invisível já contém uma dimensão narrativa. O livro, na verdade, pede para
ser lido pelo menos duas vezes. As instruções aconselham a ler primeiro com
óculos e depois sem eles, mas parece-nos mais revelador fazer ao contrário: ler
primeiro sem eles, atendo à “realidade consensual” do mundo da vigília, e
depois seguir os passos imaginados pelo irmão mais novo da protagonista, os
óculos ajudando a mergulhar na fantasia dele. Esta acção recompensará a
imaginação do miúdo, e não, ao contrário, “corrigi-la”, parece-nos. Que fantasia
é essa: o irmão colocou uma caixa de papelão na cabeça e, graças a ela, “acha que
é invisível”. A irmã persegue-o, à medida que ele atravessa várias paisagens
urbanas, todas elas cheias de pessoas, e objectos e espaços determinados que,
na óptica dele, são o fundo do mar, a sombra de um dragão, a superfície de um outro
planeta… Com os óculos, porém, apercebemo-nos de que o irmão afinal “é
invisível”. A primeiríssima frase é impressa nas duas cores também, de maneira
que aquele “acha que” desaparece, e confirma a visão do irmão. É essa operação
também que “apaga” parte das imagens – as manchas laranjas e azuis não compõem
cada uma figuras autónomas, como nos outros livros, mas constroem “partes” que
se encaixam (as calças de uma personagem, o cabelo de outra, os cortinados numa
janela, uma mangueira); ao serem “apagadas”, revelam ser as patas de um dragão,
a cauda de uma sereia, medusas no fundo do oceano, uma cobra).
Esta operação é mais difícil do que a contrária, se pensarmos
bem. Tal como no caso de dobragens, lâminas, lamelas, engenharia de pop-up, manchas de cor para se
transformarem sob filtros, etc., é mais fácil esconder a matéria visual para
ele depois ser revelada, do que termos desde logo toda a matéria visível e depois fazer um esforço para a “não ver”.
Um brevíssimo desvio: as dobragens de Al Jafee na revista MAD são exemplos magníficos menos pela sua valência figurativa, o
humor corrosivo, o valor satírico das culturas visadas (se bem que tudo isso
não são ingredientes despiciendos), mas por a imagem “oculta” estar à vista. Não obstante as
distâncias de humor, género e mecanismo, é esse o mesmo princípio que opera em O meu irmão invisível.
Dos três livros, este terceiro é aquele cuja integração de
todos os elementos para um sentido unívoco é a mais óbvia, já que forêt e Olá Adeus têm propósitos mais disseminados. Caso haja oportunidade,
o cruzamento dos três, e até dos utensílios respectivos (lupas, óculos e filtro
duplo) poderá levar a jogo ainda mais complexos, que ultrapassam os desejos dos
livros. Mas essa é a mesmo a função de todos
os livros: servirem de trampolim para olhar o mundo de outra maneira.
Nota final: agradecimentos à Orfeu Negro e à Kalandraka pela
oferta dos volumes respectivos.
Boa tarde.
ResponderEliminarNão consigo encontrar em livraria, o livro La forêt enchantée, de Aina Bestard.
Sff pode indicar-me site seguro, onde possa adquirir?
Grata
Carla Charana
Cara Carla Charana,
ResponderEliminarNão desejando fazer publicidade, mas, se deseja comprar online directamente, a Amazon.fr parece-me ser a escolha mais óbvia. Por outro outro lado, pode também encomendar (se estiver em Lisboa) o livro através da Nouvelle Librairie Française, ali perto do Saldanha...
Boa sorte, e se precisar de mais ajuda, disponha.
Pedro Moura