29 de janeiro de 2016

Nau negra/The Last Black Ship. Fernando Relvas (El Pep)

Finalmente temos acesso a um projecto que estava prometido há algum tempo, o qual nascera num ambiente de crowfunding não muito bem-sucedido, mas que encontrou na editora de Pepedelrey um natural veículo de concretização. Trata-se de uma narrativa de algum fôlego, desenvolvida em ambiente digital, com uma temática histórica, aberta de um modo flexível a questões contemporâneas de repensar a história, a identidade e a comunicação entre os povos. Enquadrado no breve período em que se estabeleceu um vivo comércio entre os portugueses e o Japão, entre um semi-isolamento e o édito que o refecharia ao Ocidente, Nau negra centra-se sobretudo no encontro entre dois homens: um liberto de origem africana, conhecido por Reimau, e um ronin (sem utilizar esse termo) aparente, ambos servindo duas perspectivas diferentes dos mundos que se encontram, estando os portugueses reflectidos nas facetas distorcidas e secundárias desse mesmo encontro. Na verdade, passando-se em torno de Nagasaki, em 1618, já após a tomada de poder de Tokugawa Iesayu, os decretos anti-cristãos, a chegada dos ingleses, etc., já o declínio da presença portuguesa se precipitava, tornando este encontro então num canto de cisne de um poder pouco efectivo… (Mais) 
Fernando Relvas não está interessado de forma alguma numa obra pedagógica, que pudesse ser co-optado por programas escolares ou leituras simplistas da história complexa. Tampouco está interessado numa espécie de name-dropping empregando citações ou cameos de referências mais famosas – por hipótese, episódios com D. João III, Francisco de Xavier, o governador de Tanegashima, a introdução das armas de fogo, do Cristianismo, ou faits-divers como a cozinha… Cria um ambiente específico, corpóreo, em que os factores da vida já decorrem, e é neles que faz surgir as suas personagens. O próprio autor descreve Nau negra como sendo uma “obra de ficção em banda desenhada e não uma tentativa de reconstituição histórica”. Porém, se o autor revela algumas das suas fontes de trabalho - nomeadamente um dos volumes do Professor Charles Boxer, Emérito das Universidades de Londres e Yale, nome básico e fulcral em qualquer bibliografia da história que diga respeito a Portugal e as suas relações no dito Extremo Oriente, e os famosos biombos namban - essa erudição concreta não se traduz por objectos absolutamente concretos na narrativa em si.

 
Não deixa de ser algo desequilibrado haver um movimento de referência e ancoramento (não apenas paratextual, no livro, como extratextual), para depois não se notar esse ancoramento nem na estrutura nem nos pormenores dramáticos. É claro que Fernando Relvas não se inscreve numa tradição à la Eduardo Teixeira Coelho, por exemplo, cujo conhecimento de barcos era tão preciso que acaba por criar mesmo um livro de referência para outros profissionais (A arte de bem navegar), mas não deixa de ser algo afectado assumir esse conhecimento para depois não o transmitir, e deixá-lo somente como uma espécie de “mais-valia” evanescente… Há diálogos estranhos, em torno dos tipos de navio, quase numa esgrima enciclopédica, que tem o mesmo efeito cómico do sketch dos Monty Python sobre os horários dos comboios numa história policial… O desenho, nesses aspectos, não acompanha o rigor que se presume seguir nominalmente.

Contudo, a estrutura geral do livro não é nítida. Vários problemas ocorrem que levam a uma leitura confusa e quase sem direcção. As vozes das personagens não se tornam nunca distintas, e há uma falta de coordenação narrativa ou maior clareza que desestrutura os episódios entre si. Há mesmo momentos em que não sabemos quais são as personagens que estão a falar, sobretudo nas cenas em que nos “afastamos” visualmente, e uma vinheta nos dá a ver um barco rodeado de múltiplos balões… Só com algum esforço chegaremos a atribuir com correcção as falas às suas personagens certas. Mas em termos gerais, no cômputo final, é a própria geometria das relações entre as personagens, e a sua economia dramática que não é clara.

Pensamos que compreendemos a razão deste problema. É até expectável. Trata-se da existência de uma complexa rede de relações, acontecimentos e princípios que se desejam transmitir, e que estão “claros” na mente do autor, mas cuja expressão e concretização numa forma é feita de modo mais acelerado do que a coalescência de que necessita. Assim, para o autor poderá fazer sentido a forma elíptica com que os elementos são apresentados, ou até a ligeira descontextualização ou falta de ancoramento (que chamaríamos de “pedagógico”, então) em que estão mergulhados, mas para o leitor, que cai de chofre afastado desse conhecimento, apenas surgirão fiapos apresentados fragmentariamente, e que apenas muito a custo, se se conseguir chegar a bom porto, se conseguem consolidar. Mesmo nos momentos mais dramáticos, como a captura dos dois protagonistas pelas forças de um nobre japonês, e a consequente resolução, obriga a ler várias vezes para se perceber a ordem e encaixe das acções.

Podia-se imaginar uma qualquer comparação, por exemplo com Cimarronin, de Neal Stephenson et al., cujo tratamento ficcional e pseudo-histórico se ancora na nossa realidade. Poder-se-ia dizer que esse projecto multiautoral e, para todos os efeitos, típico do mainstream contemporâneo norte-americano não terá muitos elementos para aproximar de uma obra individual de um auteur. Seria certo. Mas queremos apenas, nessa aproximação, centrar-nos nas formas narrativas e nos modos de deixar claro os caminhos que se pretendem trilhar com elas. Nau negra não abandona jamais uma certa turvação. Estive um prefácio colocando alguns elementos estabilizadores no início, e a sua estrutura elíptica seria melhor servida, talvez.

A opção por ter o livro em inglês é compreensível em termos de desejo de circulação, mas a falta de uma revisão leva a que certas gralhas ou frases menos bem construídas tenham permanecido, tornando a leitura pouco fluida em termos mesmo da linguagem verbal. Mas quando as personagens descrevem uma cena qualquer – pretérita em relação a esse relato ou mesmo contemporâneas, quando Reimau descreve as mulheres no convés – tornam-se exemplos intensos da razão pela qual o cliché “show don’t tell” é, muitas vezes, acertado.


Sabemos também que, por razões pessoais (e não mera opção estética), o autor passou a empregar instrumentos digitais para o desenho, composição, coloração e legendagem do livro. Nessa frente, porém, também surgem escolhos. A assinatura gestual de Relvas é muito própria, já que ao longo da sua carreira foi sempre um cultor assíduo de uma polarização entre uma abordagem mais naturalista, de traços finos e elegantes, e outra que parte de princípios caricaturais, estilizados pós-franco-belga até… E em muitos casos há um encontro equilibrado entre essas duas forças, como, em parte, neste mesmo caso. Uma vinheta, por exemplo, mostra-nos um marinheiro português a irromper por uma tenda: são visíveis as linhas nervosas (a lápis?) que o compõem, de contornos indecisos e linhas que tanto poderão marcar o seu movimento, o seu aspecto físico ou a urgência interna que o move. Mas a esmagadora maioria dos desenhos, se fincam as personagens às suas fácies específicas, são muitas vezes presas num contorno empedernido. E o trabalho da cor, das texturas, dos momentos em que se pretende mostrar um efeito qualquer de luminosidade, é francamente vulgar, empastelado e até contraproducente em relação ao desenho que lhe subjaz. Há vinhetas que provavelmente serão no exterior mas pouca diferença têm daquelas no interior do navio.

Enquanto objecto que pretende criar uma narrativa alternativa aos rasgados elogios acríticos à história dos “nossos” Descobrimentos, mais levantada enquanto mito do que realidade conhecida, Nau negra é um contributo significativo. Mas a sua estruturação deficitária não o permite cumprir essa misssão de modo mais decidido.
Nota final: imagens digitalizadas enviadas por cortesia do editor. 

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