No tumulto e oferta imensa de banda desenhada nos nossos
dias, é difícil sermos surpreendidos com novas obras, uma vez que existe todo
um espectro de produção que satisfará a nossa necessidade constante de novos
estímulos narrativos, visuais, estruturais, objectuais, das mais diversas
formas. Todavia, é precisamente esse estado de alerta, informado a um só tempo
pelo contexto de recepção, a oferta permanente de novos textos e uma qualquer
capacidade de observação que nos permite identificar, com alguma rapidez,
quando determinado projecto atinge um ponto de equilíbrio raro. Não é uma questão
de transformarmos um qualquer entusiasmo em discursos hiperbólicos de “a melhor
obra jamais lida”, ou em hierarquias esvaziadas de sentido, mas tão-somente
identificar esse raro equilíbrio de um objecto em que tudo concorre na mesma
direcção, tudo se sustenta mutuamente, tudo
ajuda a criar um ponto de solidez absoluta. É aí que encontraremos Curveball, do jovem autor alemão-americano
Jeremy Sorese. (Mais)
Uma sinopse simples - vejam a que o próprio autor tentou nesta meta-bd publicada em jornal - descreverá este livro como um romance de
ficção científica ou de fantasia científica, cuja relação imediata com o nosso
mundo não é particularmente importante. Apenas que estamos perante uma
sociedade em que a dependência da tecnologia é bastante significativa, mas que
os rituais de consumo e produção de energia levam a que haja comportamentos
igualmente diferentes (uma vez que a energia se recicla, as pessoas usam
palmas, por exemplo, para que a televisão funcione…). E existem robots para
tudo, até mesmo em balcões de serviços e restaurante, porteiros e “colegas” de
trabalho. Há também uma guerra qualquer a decorrer entre a nação de todas estas
personagens e outra, mas nunca se percebe da forma mais cabal o que é que esse
conflito significa, quais as suas razões ou noções. Mais, determinadas crises
de picos de energia levam a que haja de vez em quando desastres que tanto podem
danificar uma torradeira como destruir um bloco habitacional inteiro.
O autor dedica uma bela parte do seu trabalho a pequenos pormenores
de espaço. É curioso ver como um louceiro é ocupado, ou como é que as modas se
pautarão nesse hipotético futuro, ou os detalhes de uma carpete, um candelabro,
a fachada de um edifício. Sorese é um dos escritores regulares das versões em
banda desenhada de Steven Universe
(pela Boom Studios). Ora, tendo em conta como essa série criada por Rebecca
Sugar é uma das mais bem conseguidas e bem trabalhadas séries (infanto-juvenis,
mas aqui isso é pouco importante) da contemporaneidade no que diz respeito ao worldbuilding, não é de surpreender que
o autor compreenda a necessidade de providenciar aos leitores com uma ideia
sólida do universo em que estas personagens se movem. E é precisamente nesses
mais pequenos aspectos que a ilusão acaba por surgir mais bem formada.
Mas Curveball, no
fundo, não é uma aventura de ficção científica, nem tampouco está preocupada na
apresentação de uma intriga linear e única. Esta é antes a exploração das
emoções de um grupo muito coeso de personagens. A protagonista é uma jovem
empregada de cruzeiros de luxo, Avery, que divide o seu apartamento com uma
bibliotecária, Jacqueline, e parece estar (ainda) estupidamente apaixonada por
Christophe, que parece menos interessado em manter relações sérias de longa
duração do que assegurar ter um séquito de pessoas interessadas por ele um
pouco por todo o lado e a qualquer hora.
Se existem outras linhas em que podemos dizer que a
narrativa se centra – a vida profissional de Avery, um seu colega que parece
interessado nela, a vida amorosa da própria Jacqueline, o funcionamento da “mota”
de Avery, as crises de energia, o conflito bélico, a vida na cidade, etc. -,
todo o seu âmago se concentra na maior crise de todas: a aparente dependência
de Avery pela validação de Christophe, o qual nem assume a possibilidade de uma
relação nem a descarta totalmente.
Uma história terna e totalmente focada nas emoções, Curveball vai demonstrando como no amor,
as piores ficções são aquelas que nós próprios nutrimos quando começamos a
lançar-nos em roda livre no vazio em relação ao outro. Quando se interpreta
qualquer gesto ou palavra do outro de um modo que se encaixa nas nossas
expectativas. Quando se prevê que as coisas se vão desenvolver da maneira como
esperamos, e sempre que elas se desviam, re-interpretamos como se não fossem
definitivas… e assim estamos sempre caídos numa comédia de enganos, a qual, se
não se tiver tento e se ela não tiver fim breve, se transmuta na melhor das
hipóteses numa melancolia prolongada, na pior numa tragédia. Curveball abandona toda a possibilidade
de descambar num melodrama tonto, mas não deixa de mostrar as escolhas e
comportamentos patéticos de Avery, que de heroína passa a ser vista como afinal
a principal atormentadora de si própria, e Christophe, a razão dessa tortura, apenas
um valdevinos superficial.
É aqui que reside o que se pode entender como verdadeira “maturidade”
de um território, pelo menos no que diz respeito a questões de representação,
narrativa, intriga. Curveball trata
das relações humanas como elas parecem ser na sua mais quotidiana das
existências, nem particularmente drásticas nem incrivelmente mágicas, mas quase
insuportavelmente humanas. A construção daquele mundo diegético a que nos
referimos ao início é reforçada nesta faceta das relações, já que a fluidez dos
géneros, ou dos papéis sexuais, se preferirem, é muito mais líquida, e sem
qualquer tipo de crise ou obstáculo, mas bem pelo contrário, fait accompli desta sociedade próxima futura.
Sorese cumpre esta história de amor dolorosa, do ponto de
vista visual, de modo magnífico. O visual, todavia, implicará aqui neste caso a
própria materialidade do livro, o seu design,
escolha de papel e tintas, etc.: estamos perante uma enorme conquista
igualmente. Impresso maioritariamente a preto, todas as páginas estão debruadas
a um laranja vivíssimo, que também é empregue no interior em momentos
específicos. Ora para dar conta do brilho e flutuações de energia, ecrãs e
néons, o brilho dos olhos de um robot ou a luz de presença de um dispositivo
que todos usam (que vale de telemóvel, chave, cartão de crédito, etc.). É um
pormenor, mas não de somenos, e que traz um grau de calor e de brilho ao
trabalho delicado do autor na figuração.
Neste domínio, Sorese procede a uma espécie de abordagem à
la Tezuka, circa Phoenix, (de que
Sugar é também herdeira, tal como Urasawa, entre outros), em que concorrem
noções de simplificação, plasticidade, um alto grau de inventabilidade e
construção das personagens que lhes incutem personalidades imediatas, uma
maleabilidade de comportamento visível na mais pequena das expressões. Uma das
referências dadas por Sorese é Al Hirschfeld, o que é notório precisamente nos
contornos fluidos das figuras, e o modo como se dá o casamento entre a grafite,
tinta-da-China aplicada e aguadas, incutindo texturas de variada gradação.
Nota final: agradecimentos a M. T., pelo empréstimo do
livro.
Olá Pedro,
ResponderEliminarA tua descrição desta obra fez-me recordar o universo das Locas do Jaime Hernandez. À parte das diferenças gráficas óbvias, se a banda desenhada pudesse ser transmitida unicamente por ambientes emocionais circunscritos, teríamos lá todos os elementos da California punk da "mecânica" Maggie: uma descrição gráfica do "retrofuturismo", exacerbação passional de um ego adolescente ainda à procura de validação, alguma ambiguidade sexual (algo que não abordaste, provavelmente por entenderes não encontrar (?), mas aparentemente presente na obra).
- Avery divide o apartamento com Jacqueline e está estupidamente apaixonada pelo seu colega de trabalho Cristophe que está mais interessado em si próprio que numa relação séria.
- Maggie divide o apartamento com Hopey e está estupidamente apaixonada pelo seu colega Rand Race que está mais interessado em si próprio que em desenvolver uma relação séria.
Também não falta sequer o ponto de contacto da questão mecânica, o funcionamento da mota que parece absorver a Avery, uma relação interrompida entre Avery e Jacqueline (?), o conflito bélico, a vida na cidade, aspectos também explorados na obra do brother Hernandez.
Quando resumes o foco da história, escreves que tudo se centra na dependência emocional de Avery por Cristophe, um valveninos (typo de valdevinos?), e na ambivalência de sentimentos deste face à Avery, que assim fornece a sua personalidade ainda em construção do alimento emocional que ocupe os vazios interiores que a sua juventude ainda tem por preencher. Mais Maggie the Mechanic não poderia ser :-). O Jeremy Sorese refere alguma vez estas influências pro-solares notórias? E tu, (e pergunto sinceramente) fugiste propositadamente à questão?
Obrigado,
Aquele Abraço
José
Olá, José Sá.
ResponderEliminarA tua leitura e comparação é excelente, e confesso que não me havia recordado dela. Não podemos ter a nossa "biblioteca" na cabeça a toda a hora, e haverá momentos de menor capacidade de associação. Mas isso leva a que sejam outros leitores a fazerem-na, e parece-me extremamente acertada. Não posso estar seguro se nas entrevistas que li ao autor, se ele cita a obra do JH, mas é por demais, dessa leitura, que o "espaço" inaugurado pelas "Locas" está aqui continuado de uma forma mais ligeira e visualmente mais espectacular (no sentido de efeitos, não de juízo de valor intrínseco). Seja como for, ele parece falar abertamente das suas influências a todos os níveis, raízes, etc.
Sobre a ambiguidade sexual falei, sim, mas talvez de uma forma tão sucinta e oblíqua que não se perceberá? Não será vergonha admitir que, nas primeiras páginas, pensava que Avery se tratava de uma personagem masculina, depois pensei ser feminina, e finalmente apercebi-me que, neste mundo, a fluidez é de facto aceite (havemos de lá chegar). Mas olhando para trás, compreender que essas questões já estavam presentes em "Locas", e de uma forma mais "tranquila" (?) apenas a reforçam como obra maior. Por alguma razão existem de facto "clássicos". Muito bem observado, sem dúvida.
Corrigi a gralha do "valdevinos", mas agora corto a tua correcção, até certo ponto.
Não fugi à questão, portanto, apenas não se me tinha colocado à frente. Obrigado por isso. E não gosto de ser entusiasta de forma despropositada, gritando "este livro é o melhor que já li", ou coisa que o valha, que é sempre um disparate - é preciso tempo para isso, e mais uma vez o "Locas" vem à tona - mas este "Curveball" é um bom romance.
Obrigado, Pedro
Tens razão Pedro, as minhas desculpas :-)
ResponderEliminarTinhas abordado a questão da ambiguidade, definição circularmente ambígua, o que nos leva em função disso a compreendê-la de formas distintas. Estava eu mais orientado para a questão da orientação sexual do que para a da definição da identidade de género e não reparei que muito acertadamente e de forma bastante evidente apontaste esse aspecto nesta obra.
AA
José
Pelo que entendi, tens o livro? Excelente escolha.
ResponderEliminarAgora... se existisse um local em Portugal que estivesse atento à banda desenhada internacional e mostrasse alguma coisa...
Pedro
Não tenho, não, só a Maggie. Despertou-me a atenção a crítica extremamente positiva que fizeste do livro, apesar da sua curveball.
ResponderEliminarEu por mim estou bem servido, não sei se tens reparado, já frequento regularmente um sítio em Portugal atento à banda desenhada internacional ;-), mas compreendo que possas sentir alguma monotonia.
José