25 de março de 2016

White Boy in Skull Valley. Garrett Price (Sunday Press)

Quando falámos dos vários volumes em torno de Little Nemo in Slumberland, por ocasião de uma entrevista concedida por Peter Maresca, editor da Sunday Press, aventámos que se falaria deste volume também monográfico, dedicado à recuperação total de uma série de banda desenhada de meados dos anos 1930 dos Estados Unidos, e que passa a fazer parte dos textos em circulação que expandem a sua história. Uma vez que tecemos tantos comentários e experimentámos noções sobre o que pode significar esta permanente expansão da memória da banda desenhada, este entrosamento de “novos” elementos num corpus ainda a descobrir, o peso e relação que terá na equação desse mesmo entendimento histórico (que se falou a propósito das antologias de Dan Nadel, por exemplo, ou do próprio Maresca), focaremos tão-somente o livro em si. (Mais) 

White Boy é uma série de bandas desenhadas de Domingo, logo publicada a cores, que viu a luz do dia entre 1933 e 1936 (centena e meia de páginas), mas apenas agora regressa no seu esplendor maximal, como apenas a Sunday Press tem conseguido cumprir. Ainda que não fosse inédito nem único, tinha o formato inusual de ser uma meia-página, portanto apresentada horizontalmente (Maresca inclui uma folha suplementar para percebermos algumas alterações a que foi sujeita quando adaptada a páginas verticais inteiras). Foi também o único trabalho de banda desenhada de Garrett Price, que se tornaria mais conhecido enquanto ilustrador de romances para jovens leitores e como um dos mais profícuos contribuidores para a New Yorker, tendo feito algumas das suas mais icónicas e melancólicas capas, numa veia que seria continuada gerações mais tarde por Sempé, Ware e Tomine.

Na verdade, White Boy é um conjunto estranho. Num artigo em três partes no The Comic Journal, que não apenas complementa o que Maresca inclui no livro como aconselhamos vivamente, Paul Tumey chama-a de “trilogia”, o que não é totalmente descabido mas é misterioso. A série iniciou-se a 1 de Outubro de 1933, intitulada “White Boy” e centra-se na vida de um jovem rapazinho branco capturado por uma tribo fictícia, e a sua adaptação a uma nova vida naquelas “paragens”. Essa primeira parte está então pouco preocupada em construir propriamente uma história englobante, ainda que haja “episódios” ou “momentos” identificáveis, do que em construir ambientes, quase numa perspectiva antropológica, se for possível empregar tal termo neste contexto de divertimento e ficcional.



Esta série é o que torna toda esta obra memorável, é o que explica a sua recorrente aparição em antologias ou memórias da arte, e o que justifica este novo volume. O artigo de Tumey é detalhado em relação a todas as linhas de força que tornam esta pequena saga de integração do rapaz branco na vida índia magnífica, sobretudo por haver um respeito profundo pela experiência e cultura dos nativos americanos. Um outro aspecto que julgamos ser incontornável nessa apreciação é o relacionamento entre o jovem White Boy e a squaw (termo empregue na altura, mas que hoje deveríamos evitar), Starlight. Não há um único momento em que ambos professem explicitamente o amor que sentem um pelo outro, mas é nas suas acções, atitudes e relacionamento com os outros, que o leitor se apercebe de como esse elo se forma, medra e se torna mesmo invencível (excepto pela “transformação editorial”, como veremos).

Não deixa de ser divertido ler múltiplas vezes como uma dada série western é “diferente do habitual”, fale-se de seja o que for (já havíamos debatido este ponto a propósito de uma curta história de N. Duarte e J. Sequeira em F(r)icções, e aí remetemos). White Boy é também um western “fora do comum”, a todos os níveis: visual, estrutural e narrativamente, mas acima de tudo na forma belíssima como se estende para com o “outro”, não deixando de criar essa mesma distância, como é evidente. Mas respeitando-o, e não simplesmente subsumindo-o ao papel do “bruto selvagem”.

Porém, depois, a série sofre alterações quase inexplicáveis e descamba sucessivamente. De uma semana para outra, em Abril de 1935 – na nossa leitura, de uma página para a outra, lado a lado, aumentando a estranheza - toda essa primeira parte desaparece para dar espaço a uma nova série, intitulada “White Boy in Skull Valley”, ancorada na contemporaneidade, em que a única constituinte comum é a existência de um rapaz chamado Bob White. De resto, torna-se numa aventura de cowboys e vilões, com um protagonista mascarado, perseguições e tiroteios (ausentes antes) e chega mesmo a haver um episódio passado num “mundo perdido”, com dinossauros e criaturas fantásticas. A “última parte”, iniciada a Abril de 1936, chamada “Skull Valley”, apresenta tão-somente uma sucessão de piadas passadas num rancho turístico dirigido por uma personagem anteriormente secundária, e as alterações são de tal ordem que surpreenderão o leitor, levando-o a questionar-se se pode de facto ser a mesma pessoa. Mas pode-se dizer que não era, já que o próprio Price se havia sentido desiludido que apenas sentiria alívio ao terminar a série. Se as partes finais são ligeiramente mais convencionais, oscilando entre a tira de aventuras western, e depois um certo humor doméstico, sem o mesmo charme que os primeiros anos, essa primeira parte compensará a sua descoberta.

Maresca aponta a provável pressão editorial para estas transformações radicais, mas não há certezas definitivas neste momento. Apesar de quase todas as grandes séries famosas (Mutt & Jeff, Krazy Kat, Gasoline Alley, Popeye, Captain Easy, etc.) terem atravessado transformações similares, a série sofreria com elas de modo negativo: monumento irrealizado, esses primeiros anos podem e devem ser preservados pela maravilha que são. White Boy não deixa de ser um daqueles títulos tipicamente descritos como “tesouros escondidos”, agora postos a descoberto e ao alcance, tal como se falará da obra de Verbeek ou de H. Crowley.

Uma das características dessa magnífica primeira parte é o modo como retrata a vida na natureza do Oeste americano, que o autor conhecia da sua meninice, tendo crescido no Wyoming, terra “quintessencial” dos ranchos de gadaria. Ainda que a primeira parte se teça em torno de um mítico e romanticizado século XIX, adocicado necessariamente para poder tornar-se um texto para jovens leitores, essa estratégia não é todo displicente se compreendida à luz da poeticidade das flânerie de Domingo de Gasoline Alley de Frank King, o mergulho na paisagem de um Krazy Kat, ou as metamorfoses plásticas dos trabalhos de um Feyninger.

Não sendo nativo americano, o mecanismo narrativo do autor é colocar um protagonista branco, o jovem que ficará conhecido por “White boy” – nunca é revelado o seu nome e, mais tarde na tira, já depois de alterado o enquadramento narrativo, assume esse nome como patronímico, acrescentando um “Bob”, como indicado -, no seio de uma tribo de índios da planície (também jamais são identificados especificamente, sendo conhecidos por “Rainbow Indian”, nome inventado). Porém, rapidamente a inclinação para a fuga esvanece-se, e a da vingança jamais se forma, tornando a primeira parte da série um retrato do quotidiano ao natural da vida daquela cultura: como caçar animais para comer, como se domesticam cavalos, qual a relação com os bravos Sioux em territórios contíguos, como se passa um Inverno, como se contam histórias, como se brinca, ama, teme. Esta é uma daquelas obras que ajuda a corrigir aquela visão de uma mera associação cronológica de “amadurecimento” de todo um território criativo, e antes a perceber a incrível matização cuja responsabilidade recai nas especificidades de cada obra e não em categorias externas a ela, seja a do tempo, do género ou de desenvolvimentos de circulação e recepção até.
Visualmente, White Boy mereceria um outro post. A grande vantagem da Sunday Press é que o respeito pelas características formais originais preservam a visão do artista, na relação com a composição, a elegância do design da vinhetas e dos logos mutáveis da série, a disposição e ligeireza da legendagem, os pormenores “étnicos” que decoram e expandem a ambiência da história.

Uma vez que Price não estava preso a nenhuma fórmula em particular em “White Boy”, cada Domingo ou “arco narrativo” era tratado de forma singular. Existe um episódio, por exemplo, que surge quase como uma colecção de cromos de animais detectáveis na planície. Outros tiram partido total do espaço providenciado pela prancha. São muitos os momentos em que o autor inicia as tiras com duas vinhetas contíguas, separadas mas de cenário unido. E as estratégias visuais da colocação das personagens nos cenários, a estratificação de planos, de ângulos e distâncias, do uso de vinhetas “mudas”, da alteração de registos de humor e de diálogos, o emprego subtil do conhecimento real dos animais, paisagens naturais, objectos, cultura, torna White Boy numa tapeçaria variadíssima e texturada e rica, seguramente distinta de muitos outros trabalhos da época ou vindouros.

Mais, o autor pode oscilar entre um traço finíssimo e rápido, ora com figuras esquálidas e estilizadas, ora mais arredondadas e plásticas, e uma abordagem mais texturada com sombras e contraste, tão próximo dos autores naturalistas seus contemporâneos. Price é um desses autores que torna útil a noção de “heterogeneidade gráfica”, de Smolderen-Groensteen. Em termos cromáticos temos também uma tal diversidade de abordagens, que é difícil pautar a série com apenas uma descrição. Price, treinado como pintor, é um mestre no controle da paleta permitida pala quadricromia, tal qual King ou Feyninger.

As “partes” mais tardias, infelizmente, caem em formas mais expectáveis, composições convencionais, e dinamismos mais formulaicos. O próprio desenho de Price – que no futuro ganharia tantos espaços distintos para uma multiplicidade de tema e abordagem – acaba por ganhar alguns aspectos empedernidos, se bem que o equilíbrio entre o naturalismo e a estilização jamais o abandone.

Essas são dimensões que muitos editores se esquecem, e a alteração da gramagem ou outra qualidade do papel, a atenção para com a correcção da impressão, a relação do texto e o formato final, muitas vezes “magoa” essa desejada recuperação. Ficar-se alegre com gestos medíocres é um acto pateta, mas ver estes outros gestos de excelência faz-nos ter alguma esperança nessa tarefa.

É claro que a sua re-apresentação num volume poderia levar àquele perigo de confundir a história da banda desenhada, subsumindo tudo à fórmula do “romance gráfico” ou ao “livro”, que discutimos a propósito de Os doze de Inglaterra. Todavia, o formato imenso, a excelência material, a contextualização histórica e documental providenciada (ainda que sumária, directa e concludente), contribui a transformar este volume num exemplo da mais alta bitola para a consideração do “arquivo”. Existirão várias estratégias para poder levar a este contributo (recentemente, em Portugal, a revista Visão lançou uma série de objectos que remetem a uma parte da história editorial da banda desenhada em Portugal, curiosa e diversa, mas cheia de escolhos: má reprodução material, alterações de formato incompreensíveis, e uma descontextualização absoluta), é certo, mas a Sunday Press continua a fornecer-nos com um dos mais preciosos modelos para a edição de material histórico, pelo menos no que diz respeito ao seu território: “clássicos” ou “tesouros ocultos” da banda desenhada de imprensa norte-americana dos primeiros quartéis do século XX.

Nota final: agradecimento a F.A., pelo empréstimo do volume. 

2 comentários:

  1. José Sá5:07 da tarde

    Olá Pedro,

    A tua página é uma dor de cabeça para quem não souber combater alguma tendência para a prodigalidade bibliotecária. Parece um casino aberto 24/7 sem lista de impedimento a inimputáveis. Estas edições não são baratas, bem sabes, e mesmo assim vais continuar a atirá-las à nossa cara mais umas semanas?
    Já tinha dado uma espreitadela em sites de compra e este livro é belíssimo, algumas pranchas parecem estabelecer "diálogos de vanguarda" com as paisagens de Coconino :-). Tenho-o na lista há algum tempo, mas primeiro estou mais orientado para virar um livro ao contrário ;-).
    Mais a sério, os Little Nemo da Sunday Press são um tesouro em qualquer biblioteca, mesmo que tenhamos que abdicar de uma ou duas prateleiras para que lá encaixem e de prescindir de metade duma colecção de super-heróis da Levoir. A perenidade da emoção após folhearmos este tipo de livros é dificilmente comparável a qualquer outra leitura neste meio e é facilmente alcançável pelo sacrifício de prazeres efémeros que por vezes repetimos, e é só quanto à repetição que me refiro, sem justificação.

    Obrigado Pedro,
    AA
    José

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  2. Olá. Não, estas edições não são baratas, mas penso que todo o euro ou dólar é muito bem empregue. De facto, o esforço para obter algumas destas edições é hercúleo, mas não me posso queixar, uma vez que consigo obter alguns livros pelas editoras e, como neste caso em particular, recorrer a empréstimos. Eu próprio tenho o "Society is Nix" na lista de compras, e espero que seja ainda este ano que farei essa aquisição.
    Quando falas de metade de uma colecção da Levoir - compração que entendo ser jocosa, estamos a falar de coisas diferentes e pouco importam as hierarquias; a colecão actual tem coisas porreiras - referes-te ao espaço ocupado ou ao preço? Bom, os do "Little Nemo" custam quase uma colecção inteira da Levoir (o que apenas abona a favor da Levoir, dada a qualidade material dos livros). E espaço, depende da forma como se os guarda. Acho piada ver às vezes pessoas discutir o facto de os livros não terem um tamanho standard, o que muito mostra o tipo de cultura em que estão enfiadas. É óbvio que também procuro ter alguma lógica que me ajude a poupar espaço, mas direi apenas que os livros que estão na mesma prateleira dos da Sunday Press (os maiores) não estão sozinhos...
    Quanto a escolhas, cada um saberá o que preferirá comprar, claro, mas se o do Garrett Price é lindíssimo, sem dúvida alguma, o do Verbeek é um outro tipo de importância...
    Não quero ajudar a tomar decisões!
    pedro

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