14 de março de 2016

Lisboa é very very typical. AAVV (Chili Com Carne)

O último volume da colecção LowCCCost, da Chili Com Carne, dá continuidade a uma visão particular de tipos de trabalho de banda desenhada e de discursos em torno da realidade social. Apesar das diferentes angulosidades de cada um dos projectos, poder-se-ia dizer que Kassumai, Zona deDesconforto e Boring Europa e, agora, Lisboa é very very tipical, procuram escavar um dos mais importantes elementos que usualmente caracterizam a cultura associada ao zine: a identidade. (Mais) 
 Lisboa nasce a partir de Zona de Desconforto, mas dá-lhe a volta. Ao passo que esse outro volume era constituído por testemunhos de autores portugueses de locais “lá fora”, pelas mais variadas razões, temos agora a perspectiva de cidadãos estrangeiros da realidade portuguesa (que acaba por se ver reduzida a Lisboa, por falta de contributos sobre outras cidades, apesar delas serem mencionadas). Se bem que poderão encontrar mais informações noutros locais, indiquemos os autores envolvidos, alguns dos quais poderão ser mais ou menos conhecidos, conforme acompanhem fanzines, edições independentes ou projectos colectivos. Parecendo uma anedota, temos autores quer da vizinha Espanha (Begoña Claveria, Elias Taño e Matina Manya) quer do longínquo Japão (Bnk Ink), do país-irmão Brasil (Taís Koshino e Téo Pitella) e, de outra parentela, a Roménia (Nicolae Negura). Da Europa ainda vêm atravessam vozes de França (Alain Corbel), Suíça (Aude Barrio), Croácia (Anica Godevarica), enquanto que da América do Sul atingem-nos visões da Argentina (Alejandro Levacov) e Colômbia (Dileydi Florez). Mas recordemo-nos, todas as perspectivas nascem de uma estadia menos ou mais prolongada em Lisboa, quer estudando, quer trabalhando, quer simplesmente ou até mais importantemente vivendo.

É inevitável que procuremos sempre algum grau de magnificência na cidade em que habitamos, uma espécie de desejo em redimirmos esse espaço – um traço em que julgamos ser possível vislumbrar uma comunidade a que pertencemos – dos pecados que também não deixamos de identificar. E é aí que esta atitude de “forasteiro”, de um outro olhar externo, permite uma totalmente desapaixonada coça. Lisboa e Portugal aqui não são tratados de forma alguma como paisagens de postais ilustrados (ainda que existam momentos que rocem essa dimensão), como parece ser cada vez mais a sua “missão” presente, na euforia do capitalismo turístico. O problema não está na “entrada de divisas” ou no “estímulo à economia”, ou ainda ao “empreendorismo”, mas a eventual desfiguração de uma cultura própria em busca de soluções mais ou menos formulaicas “para inglês ver” (ou outras nacionalidades). Essa realidade é abordada por alguns autores, ora desvendando outras experiências ora revelando alguns dos problemas dessa formulação, ora ainda desviando a atenção para outro aspectos, como o dos preconceitos e ignorâncias dos portugueses face a outras sociedades, a mais real falta de cultura e oportunidades de trabalho no nosso país e outras deficiências estruturais.

Tal como ocorre noutros projectos, e regressando à ideia de identidade, estes autores não estão de forma alguma interessados em apresentar uma perspectiva objectiva. Aliás, os instrumentos que empregam servem mesmo para sublinhar a ilusão de uma perspectiva dessa natureza. Tomando uma posição pessoal e implicada, os autores estão menos interessados em falar das coisas tal como elas são – seja a cidade de Lisboa e os seus habitantes, Portugal e os seus empregos, etc. – do que abordarem um tema mais lato – por hipótese, a precariedade, o preconceito, o racismo, a herança colonial, a massificação do turismo, as diferenças culturais, etc. – mas revelando, ao mesmo tempo, o quão importante é aquele que relata. Isto é, que quem fala é um foco importante na maneira como algo é falado.

Isto leva a dois resultados consequentes. Por um lado, cria um rosto real, tangível, endereçado que nos permite entrar em diálogo imediato com o que está a ser discutido. Não se procura nenhum tipo de concordância imediata, mas antes uma compreensão dessa mesma perspectiva. Assim, a Lisboa ou Portugal que emerge destes retratos pode revelar-se menos gloriosa do que muitas vezes “nós” pintamos. Em segundo lugar, essas mesmas discussões não têm uma tonalidade pedagógica e institucionalizada – lá está, supostamente objectiva. Reforçando o aspecto dialogal.

Se, de acordo com a inscrição na colecção LowCCCost, se poderá chamar Lisboa de uma antologia de “diários de viagem”, “travelogues”, eles esão menos interessados em descrever e representar as viagens em si, as hipotéticas paisagens exóticas ou os choques culturais dos encontros proporcionados, do que a emergência de experiências profundamente pessoais, que não apenas mudaram a vida dos seus autores enquanto aqui estavam (Alain Corbel, em várias ocasiões, foi autor “nacional” em muitas mostras, outra autora está casada com um português, outros fizeram de Lisboa o seu palco para o início de carreira, etc.) como poderão, haja leitura e modelo, dos próprios leitores.

Nenhuma das curtas histórias é particularmente dramática. Téo Pitella fala-nos de umas boleias entre Lisboa e Porto. Dileydi Florez partilha connosco as experiências enquanto trabalhadora de um call center em Portugal (e outras empresas). Uma mão-cheia de autores mostram-nos os percursos diários e triviais da sua vida na cidade, revelando espaços arreigados dos mais usuais guias. Outros exploram as relações mais imediatas, mostrando que são as pessoas que, na sua mistura, ou salvam ou condenam uma visão de um sítio. Seja como for, os episódios agregados nestas páginas não conduzem a nenhum tipo de declaração absoluta e final, nem sequer propõem ideias de progresso ou desenvolvimento. No então, se considerarmos algumas lições da crítica cultural Sianne Ngai (de Ugly Feelings), entenderemos que este tipo de “desaceleração drástica da linguagem, esta representação retórica da fatiga” é bastante significativamente, inclusive de modo político. “Ao mostrarem o que é que obstrui uma resposta estética ou crítica, porém, [os sentimentos] de pasmo e de aborrecimento pedem-nos que nos perguntemos que tipo de formas de resposta a nossa cultura nos providencia, e em que condições as providencia”. Isto quer dizer que, menos do que contrapormos simplesmente uma visão contrária, ou uma resposta que comece por “mas olha que”, ou “pelo menos isto”, ou “mas vocês também coiso”, é olharmos bem fundo para nós mesmos.


Jogando um pouco com o título do Boring Europa, e coma língua inglesa baseando-nos num outro trabalho, de que daremos conta atempadamente), é como se bore aqui fosse menos “aborrecer” do que “perfurar”, procurando precisamente a revelação da condições dos discursos normativos e, assim e consequentemente, ainda que de forma tão tranquila, oferecer alternativas.  

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