23 de abril de 2016

Os figos são para quem passa. João Gomes de Abreu e Bernardo P. Carvalho (Planeta Tangerina)

Num tempo em que perigosamente a distribuição e acesso a todas as facetas da vida na Terra é compartimentada por direitos de propriedade estanques, sopesar alternativas de relacionamento não é apenas importante como compulsório. A patenteação de produtos agrícolas, até hoje “livres” e “naturais”, a privatização da água, a re-confirmação de fronteiras intransponíveis, a hierarquização de importâncias conforme o poder (económico, militar, social), e a relativização cultural de valores éticos que, sendo esgrimíveis, devem ser claros, são apenas alguns dos escolhos lançados na tempestade dos tempos contemporâneos. Uma pequena distância crítica e mecanismos ficcionais, mesmo que simples (mas não simplistas), é de uma utilidade extrema. (Mais) 

Que têm estes assuntos a ver com uma história de um urso com fome, que estaciona perto de uma figueira, esperando comer o figo que vai amadurecendo? Tudo. Se existem livros que supostamente tentam discutir temas contemporâneos de uma forma pouco subtil e acabam por cair numa série de armadilhas simplistas, como foi o caso de um livro com outro urso, é curioso como esta fábula parece querer responder a temas muito prementes dos nossos dias, mas sem precisar de arvorar essa ligação directa.


Este urso não é “mau”, mas a partir do momento em que pensa numa ideia fixa, e nova naquele mundo (seria possível interpretar este livro também como sobre a introdução de uma cronologia utilitária que não existia até ao momento), é incapaz de ver as coisas de outro modo. Apenas a custo consegue ultrapassar essa ideia, e com a criatura, em princípio, mais humilde de todas. Há lições, sem dúvida.

Bernardo Carvalho mostra aqui imagens feitas todas a partir de papéis recortados, de cores primárias e secundárias planas e baças, em silhuetas e pequenas combinações que fazem os animais e as paisagens. Deixando bem visíveis a passagem das lâminas, a sobreposição não-colada, há uma materialidade rosca que traz uma ambiência de work-in-progress apropriada à temática. Pela sua velocidade e simplicidade de execução, é notória a forma como o ilustrador tira partido precisamente desses princípios para mostrar como as mais diversas expressões nascem dos contrastes efectivos das variações. Todas as cenas são apresentadas em páginas duplas, havendo casos de desdobramento do tempo/acção numa mesma unidade visual, e os textos espraiam-se de modos diferentes, instilando uma fluidez completa entre eles e as imagens.  


Directo herdeiro de Esopo, na estrutura, forma textual e ritmo, este conto de João Gomes de Abreu (que já havia escrito A Ilha para a Planeta Tangerina), de um urso esfomeado que se deve confrontar com outras criaturas que lhe passam a perna, num tempo de total mobilidade e convívio entre os animais, vem ofertar aos seus leitores um simples relato que lhes cumpre desvendar que leituras fazer. É possível lê-lo somente no seu nível primário, e diverte. Mas é também possível desdobrá-lo em significados mais latos. Ao iniciar-se com “No princípio, o mundo era só um. Tudo era de todos, ninguém pertencia a nada, nada pertencia a ninguém.”, há desde logo uma diferença do mundo tal como ele é agora que promete não apenas uma utopia da qual emergimos como outra que se poderia reinstaurar.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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