Num tempo em que perigosamente a distribuição e acesso a todas
as facetas da vida na Terra é compartimentada por direitos de propriedade
estanques, sopesar alternativas de relacionamento não é apenas importante como
compulsório. A patenteação de produtos agrícolas, até hoje “livres” e “naturais”,
a privatização da água, a re-confirmação de fronteiras intransponíveis, a
hierarquização de importâncias conforme o poder (económico, militar, social), e
a relativização cultural de valores éticos que, sendo esgrimíveis, devem ser
claros, são apenas alguns dos escolhos lançados na tempestade dos tempos
contemporâneos. Uma pequena distância crítica e mecanismos ficcionais, mesmo
que simples (mas não simplistas), é de uma utilidade extrema. (Mais)
Que têm estes assuntos a ver com uma história de um urso com
fome, que estaciona perto de uma figueira, esperando comer o figo que vai
amadurecendo? Tudo. Se existem livros que supostamente tentam discutir temas contemporâneos
de uma forma pouco subtil e acabam por cair numa série de armadilhas
simplistas, como foi o caso de um livro com outro urso, é curioso como esta
fábula parece querer responder a temas muito prementes dos nossos dias, mas sem
precisar de arvorar essa ligação directa.
Este urso não é “mau”, mas a partir do momento em que pensa
numa ideia fixa, e nova naquele mundo (seria possível interpretar este livro
também como sobre a introdução de uma cronologia utilitária que não existia até
ao momento), é incapaz de ver as coisas de outro modo. Apenas a custo consegue
ultrapassar essa ideia, e com a criatura, em princípio, mais humilde de todas. Há
lições, sem dúvida.
Bernardo Carvalho mostra aqui imagens feitas todas a partir de
papéis recortados, de cores primárias e secundárias planas e baças, em
silhuetas e pequenas combinações que fazem os animais e as paisagens. Deixando
bem visíveis a passagem das lâminas, a sobreposição não-colada, há uma
materialidade rosca que traz uma ambiência de work-in-progress apropriada à temática. Pela sua velocidade e
simplicidade de execução, é notória a forma como o ilustrador tira partido
precisamente desses princípios para mostrar como as mais diversas expressões
nascem dos contrastes efectivos das variações. Todas as cenas são apresentadas
em páginas duplas, havendo casos de desdobramento do tempo/acção numa mesma
unidade visual, e os textos espraiam-se de modos diferentes, instilando uma
fluidez completa entre eles e as imagens.
Directo herdeiro de Esopo, na estrutura, forma textual e
ritmo, este conto de João Gomes de Abreu (que já havia escrito A Ilha para a Planeta Tangerina), de um
urso esfomeado que se deve confrontar com outras criaturas que lhe passam a
perna, num tempo de total mobilidade e convívio entre os animais, vem ofertar
aos seus leitores um simples relato que lhes cumpre desvendar que leituras
fazer. É possível lê-lo somente no seu nível primário, e diverte. Mas é também
possível desdobrá-lo em significados mais latos. Ao iniciar-se com “No
princípio, o mundo era só um. Tudo era de todos, ninguém pertencia a nada, nada
pertencia a ninguém.”, há desde logo uma diferença do mundo tal como
ele é agora que promete não apenas uma utopia da qual emergimos como outra
que se poderia reinstaurar.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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