La Crypte Tonique é uma das
mais estimulantes revistas sobre banda desenhada de que temos
conhecimento no momento, à margem da produção académica
propriamente dita. Órgão oficial da alfarrabista-galeria homónima
de Bruxelas, dirigida por Philippe Cappart, cada número pode mudar
drasticamente de formato, tamanho, tema e forma de trabalho. Se houve
números dedicados a autores e/ou obras (François Walthéry e Felix
the Cat), a maior parte deles dedica-se a dimensões mais
alargadas, estruturais da banda desenhada: o seu comércio em
Bruxelas, a questão da legendagem, a representação da Idade Média
ou dos negros, e até a “retranscrição gráfica do movimento”... (Mais)
Este número é igualmente temático e
está associado a uma exposição/venda que tiveram há recente,
dedicada em exclusivo àquilo que se conhece em França e na Bélgica
como “petit format”, isto é, livrinhos-revistas de banda
desenhada mais barata, em papel de inferior qualidade, capas também
em papel ou cartão mais fino, e usualmente ocupada por uma banda
desenhada mais atreita a géneros como o policial, a pornografia, o
terror, a banda desenhada de guerra, etc. em editoras tais como a
Elvifrance, Imperia, Arédit, Belle-France, etc. A exposição
(Chambre Obscure) era mais focada numa linha de produção,
mas a revista abre-se a todo um universo que, as mais das vezes, se
encontra fora das histórias mainstream da banda desenhada.
Não são apenas certas obras mais obscuras e experimentais que ficam
fora da narrativa normalizadora dos “grandes autores”, mas também
precisamente todo aquele material produzido massivamente que colocava
as rotativas a trabalhar incessantemente e que enchiam quiosques,
escaparates de estações de comboio, e, mais tarde, mesas de
saldos... Material “cheap”, como diz, usando o vocábulo inglês,
Alec Severin. E que as casas mais prestigiadas muitas vezes combatiam de forma directa [veja-se o delicioso cartaz feito por Franquin jogando Spirou contra esses formatinhos, na última imagem deste post].
A colecção de material deste volume é
heteróclita, começando com um texto sobre os “padrões” da
banda desenhada, discutindo-se fórmulas de dobragem de papel e
encadernação, que forçam a formatos mais económicos e lógicos na
gestão dos materiais, passando pelos primeiros desenvolvimentos
tecnológicos que ditariam a sorte da criação de narrativas em
imagens, e desembocando em muitas das categorias ainda existentes nos
nossos dias: o álbum, a tira, o broadsheet e o pulp,
etc.
Depois segue-se uma história sumária
e divertida das tiras por Roy Crane [ver acima], um exemplo dos processos de
trabalho de criação para um pequeno romance petit format, os
processos de retocagem que adaptavam material norte-americano, quer
de tiras quer de comic books, para os formatos franceses (aqui
ao lado temos um exemplo de um comic book do Sargento Rock,
de Kubert, para uma edição da Arédit, em 1968) e uma série de
entrevistas aos mais diversos agentes desta imensa cultura (de
autores a editores, passando por livreiros e funcionários dos vários
passos necessários do trabalho), que revelam, pelo seu conjunto,
questões de circulação, venda, recepção crítica, cultura
quotidiana, e aspectos relativos aos negócios, criação, adaptação,
etc.
E todas estas páginas ilustradas com
as mais diversas imagens mostrando as tipologias e tamanhos de tiras,
publicações, formatos empregues no mundo ocidental em relação à
banda desenhada, de uma forma mais ou menos organizada (a tira
norte-americana, as edições italianas), assim como exemplos
aumentados quer da boa quer da má arte que povoava estas páginas.
De uma forma mais tangencial, é certo,
é curioso notar como alguns destes livrinhos, apesar da sua “baixa”
recepção (mesmo com autores que seriam mais conhecidos depois, de
Buzelli a Manara, Magnus e Alec Severin), são candidatos
significativos para a complexificação da ideia da emergência
“literária” e de “temas sérios” na banda desenhada. A
esmagadora maioria dos temas eram tratados um bocado a martelo, o
humor era chão, as versões paródicas algo empasteladas, mas de
quando em vez lá parece surgir uma pequena pérola interessante.
Ainda que o francês Al Severin seja um autor mais recente, o seu
Story of War, um in-8 de 150
páginas, desenhado em apenas 9 dias quando o autor tinha 19 anos, e
publicado em 1985 pela Michel Deligne, parece ser um forte
concorrente a mais um elo numa cadeia imensa. Todavia, o segredo do
sucesso de pensamento de Les patrons de la bande dessinée
– é óbvio que o título pretende jogar com a polivalência da
palavra – está menos em “descobrir” segredos ou objectos
esquecidos, do que reavaliar a forma de coordenar, na história e na
teoria, alguns objectos em detrimento de outros.
Como não pode deixar de ser, a grande
lição principal está na linha de um artigo-chave de Pascal
Lefèvre, a de que o formato tem a sua importância nas escolhas
estéticas e literárias dos autores, sem negar que a materialidade
terá um papel decisivo na forma como também será vendido,
circulado e, consequentemente, recebido. Isso justifica terminar a
revista com uma revisitação de J.-C. Menu ao seu Plates-Bandes,
um livro que colocava questões difíceis sobre os modos oportunistas
das grandes casas aproveitarem certas invenções dos pequenos
editores, até ao ponto contemporâneo da confusão dos formatos,
mais do que “liberdade”, sobretudo por não estar aliada a um
programa sincero e genuíno de construção de sentido das obras em
si. A palavra “diversidade” tem um gosto bem distinto nas frases
de Menu... Também não é de surpreender que essas palavras estejam
“rodeadas” com imagens mostrando todo o escopo material do
Building Stories de Ware, visto como ponto maximal da vontade
e necessidade de adequar o instrumento à voz, e não o contrário.
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