Esta caixa é um projecto-companheiro
de uma exposição patente no museu Hunterian, da Universidade de
Glasgow, co-organizada por um dos curadores do museu, Peter Black, e
por Laurence Grove, um investigador académico da Universidade de
Glasgow que tem estudado as relações entre texto e imagem, com uma
especialização na emblemática e na banda desenhada (mormente de
expressão francesa, em torno da qual tem livros e artigos
importantes). A caixa possui cinco publicações fisicamente
separadas, mas que pretendem dar conta das várias dimensões
tentadas nessa exposição, ao mesmo tempo que alertam para dois
princípios: por um lado, o de que a relação da banda desenhada com
o leitor é directa, material, física, exigindo um contributo activo
de construção do significado (qual das publicações ler primeiro?,
que relações construir entre elas?), por outro, a de qualquer
narrativa desejada é sempre composta por linhas diferentes que podem
ter desenvolvimentos distintos conforme a perspectiva de aproximação. (Mais)
A ideia de desarrumar a história, ou
impedir um discurso linear é muito curioso, tendo em conta termos
dois historiadores a criarem esta exposição e noções. Pois revela
uma compreensão fluida, complexa e dialéctica entre aquele que
constrói o discurso histórico (as suas noções, os seus métodos,
os seus valores) e a suposta pilha de factos do passado. Assim sendo,
mesmo não o citando, esta é uma atitude benjaminiana, na ideia de
que “olhamos para o passado através do telescópio do presente”.
Os autores propõem uma pergunta
simples para dar início ao seu percurso: qual é a primeira banda
desenhada da história? A resposta imediata que dão é as páginas
do jornal Glasgow Looking Glass, que iniciou a sua publicação
em 1825, e duraria apenas alguns números mão não só seria
extremamente influente no seu espaço imediato, a Escócia, como por
outros pontos na print culture britânica e, por consequência,
todo o enquadramento da banda desenhada (entendida de forma lata,
narrativas por imagens). Mas ao mesmo tempo, os autores sabem que
este tipo de exercícios é problemático em termos de filosofia da
história, da ontologia da arte discutida, e envolve toda uma série
de problema de metodologia e até de pensamento crítico. Todavia,
ainda, eles sabem igualmente que é uma pergunta que permite dar
início a um pensamento historicizante, que tanto permite “olhara
para trás” como “para a frente”. Se nos é permitido,
recorda-nos algo que tentámos articular quando da construção do
nosso blog escolar…
Essas ideias são então a parte
teórica, discursiva, que lhes permite criar a linha vermelha que
estabelece o percurso das peças que apresentam na exposição (e
nestas publicações), utilizando o acervo do museu e
complementando-o com outras obras emprestadas. Sendo uma exposição
criada em Glasgow, é natural que haja uma incidência particular na
produção local (nacional), com o trabalho de Martin Boyce, vencedor
do Turner Prize, Christine Borland, nome central dos Young British
Artists, dos anos 1990, e o de Frank Quitely, na linha da frente.
Estando Grove envolvido, os seus textos são muito claros sobre as
vantagens mas também os escolhos em criar uma mostra, supostamente
dedicada à banda desenhada, que bebe das mais diversas referências
do encontro entre texto e imagem, narrativas por imagem e cultura da
imprensa, etc., mas mais uma vez isso deve ser entendido como
utilizando o material disponível no museu. Assim, veremos desde uma
estela egípcia do século VI aEC a peças da Pop Art, passando por
várias página de manuscritos iluminados medievais, uma tela de
Rembrandt, colagens de Paolozzi, as gravuras de Picasso Sueño y
mentira de Franco, os romans-collage de Max Ernst, um sem
fim de exemplos de livros, jornais e panfletos ilustrados, objectos
mais próximos do nosso entendimento de banda desenhada, serigrafias
e litografias de Spiegelman, e, claro, a obra de Quitely.
Como se entende desta imagem, por
exemplo, temos lado a lado a peça Mastaba, de James
Rosenquist, de 1971, uma peça tridimensional que mescla litografias
e uma espécie de ampulheta espalmada, uma das serigrafias de Warhol
das séries Campbell’s Soup, de 1968, um exemplar aberto do
Glasgow Looking Glass, de 1825, e a arte original de um poster
de Quitely associado à saga do Sandman de Neil Gaiman, de
2003. A ideia é criar uma narrativa imediata mas não-cronológica
entre estas peças (e as outras), recordando algumas das questões
levantadas sempre neste tipo de exposições que tentam trazer as
produções mais propriamente associadas a esta cultura do impresso e
com contornos populares e produções da dita “alta cultura” (que
teve momentos significativos em várias exposições famosas, da
Bande dessinée et figuration narrative de 1967 à High &
Low de de 1990, e a que nós próprios tentamos responder na
SemConsenso).
As cinco publicações ofertadas nesta
caixa tentam explicitar não apenas as escolhas mas quais as linhas
de ligação entre as peças. Comic Invention inclui então o
seguinte (a ordem é aleatória). 1. um fac-simile, mas incompleto,
num fólio, do Glasgow Looking Glass [aqui mostramos um exemplar real, de um leilão], com um pequeno poema
jocoso-explicativo de Gareth K. Vile de como funcionam algumas das
narrativas visuais deste número, assim como as características
sociais desta publicação. 2. Comic Invention: Owners Workshop
Manual, escrito por Grove, que pode funcionar como o guia
principal do projecto, tornando explícitas as questões
metodológicas e históricas envolvidas, contextualizando as
discussões de teoria e análise de banda desenhada, e estipulando
uma organização temporal mais coesa utilizando o Looking Glass,
mas igualmente a obra de Töpffer, como eixo organizativo: não sendo
um contributo decisivo à teoria e história da banda desenhada
(citando, porém, as melhores fontes), é uma boa introdução ao
público em geral. 3. The Invention of Comics, assinado pelos
dois curadores, com Grove à frente, e apresentando as peças que
mais perto estarão da cultura da banda desenhada se entendida
enquanto “arte da narrativa visual”, ou da “narrativa visual
impressa”, ou que arregimenta a caricatura, a crítica social, as
fortes interacções criativas texto-imagem, o desenho esboçado,
etc. Cada spread mostra uma imagem e um texto explicativo,
estabelecendo uma cronologia linear, mas aberta a toda uma série de
questões estruturais, sociais e tecnológicas. 4. Comics &
Culture, também pelos dois curadores, mas desta vez com Black ao
leme, uma vez que há uma maior concentração, e não-cronológica,
nas peças “artísticas” (Rosenquist, Bordland, Boyce, Hervé
Télémaque, Robert Rauschenberg, Colin Self, David Hockney), ainda
que haja produções da “cultura bêdê”: Quitely, Spiegelman, os
War Cartoons de Archie Gilkison, mas também um exemplar de
uma revista Disney italiana e um desenho de Iwao Takamoto, concept
artist central da Hanna-Barbera nos anos 1960. 5. The Art of
Frank Quitely, um pequeno guia, escrito por Sha Nazir e Vile, de
formato quadrado, da obra deste artista escocês, apresentando
interpretações formais do seu trabalho em “lições” curtas e
individuais.
Como todo e qualquer gesto grandioso e
transversal, em termos cronológicos e disciplinares, da banda
desenhada, Comic Invention traz à baila tantos elementos
novos como ideias já antes repetidas. E desses elementos novos,
alguns são estimulantes – como o contributo de cada vez mais
elementos para uma linha contínua da história da cultura da
imprensa, ou a forma precisa como Grove explica como é que os
discursos em torno de “a primeira banda desenhada” funcionam
ideologicamente, etc. – mas outros são problemáticos – não
ficamos chocados que digam que a criatividade de Frank Quitely é
“idêntica à de um Picasso ou um Warhol”, mas será que essa a
direcção desejada para a discussão dos valores intrínsecos à
arte da banda desenhada? Afinal de contas, nem sequer Picasso é
Warhol ou Warhol é Picasso. E o arrolar de obras de arte de um
determinado círculo, seja ela a Pop Art norte-americana dos anos
1960 seja a arte (sobretudo instalação site-specific)
contemporânea britânica/escocesa, em que medida contribui para o
fortalecimento da inscrição social da banda desenhada? E o
isolamento desta, num entendimento mais disciplinar, em apenas
autores escoceses, em que medida “abre” o seu escopo? A leitura
destes materiais, no fundo, acabam por criar mais questões…
aceitemo-las como um projecto de um museu local (por mais importante
que seja) para um projecto temporário (por mais estimulante que
seja), mas tenhamos sempre um distanciamento crítico em relação ao
que não consegue cumprir.
Em termos materiais, também há uma
dimensão enfraquecida. A vinda de uma caixa fazia pensar num
projecto de qualidade material e de design, se não idêntica,
pelo menos à sombra do Building Stories de Chris Ware (modelo
explícito de Comic Invention): mas cada publicação é
simplesmente um caderno dobrado e agrafado em dois pontos (excepto o
fólio dobrado), impresso num papel couché de uma gramagem
significativa, que tornam tudo numa espécie de colecção de
panfletos comerciais. Mesmo o design do interior é por vezes
confuso, e com escolhas pouco elegantes de composição, distribuição
e organização dos textos. Para algo que promete falar da “invenção
da banda desenhada”, a inventividade não está na linha da frente.
Dito isto, não há dúvida de que é
um contributo a um alargado diálogo sobre a importância do
pensamento histórico desta arte, assim como sobre o papel que ela
tem na cidade das artes.
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