18 de abril de 2016

Comic Invention. Laurence Grove e Peter Black (BHP Comics)

Esta caixa é um projecto-companheiro de uma exposição patente no museu Hunterian, da Universidade de Glasgow, co-organizada por um dos curadores do museu, Peter Black, e por Laurence Grove, um investigador académico da Universidade de Glasgow que tem estudado as relações entre texto e imagem, com uma especialização na emblemática e na banda desenhada (mormente de expressão francesa, em torno da qual tem livros e artigos importantes). A caixa possui cinco publicações fisicamente separadas, mas que pretendem dar conta das várias dimensões tentadas nessa exposição, ao mesmo tempo que alertam para dois princípios: por um lado, o de que a relação da banda desenhada com o leitor é directa, material, física, exigindo um contributo activo de construção do significado (qual das publicações ler primeiro?, que relações construir entre elas?), por outro, a de qualquer narrativa desejada é sempre composta por linhas diferentes que podem ter desenvolvimentos distintos conforme a perspectiva de aproximação. (Mais) 

A ideia de desarrumar a história, ou impedir um discurso linear é muito curioso, tendo em conta termos dois historiadores a criarem esta exposição e noções. Pois revela uma compreensão fluida, complexa e dialéctica entre aquele que constrói o discurso histórico (as suas noções, os seus métodos, os seus valores) e a suposta pilha de factos do passado. Assim sendo, mesmo não o citando, esta é uma atitude benjaminiana, na ideia de que “olhamos para o passado através do telescópio do presente”.


Os autores propõem uma pergunta simples para dar início ao seu percurso: qual é a primeira banda desenhada da história? A resposta imediata que dão é as páginas do jornal Glasgow Looking Glass, que iniciou a sua publicação em 1825, e duraria apenas alguns números mão não só seria extremamente influente no seu espaço imediato, a Escócia, como por outros pontos na print culture britânica e, por consequência, todo o enquadramento da banda desenhada (entendida de forma lata, narrativas por imagens). Mas ao mesmo tempo, os autores sabem que este tipo de exercícios é problemático em termos de filosofia da história, da ontologia da arte discutida, e envolve toda uma série de problema de metodologia e até de pensamento crítico. Todavia, ainda, eles sabem igualmente que é uma pergunta que permite dar início a um pensamento historicizante, que tanto permite “olhara para trás” como “para a frente”. Se nos é permitido, recorda-nos algo que tentámos articular quando da construção do nosso blog escolar…

Essas ideias são então a parte teórica, discursiva, que lhes permite criar a linha vermelha que estabelece o percurso das peças que apresentam na exposição (e nestas publicações), utilizando o acervo do museu e complementando-o com outras obras emprestadas. Sendo uma exposição criada em Glasgow, é natural que haja uma incidência particular na produção local (nacional), com o trabalho de Martin Boyce, vencedor do Turner Prize, Christine Borland, nome central dos Young British Artists, dos anos 1990, e o de Frank Quitely, na linha da frente. Estando Grove envolvido, os seus textos são muito claros sobre as vantagens mas também os escolhos em criar uma mostra, supostamente dedicada à banda desenhada, que bebe das mais diversas referências do encontro entre texto e imagem, narrativas por imagem e cultura da imprensa, etc., mas mais uma vez isso deve ser entendido como utilizando o material disponível no museu. Assim, veremos desde uma estela egípcia do século VI aEC a peças da Pop Art, passando por várias página de manuscritos iluminados medievais, uma tela de Rembrandt, colagens de Paolozzi, as gravuras de Picasso Sueño y mentira de Franco, os romans-collage de Max Ernst, um sem fim de exemplos de livros, jornais e panfletos ilustrados, objectos mais próximos do nosso entendimento de banda desenhada, serigrafias e litografias de Spiegelman, e, claro, a obra de Quitely.

Como se entende desta imagem, por exemplo, temos lado a lado a peça Mastaba, de James Rosenquist, de 1971, uma peça tridimensional que mescla litografias e uma espécie de ampulheta espalmada, uma das serigrafias de Warhol das séries Campbell’s Soup, de 1968, um exemplar aberto do Glasgow Looking Glass, de 1825, e a arte original de um poster de Quitely associado à saga do Sandman de Neil Gaiman, de 2003. A ideia é criar uma narrativa imediata mas não-cronológica entre estas peças (e as outras), recordando algumas das questões levantadas sempre neste tipo de exposições que tentam trazer as produções mais propriamente associadas a esta cultura do impresso e com contornos populares e produções da dita “alta cultura” (que teve momentos significativos em várias exposições famosas, da Bande dessinée et figuration narrative de 1967 à High & Low de de 1990, e a que nós próprios tentamos responder na SemConsenso).

As cinco publicações ofertadas nesta caixa tentam explicitar não apenas as escolhas mas quais as linhas de ligação entre as peças. Comic Invention inclui então o seguinte (a ordem é aleatória). 1. um fac-simile, mas incompleto, num fólio, do Glasgow Looking Glass [aqui mostramos um exemplar real, de um leilão], com um pequeno poema jocoso-explicativo de Gareth K. Vile de como funcionam algumas das narrativas visuais deste número, assim como as características sociais desta publicação. 2. Comic Invention: Owners Workshop Manual, escrito por Grove, que pode funcionar como o guia principal do projecto, tornando explícitas as questões metodológicas e históricas envolvidas, contextualizando as discussões de teoria e análise de banda desenhada, e estipulando uma organização temporal mais coesa utilizando o Looking Glass, mas igualmente a obra de Töpffer, como eixo organizativo: não sendo um contributo decisivo à teoria e história da banda desenhada (citando, porém, as melhores fontes), é uma boa introdução ao público em geral. 3. The Invention of Comics, assinado pelos dois curadores, com Grove à frente, e apresentando as peças que mais perto estarão da cultura da banda desenhada se entendida enquanto “arte da narrativa visual”, ou da “narrativa visual impressa”, ou que arregimenta a caricatura, a crítica social, as fortes interacções criativas texto-imagem, o desenho esboçado, etc. Cada spread mostra uma imagem e um texto explicativo, estabelecendo uma cronologia linear, mas aberta a toda uma série de questões estruturais, sociais e tecnológicas. 4. Comics & Culture, também pelos dois curadores, mas desta vez com Black ao leme, uma vez que há uma maior concentração, e não-cronológica, nas peças “artísticas” (Rosenquist, Bordland, Boyce, Hervé Télémaque, Robert Rauschenberg, Colin Self, David Hockney), ainda que haja produções da “cultura bêdê”: Quitely, Spiegelman, os War Cartoons de Archie Gilkison, mas também um exemplar de uma revista Disney italiana e um desenho de Iwao Takamoto, concept artist central da Hanna-Barbera nos anos 1960. 5. The Art of Frank Quitely, um pequeno guia, escrito por Sha Nazir e Vile, de formato quadrado, da obra deste artista escocês, apresentando interpretações formais do seu trabalho em “lições” curtas e individuais.

Como todo e qualquer gesto grandioso e transversal, em termos cronológicos e disciplinares, da banda desenhada, Comic Invention traz à baila tantos elementos novos como ideias já antes repetidas. E desses elementos novos, alguns são estimulantes – como o contributo de cada vez mais elementos para uma linha contínua da história da cultura da imprensa, ou a forma precisa como Grove explica como é que os discursos em torno de “a primeira banda desenhada” funcionam ideologicamente, etc. – mas outros são problemáticos – não ficamos chocados que digam que a criatividade de Frank Quitely é “idêntica à de um Picasso ou um Warhol”, mas será que essa a direcção desejada para a discussão dos valores intrínsecos à arte da banda desenhada? Afinal de contas, nem sequer Picasso é Warhol ou Warhol é Picasso. E o arrolar de obras de arte de um determinado círculo, seja ela a Pop Art norte-americana dos anos 1960 seja a arte (sobretudo instalação site-specific) contemporânea britânica/escocesa, em que medida contribui para o fortalecimento da inscrição social da banda desenhada? E o isolamento desta, num entendimento mais disciplinar, em apenas autores escoceses, em que medida “abre” o seu escopo? A leitura destes materiais, no fundo, acabam por criar mais questões… aceitemo-las como um projecto de um museu local (por mais importante que seja) para um projecto temporário (por mais estimulante que seja), mas tenhamos sempre um distanciamento crítico em relação ao que não consegue cumprir.

Em termos materiais, também há uma dimensão enfraquecida. A vinda de uma caixa fazia pensar num projecto de qualidade material e de design, se não idêntica, pelo menos à sombra do Building Stories de Chris Ware (modelo explícito de Comic Invention): mas cada publicação é simplesmente um caderno dobrado e agrafado em dois pontos (excepto o fólio dobrado), impresso num papel couché de uma gramagem significativa, que tornam tudo numa espécie de colecção de panfletos comerciais. Mesmo o design do interior é por vezes confuso, e com escolhas pouco elegantes de composição, distribuição e organização dos textos. Para algo que promete falar da “invenção da banda desenhada”, a inventividade não está na linha da frente.


Dito isto, não há dúvida de que é um contributo a um alargado diálogo sobre a importância do pensamento histórico desta arte, assim como sobre o papel que ela tem na cidade das artes.  

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