Este é mais um desses projectos que
poderá ser entendido como de crossover, no sentido em que não
é apenas um projecto de produção transnacional como onde duas
linguagens supostamente distintas se nutrem uma da outra para criar
um espaço de encontro. Com efeito, se se acreditar que existe uma
divisão clara entre a banda desenhada ocidental, mormente
francófona, e japonesa (não existe), poder-se-iam arrolar
características antagónicas ou diversas para depois nos
surpreendermos com a sua passagem. Todavia, essa seria uma visão
redutora e não de continuidade e de cruzamentos recorrentes. Ainda
assim, aceitar-se-á que os modos de produção e circulação da
banda desenhada, em termos gerais, é algo diferente entre esses dois
países, o que influencia algumas das práticas, mesmo ao nível do
desenho, mas seguramente que na forma de comunicação com o público. (Mais)
Este não é o primeiro projecto em que
um autor francês é convidado a contribuir com material original
para uma publicação japonesa, sendo os nomes de Baru e de Baudoin
pioneiros nessa relação, já para não falar de Frédéric Boilet,
que assentou arraiais naquele país durante largos anos. Neste caso,
foi a revista mensal Ultra Jump que convidou de Crécy a criar
uma longa narrativa (mais de duzentas pranchas) que respondesse aos
elementos usualmente procurados nesse título shonen. É desta
maneira que o autor francês, já habituado a criar histórias com
personagens bizarras, adaptou a sua assinatura a alguns princípios
narrativos e de prestação a essa vontade.
La république du catch é um
desses objectos que muito dificilmente se poderia descrever como
sendo somente de “fantasia”: existem elementos fantásticos,
impossível, ficcionais, mas ao mesmo tempo eles tecem-se em torno de
uma aparente trama realista, presa às circunstâncias do mundo real,
o que apenas aumenta ainda mais a estranheza desses elementos. Nesse
aspecto, Crécy não está distante de muitos dos praticantes da
mangá shonen contemporânea. A história centra-se num
pequeno personagem algo patético, um homenzinho mínimo, chamado
Mario, que mal disfarça a careca com os poucos fios de cabelo
compridos. Trabalha numa loja onde vende pianos, mas os quais não
sabe tocar. Nessa mesma loja habita, parece, um pinguim, virtuoso
desses mesmos instrumentos, e que toca divinamente Bach, Prokofiev,
Debussy, etc. Esta loja encontra-se numa Nova Iorque mítica, mais
construída por trechos de ficção do que da realidade social. E é
uma cidade dominada pelos espectáculos de luta livre (wrestling
ou, em francês, catch), o mais coloridas e teatrais
possíveis. Mas há mais. Estes lutadores são todos a força da
máfia italiana-americana que controla a cidade, cujo líder é, na
verdade, um bebé dotado e inteligente, por sinal, sobrinho de Mario.
Isto significa que inadvertidamente, o pobre protagonista é
arrastado sem querer para uma luta intestina em nome de propriedade,
poder e economia.
A acção que empurra Mario a uma
aventura que não lhe condiz levá-lo-á a atravessar a barreira do
“mundo real” (apesar de já termos um pinguim pianista) para a
esfera do fantástico, no qual não apenas encontrará um inimigo
mas, sobretudo, os seus aliados: todos os fantasmas das fraquezas
humanas, desde o de um ciclista que perdeu todas as competições em
que entrou, a uma peruca animada feita do cabelo que várias pessoas
se viram obrigadas a vender para sobreviver, e uma mulher-fantasma
que acumula todas as doenças conhecidas ao ser humano... entre
muitos outros que depois surgirão.
De Crécy baseou-se para estas
criaturas nas famosas figuras dos yokai, que de modo algo
redutor podemos descrever como muitas das figuras advindas da crença
shintoísta de que não haverá objecto que não seja animado por um
espírito interior, por sua vez capaz de ganhar um “corpo”, mesmo
que fantasmático. Ora Crécy dá corpo, portanto, a toda uma série
de fraquezas humanas que, unidas, e depois mobilizadas em torno do
pobre Mario, ganham um novo fôlego nas suas vontades de decisão e
missão.
Em termos actanciais, não estamos
perante uma obra demasiado complexa. Bem pelo contrário, o autor
tira partido das estruturas mais clássicas e expectáveis dirigidas
ao público mais jovem, envolvendo inclusive uma figura de interesse
amoroso, a Bérénice, lutadora e promessa de campeã de luta livre,
que é o imenso e quase inalcançável objecto de desejo de Mario, e
sua perdição. Dizemos quase, pois os eventos instalarão
grandes dúvidas na pessoa de Bérénice, na equação em que se
encontra entre os “seus” - esbirros do líder mafioso, o bebé
Enzo – e torná-la-ão possivelmente numa arma ainda mais temível,
depois do combate final entre os lutadores e os fantasmas.
A obra ainda possui outros elementos
que parecem estender a história para outros desenvolvimentos,
sobretudo emocionais (a comovente história da origem de Enzo e as
implicações que tem com a sua “família”), e termina de uma
forma clivosa, súbita e suspensa, que faz acreditar haver uma
promessa de continuidade, mas ao mesmo tempo permitindo que sse
não-final seja estranhamente satisfatório na sua abertura.
Como seria de esperar, de Crécy tira
partido da sua linha fluida e plasticamente mutável para, ao
explorar a necessária celeridade de execução a que o ritmo de
publicação da mangá exige, conseguir cumprir não apenas os
prazos necessários como igualmente de uma certa dinâmica e redução
do “campo visual” (que aqui deve ser entendido como toda a
matéria legível que se apresenta na página). A composição
é sobretudo regular, e clássica, e nos momentos em que as vinhetas
panorâmicas permitem, as grandes paisagens urbanas – a cidade, a
fábrica no meio do rio, a luz do sol ou da lua sobre os telhados –
ganham aquela solidez diáfana que o trabalho de linhas finas e
nervosas, depois mergulhadas em aguadas apenas aparentemente de
execução rápida e impensada, conhecidas do autor.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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