Este será um brevíssimo texto sobre este pequeno álbum do
autor japonês, que tem a particularidade de ser um nome conhecido e admirado
entre os leitores de scanlations
(isto é, edições “piratas” acessíveis na internet, com traduções e edições amadoras,
o que não significa necessariamente com qualidade menor), mas cuja circulação
por edições comercialmente acessíveis é bem menor. Na verdade, esta edição, da
italiana Hollow Press/UDWFG, que se dedica a uma linha negra da criação de
banda desenhada (horror, críptico, gótico, monstruoso, etc., e a que
regressaremos em breve quando falarmos da revista homónima), é a primeira em
língua inglesa a solo (história curtas haviam sido publicadas, como “Punctures”,
em Secret Comics Japan, da Viz, em
2000) após alguns títulos de Kago em francês. (Mais)
Se Suehiro Maruo é o autor que introduziu no Ocidente uma
certa elegância e sofisticação no estilo conhecido por “ero guro”, ou “eortismo
grotesco”, Kago parece querer retirar toda a possibilidade de redenção
estética, filosófica ou narrativa a esse mesmo território. Quer dizer, o
trabalho de Maruo, mesmo quando envolvia episódios macabros ou radicais no que
diz respeito ao sexo, quer sempre que esses elementos surjam como um limite
ultrapassado que estilhaça um certo grau de hipocrisia social, papéis normativos,
expectativas históricas. Que no cinema japonês terá sido tentado por autores
tais como Hiroshi Teshigahara (A mulher
nas dunas), Yasuzo Masumura (Blind
Beast) e Nagisa Oshima (Império dos
sentidos). Kago, por seu lado, abandona-se num humor quase abjecto,
infantil, nas transformações e episódios que propõe, e por isso atinge graus de
desconforto maiores. Pessoalmente, a leitura da sua história curta “Suck It” é
ainda uma das mais repugnantes alguma vez cumpridas.
O autor é conhecido por dezenas de histórias curtas que
envolvem, por vezes ao mesmo tempo, cenas de sexo explícito e extremo,
escatologia, e corpos humanos torturados em formas maquinais fantásticas, o que
o alia sobremaneira a outro mestre do horror “biológico” contemporâneo do
Japão, Junji Ito (e, em menor grau, Hitoshui Iwaaki). Mas se Ito insiste
sobretudo em dimensões orgânicas, a abordagem de Kago pauta-se pela inclusão da
tecnologia. Industrial Revolution não
é diferente. Tratando-se de uma história curta, e sem matéria verbal, começamos
no que parece ser um campo de “funny animals”, em que pequenas criaturas
antropomórficas parecidas com roedores, e kawai,
se depararão com o que parecem ser corpos de adolescentes humanas, numa escala
imensa, e aproveitar-se-ão desses corpos, como peças, e cruzando-as com peças
verdadeiramente maquinais, para desenvolver toda uma nova civilização. Essa
seria a parte correspondente a “Industrial Revolution”.
Este aspecto de absoluta e abjecta objectificação dos corpos
humanos (mormente de adolescentes humanas) recordará algumas das estratégias de
outro autor japonês, Usamaru Furuya.
Mais uma vez, onde Furuya emprega humor, que “doura a pílula” do horror
demonstrado, Kago é mais directo e sem contornos facilitadores. Daí que a
segunda parte se lance directamente num conflito, com uma outra espécie,
aparentada a insectos, invada a civilização dos roedores com a sua própria
maquinaria, até ao ponto de vermos cenas de holocausto e mortandade horrenda, e
cujo ápice é o combate inexorável apenas entre as máquinas-humanas.
É possível que fazer alguma interpretação mais profunda
destes corpos alterados à luz da teoria dos ciborgues, do pós-humano de Haraway,
ou até mesmo da ideia dos corpos-sem-órgãos e as máquinas celibatárias/de
guerra de Deleuze e Guattari , daria azo a um excelente ensaio, descobrindo a
forma como Kago ausculta os mais negros e indizíveis desejos no nexo da carne,
da tecnologia, e da sociedade de consumo. Todavia, este livro em particular, se
bem que se possa aliar nessas linhas a toda a obra do autor, é um conto breve e
simples.
Até mesmo a forma de compor as páginas é relativamente
convencional, tendo em conta algumas das incríveis formas que Kago experimentou
para criar narrativas mais complexas. De novo, “Suck it” apresenta-se de uma
forma curiosa, documental, e “Abstraction” é um tour de force maior que deveria estar na linha da frente de
qualquer consideração sobre banda desenhada experimental e que pensa
profundamente a sua própria estrutura e ontologia. Mas Industrial Revolution and World War é presentada de forma inequívoca,
sem rodeios.
Sem comentários:
Enviar um comentário