O filósofo
alemão Walter Benjamin distinguia duas formas de experiência, que
não apenas eram expressas por duas palavras alemãs diferentes – a
saber, Erfahrung e Erlebnis - como se associavam a
quadros diferenciados que se dividiam num momento pré-moderno e
moderno. Em variadíssimos dos seus escritos, desde os ensaios
publicados em vida ao seu grande e inacabado projecto das Arcadas,
a um só tempo Benjamin lamentava o desaparecimento da Erfahrung
como celebrava também a modernidade. De maneira forçosamente
sumária, expliquemos que a Erfahrung está associada a uma
profunda relação entre a memória e comunidade, o que permitia que
ela mesmo fosse narrada como um fluido (o seu ensaio sobre “O
contador de histórias” é fundamental para entender isso); pelo
contrário, a Erlebnis expressaria uma experiência mais
fragmentada e imediata, cuja forma de expressão se encontra no
“choque” das notícias curtas, rápidas e sucessivas, as quais na
era da internet ganham uma velocidade, mas igualmente uma
volatilidade, exponencial. É esse estímulo exagerado que leva à,
nas suas palavras, “atrofia” da Erfahrung, abrindo espaço
para aquele torpor cujo nome medieval é a acédia. Uma
espécie de passividade, apatia, derrotismo até, que impede a pessoa
de reagir de modo mais acabado à situação em que se encontrará.
Um aborrecimento derrotador, em vez de um aborrecimento entendido
como oportunidade de contemplação da vida e compreensão profunda
da condição humana. (Mais)
A razão
deste aparente estranho desvio teórico dever-se-á ao facto de que
Chiisakobé nos parece ser um livro que ganharia se fosse
tentada uma leitura ensaística com algumas dessas noções na mente.
Não se trata de uma obra a ler em busca da intriga central e da sua
resolução, mas antes um mecanismo narrativo que coloca essas
tensões entre modos de experiência, de desejo de re-inscrição
numa comunidade (ou família, se preferirem), de atrofia e reforço,
de acédia e movimento, de inacção e de reacção. Shigeji
é um jovem arquitecto, que parece ter feito estudos aproximando-o de
uma escola desconstrutivista (Zaha Hadid e Frank Gehry são citados
como modelos), mas por alguma razão desistiu de dar continuidade a
essa tarefa e voltou às raízes, trabalhando como carpinteiro-chefe
na empresa de construção (mais tradicional, em madeira). O primeiro
volume, porém, abre num momento de terrível comoção: um imenso
incêndio não apenas destruiu parte da empresa como vitimou os pais
de Shigeji, tornando-o o responsável maior pela sobrevivência da
empresa e dos seus assalariados. Esta linha, já de si dramática e
que impele Shigeji a lançar-se num frenesim nem sempre bem
conduzido, vai embater com o segundo factor da intriga. Uma jovem
mulher, vizinha e amiga de infância, e também recém-órfã, Ritsu,
vem trabalhar para ele, mas traz com ela mais cinco órfãos, miúdos
de várias idades e muito desconfiados de todos os estranhos. Uma vez
que o orfanato ardeu igualmente, unem-se nesse infortúnio, mas sem
criar alianças duradouras. Esse será um longo processo. Descrito
desta maneira, quase pareceria estarmos perante ou um melodrama
tremendo, em que o tema da orfandade seria explorado das formas mais
sofridas possíveis, encaixando os sofrimentos e isolamento e falta
de esperança ou desconfiança (sobretudo da parte das crianças) uns
nos outros de forma exponencial, ou então uma qualquer comédia de
costumes. Mas Mochizuki não segue nenhum desses caminhos em termos
de tom.
Chiisakobé
é na verdade uma adaptação de um romance histórico do mesmo nome
de Shugurô Yamamoto (de 1957), mas transpondo a intriga para o Japão
contemporâneo. Não podendo fazer uma leitura comparada, apenas
poderemos imaginar que isto não será somente uma alteração para o
conforto do autor da banda desenhada, como talvez uma maneira de
colocar questões sobre certas situações no Japão actual, criando
uma imagem ligeiramente diferente daquela usualmente veiculada pela
cultura popular ou pela propaganda da fortuna daquele país (não
sabemos, portanto, se aquela divisão entre modernidade
e pré-modernidade
faria sentido numa análise mais cuidada). Pelo modo tranquilo como a
história progride, em que mesmo os avanços ou surgimentos de novos
factores dramáticos (um incêndio que destrói uma importante obra
em curso, as insistentes tentativas de apoio financeiro da parte de
rivais-amigos, recusadas, o aparecimento de mais uma personagem
feminina que vem destabilizar a estranha relação de
aproximação-distância de Shigeji e Ritsu, etc.) não são
apresentados de modo bombástico, é como se Mochizuki quisesse antes
que os leitores compreendessem o humanismo de todas estas
personagens, muitas vezes perdidas nos seus botões. Com efeito,
temos muitas vezes acesso a balões de pensamento, algo que tem
estado desusado numa banda desenhada mais contemporânea um pouco por
todo o lado, mas que continua a ser um instrumento particularmente
interessante para criar linhas de tensão entre o que é “dito” e
o que “fica por dizer”. Ao longo de diálogos, esparsos e curtos,
de vez em quando um balão de pensamento “interrompe” esse fluxo,
ofertando ao leitor uma oportunidade de criar uma camada adicional de
significado. É assim que nos é permitido apercebermos, sobretudo em
relação ao casal protagonista, as suas cogitações em torno de
questões éticas e existenciais.
Este livro,
de que o terceiro volume está já anunciado para tradução e edição
pela Lézard noir, uma editora francesa que nos tem dado a acesso a
uma produção alternativa de banda desenhada, apresenta um Mochizuki
algo diverso daquele que conhecíamos de obras anteriores, e o coloca
mais próximo de certos autores maiores como Tsuge ou Abe, pelo modo
como faz tecer toda a intriga em torno de episódios triviais da vida
das personagens, ou Taniguchi, permitindo que uma certa qualidade
contemplativa se estenda de permeio a esses episódios. E é nesse
espaço, de uma tranquilidade quase estática que fervem as emoções
nem sempre expressas das personagens, e nos fazem compreender os
jogos de equilíbrio entre essas melancolias.
Por uma
lógica que tem a ver com o género e ambiente de Chiisakobé,
estamos longe do dinamismo, energia e até frenesim de Dragon Head
ou Maiwai. É como se o desenho de Mochizuki (e assistentes)
procurasse destilar-se aqui numa linguagem quase desprovida de
excessos de expressão ou personalizações, e sem toda a canga usual
da mangá (linhas de acção, de impacto, de emoções, etc.). As
figuras humanas, os objectos e os cenários são reduzidos às suas
linhas essenciais, de contornos e outros elementos necessários para
serem identificados individualmente: “pessoa de calças e t-shirt”,
“tigela raiada com arroz”, “goivas alinhadas em balcão”,
“caixa bentô com vários maki”. Há uma diminuição
do estilo ao nível quase de uma espécie de manual ou guia de
montagem, de panfleto informativo, que incute a toda a narrativa uma
espécie de monotonia tranquila, se não mesmo melancólica, e
emocionalmente distante (mesmo nas excepções, quando surgem cenários mais luxuosos, parece confirmar-se uma redução estilística, longe do ultra-pormenor ou nervosismo das linhas). Recorda uma espécie de linha clara tal como
levada a um extremo pelas artes visuais de Julian Opie, por exemplo.
Além disso, a esmagadora das perspectivas escolhe composições
ortogonais ou estáticas: de frente, por trás, perfis, três-quartos,
e até mesmo isolando as personagens ou objectos numa vinheta branca.
Há bastos momentos em que temos uma perspectiva que foca
parcialmente o corpo das personagens (apenas as pernas, a parte
inferior das costas, uma mão estendida, os pés), mormente das
personagens femininas, mas menos numa lógica de “panty shot” ou
de sexualização das mesmas – quando isso acontece, isto é,
misturando-se com uma focalização concreta, é logo desmontado pela
intriga ou texto – do que de mais intensa despersonalização desse
mesmo olhar-externo.
Isto não
quer dizer que as personagens sofram de apatia ou incapacidade de se
expressarem. Bem pelo contrário, é esse estilo depurado que obriga
os leitores a, digamos, terem de se aproximar das personagens para
poderem interpretar e compreender o que sentem numa determinada
situação. Nada que não façamos já na nossa vida real e que nas
ciências cognitivas se chama mesmo “leitura de mentes”, isto é,
as naturais inferências que fazemos durante um acto de comunicação
com outro ser humano, “lendo” tudo na outra pessoa. Pode ser um
descer de ombros, uma posição defensiva, a inclinação da cabeça,
um pequeno gesto quase insignificante... Ou os momentos-chave em que
conseguimos ver os olhos (ou apenas um) de Shigeji, por entre as suas
melenas caídas. Ou as sandálias desirmanadas de Ritsu num momento
de pânico.
Há também
instâncias em que o autor roda 90 graus o eixo de uma imagem,
interrompendo o fluxo realista ou expectável da composição dita
retórica, usual. Mas o objectivo não nos parece ser numa uma
solução preguiçosa mas tampouco com fitos de fantasia. É mais um
modo de interromper a velocidade de leitura, obrigando a que
estranheza provoque um obstáculo no leitor e, por sua vez, essa
pausa permita uma fluidez mais profunda do que está em jogo. Apesar
da acédia ser quase o sentimento dominante de Chiisakobé,
pelo menos em termos de dinâmica ou superfície, é essa patina
existencialista que nos leva a, ao nos aproximarmos, compreender os
movimentos internos destes seres humanos. Quer Shigeji quer Ritsu, e
ainda também os jovens órfãos (que a par e passo vão ganhando
espaço para se expressar e ganharem o título de personalidades no
livro), encontram-se no centro dessas negociações tensionais e
duras das experiências. Os choques da orfandade, e depois do
incêndio, e ainda as contínuas crises que colocam em causa a sua
sobrevivência (o futuro da companhia, a possibilidade de se manterem
juntos, etc.) são o germe da destruição e da atrofia da
experiência que mal sabem expressar. O modo como vão gravitando em
torno uns dos outros é uma tentativa, desconchavada, desigual,
titubeante, de criarem uma experiência de comunidade (ou família)
mais real e duradoura. É entre essas duas direcções que o livro
emerge, possivelmente numa direcção maior.
erfahrung= experiência
ResponderEliminarerlebnis=vivência
tão simples
Pois é... os filósofos é que são uns complicados.
ResponderEliminarEste desenho é para mim bastante repelente. Toda a geometria perfeita, perspectivas irritantemente alinhadas faz parecer banda desenhada produzida por um computador e não por um humano. Pela mesma razão acho também repelente a agora muito em moda colorização por computador. Pelo menos somos poupados a isso aqui.
ResponderEliminarMas consegue trazer o pior de Na Prisão de Hanawa (de quem sou fã) com os mostradores de objectos e respectivos "manuais".
E ainda a cara do personagem principal sempre coberta por pelo, e também lustroso a la Burns.
Com tudo isto, apesar de ter apreciado a leitura de mais este artigo do LerBD (ao som de Rainbirds 3000 Live), é-me indiferente a história. Se o desenho é repelente prefiro o formato puramente textual.
Sou cliente assíduo da Lezard Noir, e vou tendo o Mirages d'Été e o Mon Village para me compensar.
Gosto de sempre de ler as análises do Pedro Moura (apesar de densas) e os livros que escolhe para analisar. Obrigado.
Caro Anti-herói,
ResponderEliminarPor um lado, compreendo essa repulsa, mas por outro não partilho de forma alguma a intensidade que parece nutrir por estes estilo "industrial". Na verdade, acho que este despojamento expressivo - ainda que admita que haja excessos aqui e ali, como essas linhas à la Burns -acaba por contribuir sobremaneira precisamente para a forma paradoxal com que as emoções são estruturadas. Sem querer fazer um historial deste estilo, ou os seus possíveis usos, lembro-me da única banda desenhada de François Mouly, que funciona na perfeição (falei dela brevemente quando do livro "In Love With Art"), ou alguns dos colaboradores do Harvey Pekar. Aqui o grau "Ikea" é quase maximal mas acho que funciona. Quando à narrativa... ou conquista o leitor ou não, enfim, aí temos grandes variações de alcance.
Obrigado pelas palavras, em todo o caso. Também sou um seguidor das edições Lézard Noir, como se poderá verificar vasculhando o blog, mas infelizmente não penso poder vir a falar do "Mirages d'Été", com o qual tenho sensações contraditórias; quando ao "Mon Village", não o comprei... veremos!
Obrigado,
Pedro Moura