13 de maio de 2016

Chiisakobé. Minetarô Mochizuki (Le lézard noir)

O filósofo alemão Walter Benjamin distinguia duas formas de experiência, que não apenas eram expressas por duas palavras alemãs diferentes – a saber, Erfahrung e Erlebnis - como se associavam a quadros diferenciados que se dividiam num momento pré-moderno e moderno. Em variadíssimos dos seus escritos, desde os ensaios publicados em vida ao seu grande e inacabado projecto das Arcadas, a um só tempo Benjamin lamentava o desaparecimento da Erfahrung como celebrava também a modernidade. De maneira forçosamente sumária, expliquemos que a Erfahrung está associada a uma profunda relação entre a memória e comunidade, o que permitia que ela mesmo fosse narrada como um fluido (o seu ensaio sobre “O contador de histórias” é fundamental para entender isso); pelo contrário, a Erlebnis expressaria uma experiência mais fragmentada e imediata, cuja forma de expressão se encontra no “choque” das notícias curtas, rápidas e sucessivas, as quais na era da internet ganham uma velocidade, mas igualmente uma volatilidade, exponencial. É esse estímulo exagerado que leva à, nas suas palavras, “atrofia” da Erfahrung, abrindo espaço para aquele torpor cujo nome medieval é a acédia. Uma espécie de passividade, apatia, derrotismo até, que impede a pessoa de reagir de modo mais acabado à situação em que se encontrará. Um aborrecimento derrotador, em vez de um aborrecimento entendido como oportunidade de contemplação da vida e compreensão profunda da condição humana.  (Mais) 

A razão deste aparente estranho desvio teórico dever-se-á ao facto de que Chiisakobé nos parece ser um livro que ganharia se fosse tentada uma leitura ensaística com algumas dessas noções na mente. Não se trata de uma obra a ler em busca da intriga central e da sua resolução, mas antes um mecanismo narrativo que coloca essas tensões entre modos de experiência, de desejo de re-inscrição numa comunidade (ou família, se preferirem), de atrofia e reforço, de acédia e movimento, de inacção e de reacção. Shigeji é um jovem arquitecto, que parece ter feito estudos aproximando-o de uma escola desconstrutivista (Zaha Hadid e Frank Gehry são citados como modelos), mas por alguma razão desistiu de dar continuidade a essa tarefa e voltou às raízes, trabalhando como carpinteiro-chefe na empresa de construção (mais tradicional, em madeira). O primeiro volume, porém, abre num momento de terrível comoção: um imenso incêndio não apenas destruiu parte da empresa como vitimou os pais de Shigeji, tornando-o o responsável maior pela sobrevivência da empresa e dos seus assalariados. Esta linha, já de si dramática e que impele Shigeji a lançar-se num frenesim nem sempre bem conduzido, vai embater com o segundo factor da intriga. Uma jovem mulher, vizinha e amiga de infância, e também recém-órfã, Ritsu, vem trabalhar para ele, mas traz com ela mais cinco órfãos, miúdos de várias idades e muito desconfiados de todos os estranhos. Uma vez que o orfanato ardeu igualmente, unem-se nesse infortúnio, mas sem criar alianças duradouras. Esse será um longo processo. Descrito desta maneira, quase pareceria estarmos perante ou um melodrama tremendo, em que o tema da orfandade seria explorado das formas mais sofridas possíveis, encaixando os sofrimentos e isolamento e falta de esperança ou desconfiança (sobretudo da parte das crianças) uns nos outros de forma exponencial, ou então uma qualquer comédia de costumes. Mas Mochizuki não segue nenhum desses caminhos em termos de tom.

Chiisakobé é na verdade uma adaptação de um romance histórico do mesmo nome de Shugurô Yamamoto (de 1957), mas transpondo a intriga para o Japão contemporâneo. Não podendo fazer uma leitura comparada, apenas poderemos imaginar que isto não será somente uma alteração para o conforto do autor da banda desenhada, como talvez uma maneira de colocar questões sobre certas situações no Japão actual, criando uma imagem ligeiramente diferente daquela usualmente veiculada pela cultura popular ou pela propaganda da fortuna daquele país (não sabemos, portanto, se aquela divisão entre modernidade e pré-modernidade faria sentido numa análise mais cuidada). Pelo modo tranquilo como a história progride, em que mesmo os avanços ou surgimentos de novos factores dramáticos (um incêndio que destrói uma importante obra em curso, as insistentes tentativas de apoio financeiro da parte de rivais-amigos, recusadas, o aparecimento de mais uma personagem feminina que vem destabilizar a estranha relação de aproximação-distância de Shigeji e Ritsu, etc.) não são apresentados de modo bombástico, é como se Mochizuki quisesse antes que os leitores compreendessem o humanismo de todas estas personagens, muitas vezes perdidas nos seus botões. Com efeito, temos muitas vezes acesso a balões de pensamento, algo que tem estado desusado numa banda desenhada mais contemporânea um pouco por todo o lado, mas que continua a ser um instrumento particularmente interessante para criar linhas de tensão entre o que é “dito” e o que “fica por dizer”. Ao longo de diálogos, esparsos e curtos, de vez em quando um balão de pensamento “interrompe” esse fluxo, ofertando ao leitor uma oportunidade de criar uma camada adicional de significado. É assim que nos é permitido apercebermos, sobretudo em relação ao casal protagonista, as suas cogitações em torno de questões éticas e existenciais.

Este livro, de que o terceiro volume está já anunciado para tradução e edição pela Lézard noir, uma editora francesa que nos tem dado a acesso a uma produção alternativa de banda desenhada, apresenta um Mochizuki algo diverso daquele que conhecíamos de obras anteriores, e o coloca mais próximo de certos autores maiores como Tsuge ou Abe, pelo modo como faz tecer toda a intriga em torno de episódios triviais da vida das personagens, ou Taniguchi, permitindo que uma certa qualidade contemplativa se estenda de permeio a esses episódios. E é nesse espaço, de uma tranquilidade quase estática que fervem as emoções nem sempre expressas das personagens, e nos fazem compreender os jogos de equilíbrio entre essas melancolias.

Por uma lógica que tem a ver com o género e ambiente de Chiisakobé, estamos longe do dinamismo, energia e até frenesim de Dragon Head ou Maiwai. É como se o desenho de Mochizuki (e assistentes) procurasse destilar-se aqui numa linguagem quase desprovida de excessos de expressão ou personalizações, e sem toda a canga usual da mangá (linhas de acção, de impacto, de emoções, etc.). As figuras humanas, os objectos e os cenários são reduzidos às suas linhas essenciais, de contornos e outros elementos necessários para serem identificados individualmente: “pessoa de calças e t-shirt”, “tigela raiada com arroz”, “goivas alinhadas em balcão”, “caixa bentô com vários maki”. Há uma diminuição do estilo ao nível quase de uma espécie de manual ou guia de montagem, de panfleto informativo, que incute a toda a narrativa uma espécie de monotonia tranquila, se não mesmo melancólica, e emocionalmente distante (mesmo nas excepções, quando surgem cenários mais luxuosos, parece confirmar-se uma redução estilística, longe do ultra-pormenor ou nervosismo das linhas). Recorda uma espécie de linha clara tal como levada a um extremo pelas artes visuais de Julian Opie, por exemplo. Além disso, a esmagadora das perspectivas escolhe composições ortogonais ou estáticas: de frente, por trás, perfis, três-quartos, e até mesmo isolando as personagens ou objectos numa vinheta branca. Há bastos momentos em que temos uma perspectiva que foca parcialmente o corpo das personagens (apenas as pernas, a parte inferior das costas, uma mão estendida, os pés), mormente das personagens femininas, mas menos numa lógica de “panty shot” ou de sexualização das mesmas – quando isso acontece, isto é, misturando-se com uma focalização concreta, é logo desmontado pela intriga ou texto – do que de mais intensa despersonalização desse mesmo olhar-externo.

Isto não quer dizer que as personagens sofram de apatia ou incapacidade de se expressarem. Bem pelo contrário, é esse estilo depurado que obriga os leitores a, digamos, terem de se aproximar das personagens para poderem interpretar e compreender o que sentem numa determinada situação. Nada que não façamos já na nossa vida real e que nas ciências cognitivas se chama mesmo “leitura de mentes”, isto é, as naturais inferências que fazemos durante um acto de comunicação com outro ser humano, “lendo” tudo na outra pessoa. Pode ser um descer de ombros, uma posição defensiva, a inclinação da cabeça, um pequeno gesto quase insignificante... Ou os momentos-chave em que conseguimos ver os olhos (ou apenas um) de Shigeji, por entre as suas melenas caídas. Ou as sandálias desirmanadas de Ritsu num momento de pânico.


Há também instâncias em que o autor roda 90 graus o eixo de uma imagem, interrompendo o fluxo realista ou expectável da composição dita retórica, usual. Mas o objectivo não nos parece ser numa uma solução preguiçosa mas tampouco com fitos de fantasia. É mais um modo de interromper a velocidade de leitura, obrigando a que estranheza provoque um obstáculo no leitor e, por sua vez, essa pausa permita uma fluidez mais profunda do que está em jogo. Apesar da acédia ser quase o sentimento dominante de Chiisakobé, pelo menos em termos de dinâmica ou superfície, é essa patina existencialista que nos leva a, ao nos aproximarmos, compreender os movimentos internos destes seres humanos. Quer Shigeji quer Ritsu, e ainda também os jovens órfãos (que a par e passo vão ganhando espaço para se expressar e ganharem o título de personalidades no livro), encontram-se no centro dessas negociações tensionais e duras das experiências. Os choques da orfandade, e depois do incêndio, e ainda as contínuas crises que colocam em causa a sua sobrevivência (o futuro da companhia, a possibilidade de se manterem juntos, etc.) são o germe da destruição e da atrofia da experiência que mal sabem expressar. O modo como vão gravitando em torno uns dos outros é uma tentativa, desconchavada, desigual, titubeante, de criarem uma experiência de comunidade (ou família) mais real e duradoura. É entre essas duas direcções que o livro emerge, possivelmente numa direcção maior. 

4 comentários:

  1. erfahrung= experiência
    erlebnis=vivência
    tão simples

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  2. Pois é... os filósofos é que são uns complicados.

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  3. Este desenho é para mim bastante repelente. Toda a geometria perfeita, perspectivas irritantemente alinhadas faz parecer banda desenhada produzida por um computador e não por um humano. Pela mesma razão acho também repelente a agora muito em moda colorização por computador. Pelo menos somos poupados a isso aqui.
    Mas consegue trazer o pior de Na Prisão de Hanawa (de quem sou fã) com os mostradores de objectos e respectivos "manuais".
    E ainda a cara do personagem principal sempre coberta por pelo, e também lustroso a la Burns.
    Com tudo isto, apesar de ter apreciado a leitura de mais este artigo do LerBD (ao som de Rainbirds 3000 Live), é-me indiferente a história. Se o desenho é repelente prefiro o formato puramente textual.
    Sou cliente assíduo da Lezard Noir, e vou tendo o Mirages d'Été e o Mon Village para me compensar.
    Gosto de sempre de ler as análises do Pedro Moura (apesar de densas) e os livros que escolhe para analisar. Obrigado.

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  4. Caro Anti-herói,
    Por um lado, compreendo essa repulsa, mas por outro não partilho de forma alguma a intensidade que parece nutrir por estes estilo "industrial". Na verdade, acho que este despojamento expressivo - ainda que admita que haja excessos aqui e ali, como essas linhas à la Burns -acaba por contribuir sobremaneira precisamente para a forma paradoxal com que as emoções são estruturadas. Sem querer fazer um historial deste estilo, ou os seus possíveis usos, lembro-me da única banda desenhada de François Mouly, que funciona na perfeição (falei dela brevemente quando do livro "In Love With Art"), ou alguns dos colaboradores do Harvey Pekar. Aqui o grau "Ikea" é quase maximal mas acho que funciona. Quando à narrativa... ou conquista o leitor ou não, enfim, aí temos grandes variações de alcance.
    Obrigado pelas palavras, em todo o caso. Também sou um seguidor das edições Lézard Noir, como se poderá verificar vasculhando o blog, mas infelizmente não penso poder vir a falar do "Mirages d'Été", com o qual tenho sensações contraditórias; quando ao "Mon Village", não o comprei... veremos!
    Obrigado,
    Pedro Moura

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