De
certa forma, não será alheia a co-organização de uma pequena
exposição dedicada a André Oliveira na Bedeteca da Amadora ao
lavramento do presente texto. Se é certo que essa exposição,
produzida pelo Festival da Amadora, não teve o nosso contributo, a
sua re-integração num expectável ciclo dedicado a argumentistas –
uma noção que foi tentada várias vezes junto a instituições,
sempre incumpridas – deve-se a um entendimento que, sem querer de
forma alguma colocar o trabalho e contributo absolutamente fulcral
dos artistas em detrimento, a concentração no escritor poderá
revelar características específicas não apenas ao trabalho da
banda desenhada como à personalidade criativa destes autores, e à
sua mundividência “completa” (contra a ideia de “autores
completos” e “incompletos”). Ao abordarmos toda uma série de
títulos que, até agora, ficaram sem leitura neste nosso espaço,
não deixaremos de repetir o mesmo gesto. (Mais)
Em
termos gerais, Portugal não tem tratado da melhor maneira a sua
memória da banda desenhada. Este é um problema que se estende a
muitas outras áreas, é verdade, mas sendo esta a matéria que nos
ocupa é aí que desejamos pensar (um tema que, aliás, foi abordado
no último episódio do Verbd).
Por vezes, há a sensação de que um autor, ao deixar de produzir um
livro de dois em dois anos, passa ao esquecimento, e qualquer novo
livro nos escaparates tenha de ser entendido como “o melhor” em
termos absolutos. Nessa óptica, a escrita da banda desenhada tem
sofrido ainda mais, uma vez que esse trabalho não é sempre
“visível”. Dito isto, existem alguns autores contemporâneos que
têm desenvolvido capacidades de escrita para a banda desenhada muito
particulares, emergindo não apenas como personalidades próprias
como capazes de experimentar várias dimensões dessa escrita
conforme os projectos. Sendo possível arrolar outros nomes, estamos
em crer que o destaque desse ciclo será equilibrado entre autores
profícuos, diversos, maduros e culturalmente relevantes.
André
Oliveira é, ou tem sido, uma surpresa em termos de produção, em
primeiro lugar pelo ritmo e ética de entrega ao trabalho. Num espaço
de uns três, quatro anos, André Oliveira não apenas criou um
punhado de livros com alguma recepção crítica como dezenas de
histórias curtas, cada qual com o seu artista específico, e
experimentando as várias “áreas” a que a banda desenhada se
pode prestar. Da autobiografia ao terror, passando pelo humor
desabrido e a mais tradicional aventura, a fantasia e o slice
of life,
Oliveira coloca à disposição da sua pesquisa a capacidade de
escrita. Já nos havíamos referido à “obra” de André Oliveira
como pertencente aos “projectos
narrativos ou literários coerentes” que têm alterado a paisagem
contemporânea da banda desenhada portuguesa. Aqui temos um outro
punhado de livro que, cada qual a seu modo, contribuem para a
expansão dessa oferta, a variedade de trabalho e processos, e o
aprofundamento dessa pesquisa.
Insistiremos
neste vocábulo, uma vez que estamos em crer que André Oliveira,
mais do que a típica frase feita de “querer contar histórias”
(e em que ele próprio incorre), pretende tentar compreender o mundo
através das histórias que cria. Sendo seres humanos, estamos aptos
a várias disposições, humores, relações, máscaras sociais e até
vontades, profundamente contraditórias para nós mesmos. Sem querer
criar hierarquias insustentáveis nem reduções descritivas,
diríamos que é André Oliveira o autor que maior leque de emoções
e vontades tem apresentado ao longo da sua produção.
Comecemos,
algo arbitrariamente, por Vil.
A tragédia de Diogo
Alves,
desenhado por Xico Santos (e publicado pela Kingpin Books). As
histórias de redenção exercem sempre um grande fascínio sobre
nós. Mesmo que vejamos as personagens caírem num abismo cada vez
mais negro, há algo que alimenta a esperança de ver o protagonista
e, mesmo através de um acto sacrificial tremendo, ser capaz de
escapar dele. É nesse sentido que Vil
se aproxima de uma estrutura superficialmente próxima daquela que,
por exemplo, e entre nós, David Soares explora: a da noite negra da
alma mas da qual não há escapatória possível. O abismo a que
Diogo Alves desce é superno e derradeiro, e acompanhamos a sua mente
esboroando-se (repare-se como a legendagem das suas falas é diversa
das demais, no trabalho de Mário Freitas). Mas André Oliveira,
nessa mesma gestão, revela uma natureza bem diferente da de Soares.
Aliás, Vil
é o título, o pivot,
que nos permite explorar a estrutura da escrita de Oliveira.
É
necessário sublinhar com vigor algo que muitas vezes os leitores
esquecem, a de que abordarmos a obra de um autor nada tem a ver com a
pessoa em si, cuja personalidade e existência contingente é
indiferente ao acto crítico. A razão deste excurso deve-se ao facto
de que onde Soares escava o cinismo, Oliveira não o emprega.
A
palavra “cínico” tem um poder filosófico muito forte,
regressando a Diógenes, significando acima de tudo um despojamento
de preocupações convencionais, até mesmo por vezes de necessidades
básicas físicas, como se conhecem das anedotas do filósofo. Mas o
cinismo é também optimista
pela utilização de instrumentos de sarcasmo (daí que a comparação
contemporânea com a escola zen
seja muito apropriada nesse sentido, pois há um humor e
desprendimento que, se oculto, não ajuda a compreender as lições),
os quais apontam e atingem uma perspectiva alta sobre a racionalidade
das acções humanas e um desprezo, esse já nietzschiano, de
moralismos e armadilhas facilitistas.
André
Oliveira não participa desse sarcasmo, então, mesmo numa história
tão “negra” quanto a do famoso assassino do Aqueduto das Águas
Livres em Lisboa, o último condenado à morte em Portugal. A visão
do escritor é mais beatífica em relação à natureza humana. Os
autores deixam claro numa nota final no livro de que não pretendem
criar uma devolução histórica, que reconstruísse os elementos
existentes da realidade documentada (de uma só fonte, diga-se). O
galego Diogo Alves, no livro, portanto, termina o seu percurso no
cadafalso, enforcado. Há, porém, uma estrutura de redenção
permanente no livro, que se expressa sobretudo em dois aspectos. A
primeira é a segunda, isto é, comecemos pelo mecanismo menor. A
visão da criança morta. Alves matou um número elevado de pessoas,
roubando-as e atirando-as das alturas abaixo. O seu espírito
transtornado, que vemos mutar-se ao longo das páginas através da
escala de emoções textualmente explícitas, e no torvelinho das
relações e dificuldades sociais em que se encontra. Mas se não se
pode falar em arrependimento propriamente dito, a aparente “visão”
da queda da criança traz uma dimensão fantasmática aos seus
crimes. Não é totalmente claro se este assassinato em concreto tem
lugar ou não (independentemente do que lhe diz o irmão, no fim),
colocando a narrativa no campo do fantástico como explicado por
Todorov. Mas o efeito dessa pressão fantasmática é real sobre
Alves, paradoxalmente revelando uma réstia de humanidade, ainda que
sofrida. O outro aspecto pode até ser controverso, se explicado de
maneira desequilibrada e erra: é que a culpa
é deslocada para a figura feminina. Alves, no fundo, surge aqui como
um homem de vontade débil, susceptível a certos graus de
manipulação emotiva e até económica, e tudo isso é cumprido na
figura da Gertrudes, que surge então como a “bruxa” da história.
Dizíamos “controverso”, pois não acreditamos que esse seja
necessariamente um desequilíbrio de representação na obra, que
pede
por estas figuras, mas havendo uma ausência generalizada de
personagens femininas centrais no trabalho de André Oliveira
(veremos que Milagreiro
não pode contar como excepção), há outros desequilíbrios que não
são corrigidos, digamos assim.
Se
o desenho de Xico Santos tem algumas limitações no que diz respeito
à manutenção de uam certa coerência estilística, as expressões
das figuras humanas são complexas, multifacetadas e variadas,
permitindo assim aos leitores compreenderem as reacções e paixões
que os dominam ao longo da intriga. Estas figuras, algo esquálidas e
construídas através de uma acumulação de linhas nervosas que mais
parecem lançadas com furor, aproximam-se de uma escola que remete à
gravura gótica e vitoriana, cujo emprego na banda desenhada tem em
Eddie Campbell (sobretudo em From Hell, aproximável pela
matéria e quadro cronológico) um modelo máximo. O emprego dos
cinzentos digitais é sumário, mas asseguran um volume necessário a
esta história que das sombras sai e nas sombras permanece.
Volta.
O segredo do vale das sombras,
desenhado por André Caetano (Polvo), é outro livro que também
pretende explorar alguns aspectos negros da alma, mas que se aproxima
mais do lado luminoso da redenção possível. Tecendo elementos
misteriosos e fantasiosos (não é revelado quem é o protagonista,
que é amnésico; não se compreendendo totalmente que tipo de mundo
é aquele da vila – e mesmo sabendo que outros volumes se seguirão,
estamos quase seguros que não se tratarão de “revelações
esclarecedoras”, mantendo sempre o ar de mistério e ambiguidade),
o livro faz-nos mergulhar imediatamente na questão das relações e
valorizações que as pessoas fazem entre si. O ciclista que fica
conhecido por “Campeão” é imediatamente colocado ao serviço de
todo um rol de expectativas das várias personalidades da vila, e é
com alguma flutuante vontade que ele acaba por “vestir a camisola”
dessas mesmas expectativas.
Centrado
em dois objectivos narrativos claros e clássicos – derrotar o
monstro, conquistar a dama – Volta tem uma estrutura de aventura
convencional, mas uma pátina de melancolia que não é comum, e que
dá precisamente a mais-valia ao livro. Se bem que haja um final
feliz e até promissor, as questões por resolver são feridas
deixadas em aberto: a memória completa de Campeão, a sua relação
com o pai, um hipotético “regresso” à sua vida anterior.
É
discutível se a intriga com a irmandade secreta e controladora, a
procissão, e até a estilização do ambiente, não recorre a
mecanismos narrativos algo expectáveis (quase aproximável de uma
bateria de referências famosas, de The Wicker Man, The
Mist a The Village),
todavia o livro é menos sobre a acção em si, que serve de espinha
organziadora, do a libertação lenta e inacabada de Campeão.
Apresentado
num formato oblongo, recordando certos projectos de uma banda
desenhada antiga, André Caetano apresenta desenhos à linha
(possivelmente lápis, caneta e pincel), acumulando técnicas e
espessuras diferentes, de forma a fazer contrastar figuras humanas
estilizadas mas individualizadas e capazes de expressar emoções
complexas e cenários complexos e intricados, desde a apertada malha
da natureza que circunda a vila aos interiores obscuros. O uso e
abuso de linhas paralelas, de impacto e de velocidade são
aparentadas por vezes à mangá, instilando nas cenas de acção uma
dinâmica bem diversa das cenas tranquilas de diálogos, e assim
incutindo vitalidade a todo o projecto.
Também
Milagreiro
(André Caetano, Filipe Andrade, Nuno Plati, Ricardo Cabral e Ricardo
Tércio, com capa wraparound
de Jorge Coelho e retratos das personagens por Ricardo Drumond;
Polvo) se inscreve num género de aventura e fantasia, e até de um
modo mais leve. Não apenas pela sua estrutura e tamanho, mas pela
forma como se procura colocar todo ao serviço da acção, mais do
que da exploração das personagens (muito mais mais plot
centered
do que character
driven,
como se costuma descrever), estamos perante um título mais “leve”.
André Oliveira tira partido mais uma vez da estrutura em capítulos
para explorar vários momentos das acções possíveis das suas
personagens, iniciando com o que parece ser um homem que cria
situações passíveis de serem interpretadas por milagres (Cyril),
de forma a assegurar o poder da Igreja. Todavia, o aparente suicídio
desta personagem faz desviar a centralidade da atenção para a sua
irmã (Aya) que dará início a um processo de vingança e redenção
de alta octanagem e com toda uma série de elementos clássicos
destas fantasias (sociedades secretas, armas fantásticas,
pseudo-ciências, etc.). Haveria talvez uma estranha combinação de
humores – o início parece prometer um tom mais psicológico e
interno que é desmentido pelas cenas de alta acção que se seguirão
-, mas a velocidade e concentração do livro leva a pensar num conto
rápido e, por isso, eficaz. A única protagonista feminina deste
grupo de livros, Aya, mas também o seu irmão Cyril, são os mais
desenraizados e atomizados dos livros restantes, mas mais uma vez
isso deve-se à economia do género.
Milagreiro
demonstra então que André Oliveira, mesmo que movido por uma força
circunstancial, sabe tirar partido dos artistas de que se vê
rodeado. Sendo possível que escreva por vezes sem a segurança de
quem desenhará, ou que algumas das noções possam surgir ainda sem
essa assinatura visual final garantida, há sempre um poder de
adaptação que mereceria maior cuidado de leitura. E isso é ainda
mais certo e verificado com Casulo
(vários artistas, Kingpin). Trata-se este de um volume que colige as
várias histórias de 2 a 4 pranchas que André Oliveira tem escrito
para a revista Cais,
com um verdadeiro batalhão de artistas. É impossível,
naturalmente, pressionar ainda mais a paciência dos pouco leitores
deste espaço com leituras individuais, mas convidamos aos
re-leitores desse livro a que se apercebam da maneira como André
Oliveira escreve para
esses mesmos artistas. Sem abandonar a sua própria tarefa e vontade,
é nítida a maneira como ele burila essa pesquisa procurando a
vantagem de cada um dos seus colaboradores, as suas forças, os seus
humores próprios, até mesmo alguns dos gostos e elementos
recorrentes das suas obras alhures. Havendo aqui, como se espera,
todo um rol de humores e valências, ainda assim pensamos que é
possível identificar algumas características comuns da escrita de
André Oliveira, um autor que acredita, no fundo, na bondade humana.
Vejam-se as histórias desenhadas por P. Potier, J. Afonso, X.
Santos, R. Venâncio, R. Cabral, C. Páscoa, S. Carvalhinhos, A.
Caetano, I. Galo, M. Teives, R. Reis, J. Coelho, para compreender a
forma como Oliveira pretende por vezes escavar mais as emoções
humanas em que há uma pausa melancólica ou uma stasis
que permite olhar à volta do que avançar uma “anedota”.
Finalmente,
chegamos a Tormenta
(com João Sequeira, Polvo). Esta é uma novela, sem palavras, a
preto-e-branco, e sob os auspícios de uma tempestade negra de tinta
e memórias. O protagonista (que apenas na apresentação tem nome),
que toma conta de um farol, não vive só, mas a relação com a
mulher não parece ser conducente à mais tranquila das felicidades. Apesar de estar num
ponto fixo à terra e rodeado de mar, a verdade é que há muitos
elementos que levam a pensar numa espécie de naufrágio. E não
apenas por ruínas de objectos dando à costa, mas também aqueles
que vêm dar à memória. Tal como no caso de Hawk,
Volta,
mesmo Vil,
mas em diferentes configurações nas outras histórias mais longas
(e algumas das curtas) de Oliveira, a relação com os progenitores
(no caso de Tormenta,
e como é explicado no epílogo, a figura dos avós é central) é
sempre alvo de alguma tensão, um escolho na total liberdade dos
filhos (ou netos), e é a resolução dessa crise – a qual, mesmo
vista como influência positiva, ao estar ausente é raíz de tensão
- que acaba por libertá-los a uma outra acção derradeira ou
libertária. Como vemos, a bonança – tome ela as formas que tomar
- está sempre no horizonte do escritor.
Os
desenhos de Sequeira, neste caso, são contíguos ao que havia
cumprido em Metamorfina,
Psicose
e F(r)icções,
em que a camada de “ruído material” das tintas empregues leva a
uma pressão sobre as personagens debuxadas de modo sumário e débil,
mas há um reforço da abordagem de esboço rápido, despreocupado,
como se se desejasse ser mais urgente na indicação dos objectos
necessários do que à completação da imagem. Ora isso aumenta o
grau de fragilidade destas personagens sob a tempestade, o que se
coaduna perfeitamente com a incompletude sentida por elas… E
ainda que Sequeira esteja afastado da Eisnerspritz,
a famosa patina de chuva das histórias de The
Spirit
que lhe incutiam um ambiente soturno permanente, a sua contínua
representação dos elementos em fúria cria igualmente uma
permanente camada visual ocultadora às imagens. Mesmo quando não
faz representar a chuva, há outros elementos gráficos ou objectuais
que fazem o mesmo papel (cercas, tábuas,a vegetação cerrada ou as
próprias linhas toscas que compõem as personagens). Apenas no fim
há uma “abertura” ao branco correspondente à abertura do
protagonista ávida que o rodeia e é imediata.
Para
terminar, uma outra característica geral na escrita deste autor que
nos parece recorrente é a relação dos personagens com o espaço.
Sendo esta uma categoria inescapável, um a
priori,
na vida real ou na ficção, não é de surpreender que existam
espaços determinados a ocuparem um papel preponderante nestes
relatos (falaremos sobretudo dos mais longos). Mas é a força que
exercem sobre os protagonistas que deve ser olhada com mais atenção.
Alves gravita em torno do passadiço do aqueduto, sendo ele o lugar
dos seus crimes e da sua descida, tal como o da emergência da sua
loucura; Will (de Living
Will)
cria uma cartografia afectiva e de memória em torno de uma bateria
de endereços das pessoas que deseja contactar; o ciclista “Campeão”
encontra na vila Le reste du monde – como se os autores quisessem
assumir totalmente os significados alegóricos possíveis e não
procurassem iludir através de nomes mais opacos – não apenas um
lugar de passagem, mas a “barriga da baleia” onde se transformará
a si mesmo, e consequentemente a própria vila; o protagonista de
Tormenta
está plenamente ancorado no seu serviço ao farol, mas como o foco
luminoso deste, é livre de iluminar para trás e para diante na sua
vida, trazendo para a frente memórias e vivências que podem alterar
o espaço presente. Esse é apenas outro traço que importaria
aprofundar ao se ler, com olhos de ler, a contínua produção deste
autor, o qual, como outros, deveria ser suficiente para derrotar de
uma vez por todas aquela noção de “autor incompleto” quando se
fala de argumentistas que exploram as várias facetas da existência
humana na sua multifacetada obra.
Nota
final: agradecimentos à Polvo, pela oferta dos seus títulos.
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