A personagem concebida por Gian
Luigi Bonelli e Aurelio Galleppini em 1948 tem uma vida longa, diversa e
explorada das mais diversas formas, não apenas em banda desenhada (se bem que é
apenas nessa linguagem que atinge alguma qualidade) e não nos atreveremos
sequer a encetar uma tentativa de a reduzir a uma apresentação sumária, sempre
dada a falhas. De resto, a sua recepção em Portugal tem sido particularmente
feliz, pelo menos em termos de respostas activas da parte dos seus fãs mais
activos, pela existência não apenas do Clube Tex como pela criação de uma
revista própria, acessível aos sócios. Acrescenta a que essa recepção seja
surpreendente pelo facto das edições dessa personagem serem sobretudo as
brasileiras (cuja recepção é de tal importância que existem mesmo estudos sobre
isso, como é exemplo O mocinho do Brasil,
de Gonçalo Junior, editora Laços: 2009), mas também italianas, espanholas e,
quiçá, as outras línguas em que esta personagem é publicada, no paradoxal papel
de personagem muita amada mas não sendo famosa fora desse mesmo círculo.
Havendo fãs e conhecedores sólidos dessa série, com espaços próprios, não
podemos sequer integrar Patagónia na
sua contínua história, mas considerá-lo como um texto singular.
Ao contrário de outras séries de
banda desenhada análogas em termos de distribuição e circulação popular, e em
termos históricos, Tex é um título
dirigido sobretudo a um público mais maduro, pela constância das histórias
complexas e a matéria humana de que trata, ainda que no género do western de aventura. Quer dizer, sem a
necessidade de se entregar a elementos pornográficos ou de violência extrema (o
caminho preferencial desse ramo italiano que são os fumetti gialli, depois continuados por outras formas mais ou menos
diluídas), é também por essas mesmas camadas de complexidade que criam uma
distância em relação a, por hipótese, séries de super-heróis ou as revistas
infanto-juvenis. Todavia, não valerá a pena misturar territórios, uma vez que
as suas próprias condições de produção e até formatos apontam para um tipo de
consumo bem diferente do que surgiria mais tarde como “banda desenhada em
livro”. Em 1948 surgiu como uma revistinha de tiras, e o seu formato usual tem
sido o do “gibi” ou “revistinha”, e apesar de ter surgido nos mais díspares
formatos, de tamanhos e qualidades de impressão, estamos sempre a falar de
apostas em modos “populares” e económicos. A sua edição em Portugal foi apenas
assegurada num dos volumes de uma colecção, muito desigual mas pioneira de
outros gestos que se seguiriam, distribuída pelo Correio da Manhã, em 2005, a Clássicos de Ouro. Agora a Polvo
apostou igualmente neste nicho de mercado, mas com uma atenção especial para
com a qualidade formal e material dos volumes, sendo Patagónia o primeiro passo, e tendo já saído um segundo volume, Tempestade sobre Galveston, a que
regressaremos em breve. O acto da Polvo vem conferir a estes títulos esta
qualidade de “livro” que tanto em voga está.
Algumas das aventuras longas da personagem eram publicadas em
formatinhos mais humildes, de uma centenas de páginas em formato de bolso, e em
continuidade, mas Patagónia faz parte
dos ditos “Albo Speciale”, ou para os aficionados, “Texone”, que estão mais
próximos do que entenderemos como “livros” propriamente ditos. Se este título
faz parte de uma colecção maior (era o número 23), a sua publicação “isolada”
pela Polvo dá-lhe uma pátina especial que forçosamente o destaca entre nós.
Todavia, a aventura em si tem angariado muita atenção, mesmo no seu território
original, e junto aos fãs hardcore,
por várias razões: a alteração do ambiente, que é inédito na personagem; a
complexidade referencial da aventura, ancorada na história factual da Argentina
a caminho do último quartel do século XIX, e sem pestanejar face às
responsabilidades de genocídio e destruição das populações ameríndias; o
burilar completo da narrativa e da vivacidade das personagens por Boselli, e o
desenho clássico, sólido e legibilíssimo de Frisenda. Pelo que se entende, é
uma prestação muito acima da média da série, a qual, ainda assim, conta na sua
história recente com a participação de muitos nomes de peso na banda desenhada
italiana moderna.
Há toda uma biografia da personagem que leva a que a dinâmica
entre as personagens, o modo como se referem a aventuras passadas ou a maneira
como interagem face a novas situações espoletarão sentimentos de familiaridade
e conforto junto aos leitores de longa data. Mas ao mesmo tempo, essa gestão
não é feita de maneira a que um novo leitor, totalmente desprevenido, não se
possa aperceber da distribuição dos papéis entre elas nesta aventura singular.
É possível que haja uma inscrição das personagens algo empedernidas, segundo as
funções clássicas da “aventura de heróis”, no sentido da “viagem única”, à la
J. Campbell. Tex é quase infalível e é ele o grande compasso moral da história;
o filho Kit surge como o cândido intempestivo; os poucos navajos que surgem
enquanto personagens cumprem o papel do índio taciturno fiel e inteligente,
cuja parcimónia nas palavras apenas assegura a que estas, quando proferidas, ganham
uma dimensão de vaticínio; etc. Porém, defender-se-á, não sem razão, de que
sendo esta uma narrativa plenamente ancorada num género popular, utiliza
mecanismos narrativos e de representação que são de uma interpretação quase
imediata. Sem dúvida, até por Tex preencher totalmente as fantasias do “white
savior”,”going native”, etc., sem nunca se dar espaço à expressão própria
dessas mesmas etnias que ele “representa”.
Ainda assim, e sobretudo em Patagónia, a categoria do western
é apenas um quadro genérico que serve de ponto de partida, já que há um desvio
de alguns dos seus mais costumeiros traços. Ou então, pelo contrário, eles
mantêm-se mudando só e precisamente as circunstâncias do espaço, passando do
deserto do Sudoeste americano para as pampas argentinas, as dos interlocutores,
mudando dos brancos americanos para os argentinos, dos navajos para as etnias
ameríndias daquela região. Pois acima de tudo, se existir algum “coração” do western, ele é mantido: a noção de justiça.
A sinopse é simples. Um antigo amigo de Tex, Mendonza, agora oficial
do exército argentino, pede ajuda ao americano para salvar colonos brancos que
foram feitos reféns por um indómito cacique nativo que não pretende vergar sob
o domínio dos brancos: Calfucurá, dos mapuche (mas subsumidos ao descritivo de
tehuelches). Figura histórica, há uma necessária redução dos papéis e da
personalidade para o transformar no grande antagonista deste livro, que não lhe
dá quase nenhum espaço de expressão. Enfim, não estamos aqui no território
político de Jack Jackson. Logo, Calfucurá é o “vilão”, e isso deve ser
suficiente. O grande problema da intriga está em que Mendonza precisa de gerir
o melhor possível a situação local, nas alianças e comunicação com as várias
tribos, pretendendo manter a paz geral e não abandonar-se numa guerra total,
racista e de genocídio que é o desejo de alguns militares do Estado. Tex Willer
surge portanto numa capacidade de estratega, mas igualmente de uma espécie de conselheiro
(bastas vezes tomando decisões completamente à revelia da dita inteligência
militar). O que se segue é uma complicada trama de comunicações, alianças,
traições, reveses e avanços que demonstram o parco equilíbrio entre os
representantes do Estado argentino, sedentos de uma purga civilizacional, e os
nativos, mostrados ora como violentos e ligeiros guerreiros (os Mapuche de
Calfucurá) ou nobres e honrados (a tribo do sul liderada por Mancuche, amigo de
Mendonza). Ou seja, é criado um binómio entre os “bons índios” e os “maus
índios” (e ainda se cria uma personagem dúbia, Solano, para matizar a
antinomia), que se revela algo mais unidimensional do que o tratamento
individual que se vai fazendo de toda uma série de personagens argentinas
(oficiais, soldados, os gaúchos, os batedores de Tex, etc.). O tema, então, de
todo o livro, é esse mesmo parco equilíbrio, o fraco papel que a honra e a
palavra têm face à máquina da violência de estado. Nesse sentido, Boselli cria
uma máquina narrativa que não deixa de menosprezar as capacidades individuais do
herói, mas ao mesmo tempo preserva os mecanismos deste tipo de ficções,
deixando Tex incólume de toda e qualquer responsabilidade dos actos iníquos que
ocorrem.
Apesar de tudo, há o costumeiro desequilíbrio
das aventuras que elegem um herói infalível como seu protagonista. Tex é sempre
quem resolve os problemas ou tem os melhores conselhos, sempre acertados. Se existem
brevíssimos momentos em que o seu controlo se parece perder, é apenas
momentâneo e para reforçar a sua infabilidade, nem que seja moral: quando se
recusa a matar personagens, a tomar decisões mais drásticas, etc. É de Tex,
portanto, o fiel que torna uma acção heróica.
Por isso, quando finalmente Tex se entrega a actos mortíferos, e até chacinas,
o leitor está ciente da justificação
desses actos.
O desenho de Frisenda inscreve-se mas mais prestigiadas
escolas italianas da tinta-da-China, em que o pormenor e clareza das figuras,
objectos e planos é complementada por efeitos subtis do pincel meio-seco,
raspagens sobre a tinta, provavelmente pochoir,
sfumato, etc., que traz a algumas
vinhetas mais densidade, textura, profundidade e, quando necessário, gravitas. Há vinhetas em que se vê o
fantasma de Toppi. Se bem que possa parecer hiperbólica tamanha comparação, e
possivelmente despertada pelo cadáver de um cavalo servindo de punctum à primeiríssima vinheta, a
primeira página parece algo próximo de Andrei
Rublev de Tarkovsky. Sendo a
preto-e-branco, é mais do que expectável que o artista tire partido do alto
contraste, muitas vezes com efeitos não-naturais para melhor gerir a condução
do olhar (um contraluz em que o fundo é branco, corpos lado a lado em que um
está em silhueta e o outro “iluminado”, a ausência total do cenário em negrura
para destacar uma personagem, um céu nocturno “invertido”, etc.). Frisenda é
capaz de desenhar minuciosas e detalhadas expressões do rosto humano,
destacando-se acima de tudo o modo espaçado e tranquilo com que o faz, deixando
sobretudo as posições dos corpos “falarem”, e jamais se abandonando a momentos
histriónicos, mesmo nos episódios mais dramáticos e dinâmicos. A composição semi-regular das páginas, sem
nenhum tipo de experimentação inusitada (com pequenas excepções na cena final
de combate, em que algumas figuras passam para fora da moldura, de modo
eficiente), serve para promover numa estrutura sólida e constante as explorações
expressivas a que se entrega. Além disso, a estruturação permite que cada
página funcione como uma unidade, sem jamais quebrar cenas e transições a meio
de uma delas.
Num equilíbrio curioso entre as características mais comuns e
clássicas das “fitas de caubóis”, uma tentativa de se endereçar à história pelo
filtro da ficção, e levantando a lebre face a temas apresentados de um modo ligeiramente
mais matizado, Patagónia é um livro
que preenche o seu papel de modo para além do competente. Quando falámos de Fri(c)ções, de N. Duarte e J. Sequeira, aventáramos como não deixava de
ser curioso que se diga que uma determinada instância de um género seja “atípica” ou “diferente”,
como é o caso presente, quando o western deve ser precisamente o
género em que mais variações se exploram. Logo, Patagónia não é de forma alguma um acto isolado. E muito menos o
será em termos editoriais, pois se as condições forem favoráveis, poderemos
estar perante mais um dos caminhos assegurados pela Polvo, numa colecção
especificamente dedicada à personagem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Que bela surpresa ver o prestigiado blogue "Ler BD" e o Pedro Moura escrever um texto deste porte sobre o Tex!
ResponderEliminarÉ um belo, interessante e importante texto sobre esta emblemática aventura (Patagónia) que certamente apresenta o Tex a muitos dos seus leitores que não conhecem, ou se conhecem nunca leram, o granítico Ranger criado em 1948 por G. L. Bonelli e Aurelio Galleppini.
E já estou com água na boca para ver o que escreverá sobre "Tempestade sobre Galveston"...
Já agora tendo em conta o interesse deste seu texto, será que me autoriza que o publique no blogue do Tex de modo a chegar a um maior número de leitores? Claro que farei os devidos créditos a si e ao seu blogue, inclusive colocando o link para o texto original.
No aguardo de uma sua resposta, despeço-me enviando um abraço e parabenizando-o uma vez mais pelo excelente texto!
Caro José Carlos Francisco,
ResponderEliminarFico muito agradecido pelas suas palavras, tendo em conta o seu papel fundamental e pessoal pela causa desta personagem (e já agora, pela tradução, por tudo). Quanto à repetição do texto, uma vez que indico ser "creative commons", está à vontade, criando um link, repetindo-o, etc., sem quaisquer problemas, agradecendo simplesmente assegurar a autoria.
Por razões várias, atrasei-me sobremaneira em ler este volume, apesar do editor me ter disponibilizado de imediato o título; havendo já algum atraso em relação a "Tempestade", veremos se será menor. No entanto, estou menos preocupado - como se sabe - com velocidade de recepção (muitas vezes reduzida à mera repetição de notas de imprensa) do que uma qualquer forma de analisar os livros em si. E nem sempre houve espaço para falar de formatos mais populares: a existência em "livro" - não sendo este espaço exclusivamente dedicado a eles - ajudou a acelerar essa mesma atenção.
Até breve e obrigado mais uma vez,
Pedro
Sem outro meio de te contactar, aqui vai o meu último video,
ResponderEliminarhttp://janus.freevar.com/porto.html
Diverte-te,
Janus
Punx not dead, indeed, Janus!
ResponderEliminarPrezado Pedro Moura,
ResponderEliminarTambém agradeço as suas lisonjeiras palavras. O Tex é uma das duas paixões maiores da minha vida e isso diz tudo do que este Ranger significa para mim...
Quanto ao seu texto crítico já o publiquei no blogue do Tex como pode ver indo a http://texwillerblog.com/wordpress/?p=67359
Espero que esteja do modo que esperava para que não fique a menor dúvida sobre a sua autoria. Caso haja algo que eu deva alterar, diga-me que procederei de imediato.
E quanto a "Tempestade sobre Galveston" demore o tempo que for preciso, pois partilho da sua opinião e prefiro esperar para ver um texto do quilate de "Patagónia", do que ver as tais notas de imprensa que já todos leram...
Um grande abraço e mais uma vez, muito obrigado.
Caro José Carlos,
ResponderEliminarEstá perfeito, obrigado pela atenção. Já tenho o "Tempestade", mas devo demorar algum tempo. Mas mal esteja, avisarei, como é óbvio.
Um abraço e obrigado!