21 de julho de 2016

The New Mutants. Ramzi Fawaz (New York University Press)

Tendo como sub-título Superheroes and the Radical Imagination of American Comics, compreender-se-á de imediato o objecto de estudo deste volume académico, assim como a matéria que é desalojada para lhe prestar atenção crítica. Basicamente, este é um estudo das figuras dos superheróis no contexto histórico e cultural norte-americano, criando um filtro que permite ver essas personagens como capazes de reconfigurar imaginativa mas igualmente politicamente (isto é, com efeitos na pólis) vários tipos de inscrição cultural. Desta feita, o autor contribui de uma forma sustentada e feliz para com a consideração da banda desenhada como, acima de tudo, para citar uma das cartas enviadas às editoras que o investigador utiliza, “espaço legítimo para pôr em prática ideais” (195). (Mais) 

Existindo cada vez mais volumes dedicados a estudos ancorados e balizados da banda desenhada, é verdade que as áreas mais abordadas, pelo menos em língua inglesa, ou se dedicam à banda desenhada mainstream de super-heróis ou então a círculos que podem ser descritos como “independentes”, “alternativos”, “literários”, ou outros. Muitas vezes, os instrumentos são diferenciados, ou pelo menos as bases da discussão desses mesmos textos. No caso de Fawaz, se bem que esta nossa afirmação seja algo deslocada e exagerada, diríamos estar surpreendidos por vermos tão bem articulados instrumentos que têm a ver com a Queer Theory, estudos culturais, interpretações histórico-políticas, etc., numa aplicabilidade sobre estas personagens de fantasia e, mais ainda, de fantasias de poder. Todavia, como Fawaz o determina logo no início, o objectivo deste estudo é abordar “três décadas de inovação na banda desenhada americana que transformaram o super-herói de um campeão nacionalista numa figura de diferença radical capaz de cartografar os limites do liberalismo americano, e a sua promessa de inclusão universal no período do pós-2ª Guerra Mundial” (3). Isso permitirá então olhar para “o superherói como uma figura dinâmica e contestada através da qual os leitores e também os criadores conseguem reivindicar quem poderá representar mais legitimamente o povo americano, e mais latamente a raça humana, enquanto seu embaixador heróico” (idem).

De certa forma, Fawaz procura seguir a esteira de uma leitura positiva destas figuras, tais como Peter Coogan, Grant Morrison, Geoff Klock, Aldo Regalado, e outros, mas aprofunda a questão da representatividade e identidade. No que diz respeito à Queer Theory, que aqui deve ser entendida menos num sentido estrito da identidade da sexualidade, mas num sentido de “estranhamento”, isto é, prática desviante da normatividade, Fawaz quer entender as figuras dos super-heróis não apenas como potencialmente “queers” elas mesmas, mas como potenciadoras de “queer up” a própria banda desenhada em direcção a uma prática sócio-política. Máquinas do pensamento. Escreve ele, “[p]enso na banda desenhada como um objecto historicamente constituído emergindo de condições sociais e materiais distintas – o que inclui exigências económicas cambiáveis, as biografias dos diferentes autores, transformações demográficas do público leitor, e novas tecnologias de impressão – ao mesmo tempo que vejo o seu riquíssimo conteúdo narrativo e visual a produzir lógicas imaginativas capazes de oferecer modos de reconcepção, valorização e resposta ao mundo que não são reduzíveis a qualquer factor histórico singular” (23). É isto o que distingue o trabalho de Fawaz, e de outros académicos que dedicam tempo ao estudo da banda desenhada de uma forma sólida: a de não julgar todo o território, todo o género, como um bloco homogéneo, seja para o julgar um campo minado pelo maniqueísmo ou a falta de sofisticação intelectual, face a outros objectos bem distintos, seja para o eleger como o único campo digno de alguma discussão passional, em detrimento de tudo aquilo que não se inscrever nas suas lógicas representationais, genéricas ou estilísticas. Numa formulação sucinta e clara, ao autor acrescenta, “o super-herói fluído [fluxible] não era inocente de interesses económicos, mas tampouco são os seus significados redutíveis a eles” (25) [no final voltaremos a esse conceito de fluxible].

Com efeito, Ramzi Fawaz lerá os super-heróis não tanto quanto figuras que ocupam um nicho ou um papel social (e cultural, estético, etc.) predeterminado, congeladas da mesma maneira para sempre, mas antes como passíveis de mutações internas que tanto respondem como contribuem para a sociedade em que se inserem e vivem, por vezes seguindo por outras contestando, por vezes indo à frente e noutras apenas reflectindo expectativas. O mais importante, seja como for, é olhar para esta tipologia de personagens, como reflectoras de uma fantasia produtiva politicamente. Ecoando algumas ideias de S. Zizek - sem o citar, todavia - Fawaz encontra neste género uma forma de tornar “a fantasia num recurso político possível para o reconhecimento e aproveitamento do prazer em identidades sociais e formas colectivas de vida usualmente denegridas como depravadas ou subversivas no seio da lógica política do anticomunismo da Guerra Fria e um neoconservadorismo emergente” (4).

Ecoando o que John Fiske entendia por “cultura popular”, sublinhando os seus usos e diferenciando dos meros produtos de massa, Fawaz acrescenta a isto a consideração da figura do super-heróis como um “local generativo para imaginar a democracia na sua forma mais radical, como uma responsabilidade ética universalmente expansiva para o bem-estar do mundo mais do que uma estrutura institucional que suporta a cidadania nacional” (7). O autor parte portanto da leitura da “fantasia popular” como sendo “a variedade das maneiras com que os tropos e figuras da fantasia literária (magia, capacidades super-humanas, viagens no tempo, universos alternativos, entre outros) são capazes de organizar relações sociais e políticas do mundo-real” (27). Porém, inflectindo a sua interpretação com os estudos de Lauren Berlant, uma importante investigadora do campo da Teoria dos Afectos, sublinha como “novos desejos políticos, novos mundos, através de modos de encantamento e maravilha” (28) podem emergir neste meio específico, o qual “modelou visualmente como o encantamento poderia reorientar compromissos éticos e associações políticas” (32).

Fawaz não está interessado de forma alguma em descrições factuais, históricas e contextuais das personagens que constituem os seus estudos de caso. Não a coloca de lado, já que as suas interpretações bebem desses factos e de interpretações atentas à especificidade formal da linguagem da banda desenhada, mas interessa-lhe ir mais além dessa constatação, que de resto já se encontra cumprida por muitas outras fontes, para poder chegar aos significados mais profundos que as várias figuras estabelecem com os seus contextos específicos. Os capítulos estão divididos não apenas por grupos de personagens (runs mais ou menos identificáveis, “períodos” e personagens), mas igualmente por temas e conceitos culturais e intelectuais que têm tudo a ver com o tempo particular que aborda, e até aos papéis sociais ou às possibilidades de expressão política a que vários “segmentos” da população foram tendo acesso ao longo das décadas: bastar-nos-á pensar nos grupos de esquerda, nas marchas pelos direitos civis, nos movimentos estudantis e/ou anti-Vietname, na conquista de uma expressão pública da sexualidade, do multiculturalismo, e das identidades que vão minando uma ideia heteronormativa, ainda hoje, em larga medida, em vigor.

O primeiro capítulo aborda a Liga da Justiça da dita “Silver Age”, acabando por servirem de modelo de grau zero de uma certa ideia normativa do que representava a “democracia americana” como modelo para o mundo. Sendo esse o modelo “mais avançado” para a civilização à escala global, era natural que se procurasse estender essa influência um pouco por todo o lado, e se descrevessem todas e quaisquer lutas noutros contextos como que subsumidas a tiplogias e categorias fundadas “do lado de cá”, digamos assim. É assim que essas personagens passam a servir de bitola contra a qual todas as outras que se seguem apresentam sucessivos desvios e conquistas representacionais. Desta forma, os dois capítulos seguintes focam a primeira configuração de super-heróis que procuram respirar uma “não-normatividade” face à sociedade em que emergem: o Quarteto Fanástico, o qual “abriu a figura do super-herói às categorias do género e da sexualidade, as texturas materiais da vida diária, e a dinâmica do conflito geracional no dealbar dos turbulentos anos 1960” (65). O segundo capítulo aborda sobretudo o início da “biografia” dessa família (nas mãos dos seus autores originais, Stan Lee e Jack Kirby), e é extremamente estimulante que se faça leituras sobre a “Primeira Família” da Marvel, que numa abordagem superficial poderia parecer representara a família nuclear por excelência, para descobrir neles, fantasias de poderes, antes uma “...inabilidade de interpretar [perform] as funções próprias de uma heterossexualidade de corpos capazes [able body] (67), transformando “a família como palco do debate democrático” (71).

A grande consequência do estudo deste autor é abrir uma forma de interrogar estas figuras para além de uma consideração geral e externa de considerar toda e qualquer fantasia de super-heróis como “a mesma coisa”. A atenção particular com que Fawaz distingue as personagens, os autores envolvidos, os estilos empregues, o contexto de produção, a consideração das cartas enviadas e publicadas nos próprios comic books (alertando para a impossibilidade de ter a certeza da genuidade de toda e qualquer frase) como sinal da sua recepção e negociação imediata (é isto o que ocupa a parte de leão do capítulo três), etc., torna The New Mutants como um livro muito completo no tratamento que faz da sua matéria principal. Estabelecem-se diferenças entre o super-herói e outras figuras análogas comparáveis, como é o caso do “frontier hero”, por exemplo. Neste caso, o que definiria a personagem central destes estudo é a dimensão moderna de uma “corporificação (embodiment) da síntese entre o si biológico aparentemente “natural” e as tecnologias da sociedade industrial” (6). Assim, vamos descobrindo como “A desidentificação não é 'quebrar sob as pressões da ideologia dominante' nem 'libertar-se da sua esfera inescapável' mas antes uma rearticulação de um conjunto de normas para novos significados através de performances espectaculares e críticas dessas mesmas normas” (85). A reconfiguração é interna, paulatina e específica a estas personagens, criando mesclas entre a fantasia e assuntos do mundo real que a tornavam uma plataforma genuína (ainda que no interior da tal patina de cultura popular, e não a de um ensaio intelectual ou o panfleto político activista) de pensamento e acção.

O capítulo quatro é dedicado sobretudo ao Surfista Prateado e aos primeiros X-men, se bem que se discuta o Warlock e outras personagens, procurando linhas de desenvolvimento que têm a ver, em termos temáticos, com o universo e a space opera. O autor propõe mesmo um sub-género representado por Norrin Rad e Adam Warlock, a do “melodrama messiânico”, que tendo tido curta duração acabaria por se mostrar influente na maneira como re-inscreveria o super-herói para fora de alianças nacionalistas e/ou ideológicas para outras esferas mais alargadas (a família, a comunidade genética, um princípio de comunidade por perseguição externa, etc.), e que iria contribuindo para a elasticidade do valor conceptual dessas mesmas figuras. Nas palavras do investigador, “Ao popularizar o mutante genético como uma minoria social e de espécie, a série [Uncanny X-Men] lançou as bases para reimaginar o super-herói enquanto figura que, longe de atrair os leitores para uma visão de cidadania ideal através do dever patriótico ou do sofrimento justo, dramatizou as política de desigualdade, exclusão e diferença” (144). A evolução interna dessas personagens levaria a que “os novos X-Men [o run mais tardiode Claremont e Cockrum] articularam a mutação às críticas radicais de identidade promulgadas pelas culturas da liberação das mulheres e homossexuais” (145).

Se bem que não exista qualquer hierarquia entre os capítulos e, logo, entre as personagens, estamos em crer que Fawaz tem uma predilecção (quiçá informada por questões menos académicas e mais pessoais) pela família alargada dos X-Men que, de resto, dão mesmo título ao livro (já em relação à “terceira família” de mutantes). Isso deve-se sobretudo porque o âmago conceptual do livro encontra nelas os instrumentos mais apropriados mas também a fábrica mais intensa de conceitos novos para re-pensar a sociedade. Esta é uma das grandes forças deste livro. É que Fawaz não somente parte de uma série de saberes disciplinados feitos e os aplica à banda desenhada para entender como é que ela funciona face a essas ideias, mas ausculta a produção desta área criativa para entender que conceitos dela emergem para melhor pensar a realidade cultural abordada. Assim, o autor faz uma leitura mais detalhada desta série, explicando como ela “propôs uma alternativa para o signo aparentemente inclusivo da 'humanidade universal' sob a forma de uma rede de parentesco através das espécies que deveria ser antes descrita como uma mutanidade estranha” [queer mutanity]. Muitos leitores recordar-se-ão da saga da “Fénix Negra”, e do modo como se procuravam instituir alianças e rivalidades cósmicas, redes de compreensão trans-espécies, e sacrifícios à escala individual mas com repercussões colectivas. É em relação a essa famosíssima história que o autor profere uma frase carregada – que tem tanto a ver com a grande parte da força narrativa da história de Claremont e Byrne e com os seus significados sociais – que surge aquilo que poderia ser o moto do grande modelo que estas personagens todas poderiam instituir face aos seus leitores, num usage (à la Fiske) positivo e libertário: nessa sage instituem-se “encontros mutuamente transformativos entre aliados inesperados” (161).

O quinto capítulo foca o curto mais influente run do Lanterna Verde e o Arqueiro Verde na lavra de Dennis O'Neill e Neal Adams de 1970 (mas também a primeira aparição de Luke Cage e a fase em que o Capitão América se tornou Nomad) para “descer” da space opera à paisagem urbana, deslocando-se para o género chamado de urban folktale. Apesar dos diferentes contextos imaginativos, ambos “respondiam às mesmas preocupações sócio-políticas, incluindo o colapso da Nova Esquerda e das coligações políticas liberais, a Guerra do Vietname, a corrupta liderança política, e o falhanço dos serviços sociais em repararem as desigualdades materiais que continuavam a assolar a nação. Porém, cada um destes géneros propunha estratégias criativas e posições ideológicas alternativas nessas respostas aos falhanços da vida política americana” (166). No caso deste outro género moderno, fazia-se um interessante uso de elementos e estratégias comunicacionais e representacionais oriundas do documentário e da etnografia cultural para estas histórias de fantasia. “Os vários métodos com os quais o urban folktale desconstruía a reivindicação do super-herói de ma cidadania ideal... abriu caminho para a renegeração moral da figura, ao encorajá-lo a responder às críticas aos seu próprio carácter através de uma vontade em se melhorar a si mesmo, assim como a uma educação política que poderia ser partilhada semelhantemente com o leitor através da forma do próprio comic book” (180).

A dado momento, o autor cita o conceito da “imaginação sociológica” de C. Wright Mills. Trata-se da capacidade cognitiva de, a partir de problemas individuais (tais como o desemprego ou a toxicodependência), subir ou descer a escala social para realidades sociais e económicas mais latas (incluindo o racismo e a distribuição desequilibrada da riqueza e privilégios) que permitiram trajectórias destrutivas da vida (182). No caso do Lanterna Verde e Arqueiro Verde, os autores (O'Neill e Adams) criaram uma clara dicotomia dinâmica entre posicionamentos ideológicos diferentes, sobretudo tornando o segundo personagem, menos poderoso que o primeiro, numa espécie de guia social, criando-se um mecanismo de atenção que desviava a atenção de um “sobre-investimento no individualismo liberal” para um “bem-estar colectivo e uma empatia pelo sofrimento dos outros” (183). Daí que O'Neill e Adams tenham colocado essas personagens numa espécie de tour pelos vários estratos sociais dos Estados Unidos da época, tentando compreender qual a valência e pertinência política dessas figuras, anos antes do que seria mais tarde conhecido como o “desconstrutivismo” de um Squadron Supreme ou dos vários títulos de Alan Moore et al., que, se citados, não são alvo do estudo de Fawaz (sendo esses já objectos textuais largamente estudados por outras fontes).

Estes títulos, bebendo das várias fases de discussão do feminismo e das lutas sociais e políticas pelos direitos civis, são mais atentos a diferenças particulares, e procuram não tratar todo e qualquer “bloco identitário” como um corpo homogéneo, antes “exigem uma compreensão mais intersecional de raça como uma categoria de identidade internamente heterogénea e contingente, incluindo um património nacional, de sexo, de classe e de localização geográfica” (196). Essas questões identitárias têm mais uma inflexão “para dentro” no capítulo seguinte, dedicado exclusivamente ao tema da possessão demoníaca, surgindo como figuras principais a relação entre Jean Grey e a Fénix, o Homem-Aranha e Venom, e, mais tarde, Ilyana Rasputin ou Magik. De certa forma, estes desancoramentos sucessivos do herói dos seus elos familiares, nacionais ou até de espécie, eram um reflexo da cultura do final dos anos 1970 e início dos 1980, em que surgira aquilo que alguns comentadores culturais chamaram de 'a cultura do narcisismo'” (201), constituindo assim “uma alegoria para a vulnerabilidade do cidadão individual aos assaltos psíquicos incessantes da sociedade de consumo” (206-207).

O último capítulo aborda o grupo conhecido por New Mutants, que surgiu em 1984, criados por Claremont, mais uma vez (e desenhados por Bob McLeod). Esta série é o corolário do trajecto proposto pelo autor, numa derradeira transformação do papel do super-herói, uma vez que veio trazer “novos termos para a produção de solidariedade numa ordem mundial neoliberal, os quais eram eco de vários projectos construtores de mundos da banda desenhada de super-heróis do pós-guerra, incluindo a cidadania ética da Liga da Justiça, a cosmopolítica dos livros do Quarteto Fantástico, e a mutanidade estranha dos X-Men.

“A noção de que o propósito dos super-heróis era sempre necessariamente melhorar as injustiças sociais significava que a figura era meramente um meio criativo para um fim social alternativo: melhorar relações inter-rácicas, combater o conservadorismo da Guerra Fria, libertar as mulheres, levar a cabo a justiça social... [ou seja, refundar o género para o tornar] “um espaço de fantasia popular em que os tipos de solidariedade necessárias para transformar as condições que tornavam possíveis estas atrocidades [fome, racismo, intolerância religiosa, etc.] podiam ser realizadas” (235). Esta mudança radical, em que as personagens já não agiam sobre as consequências ou os sintomas, mas antes as próprias condições da emergência dessas identidades espelhavam a maneira como muitas plataformas (entre as quais a Act Up, especialmente citada) funcionavam: “os movimentos radicais dos anos 1980 sugeriam que o fito da política não deveria ser a busca por uma identidade humana universal, um mundo utópico livre de opressão, ou a aquisição de direitos de um estado liberal mas antes a prática do desenvolvimento de respostas sociais significativas para diferenças concretas que foram, a dado momento, democráticas e críticas” (237), o que explica, pelo menos em parte, a maneira como nessa série se abordavam as classes sociais, as religiões e as proveniências sociais de cada uma das personagens. Ainda que tenha sido o próprio Claremont que, na segunda família dos X-Men, tinha introduzido uma maior variedade étnica e nacional nos mutantes, é em New Mutants que eles abandonam a ideia de serem representativos de estereótipos mais ou menos condicionados para se explorarem especificidades mais individuais.

A pluralidade dessa série, portanto, é de tal ordem que Fawaz se permite a lê-la tal como esta havia sido delineada pela segunda onda do feminismo, isto é, “não é um facto demográfico ou existencial, mas uma relação política para com... diferenças; exige que eu faça algo em relação a essas diferenças, que eu as considere de uma forma politicamente significativa” (Fawaz está a citar a partir de Linda M. G. Zerilli; 238).

Para além da discussão destas figuras e seu papel sócio-cultural, o autor vai fundando vários conceitos próprios, que poderão tornar-se aplicáveis ou contudentes em situações futuras. Por exemplo, o conceito da “fluxability”, que em português se poderia escrever “fluxoabilidade” (mais do que “fluído” como tentámos acima), e que diz respeito a uma “transição ou mudança constante” (11 e ss.) das figuras, projectando a maleabilidade (ou mutatibilidade) dos super-heróis conforme o novo enquadramento cultural. Um outro conceito é o da “cosmopolitics” ou “cosmopolítica”, a qual se expressa de três formas distintas: em primeiro lugar, pela forma como as personagens corporizam um modelo de cidadania univeral, que se foi expandindo; o modo como o público leitor passou a participar activamente na construção narrativa e imaginativa através das cartas ao editor no pós-guerra, que levavam a interessantíssimas e produtivas discussões e conselhos; e finalmente, “o investimento ressurgente do meio nos valores liberais do antiracismo e do antifascismo, ao mesmo tempo que a sua absorção por uma política mais radical dos movimentos sociais da Nova Esquerda, nascida no final dos anos 1950 um pouco por todo o mundo ocidental, numa espécie de redemocratização dos princípios pós-comunistas...” Com efeito, lendo calma e atentamente certas histórias e inclusões verificar-se-ão uns quantos exemplos de temas que eram abordados com maior urgência e avanço na bd de super-heróis em fatos coloridos do que nas páginas dos jornais sérios do mainstream (o autor nunca defende que há uma “vanguarda” de pensamento nesta bd comercial, mas simplesmente que não mima a norma dos meios de comunicação social vigentes).

O epílogo é igualmente um exercício de imaginação para os tempos contemporâneos, mas estamos perto demais do quadro para o compreender. Poderemos dizer que o último capítulo é dedicado à forma como se elegem enquanto temas centrais da banda desenhada de super-heróis contemporânea a morte e a destruição, chegando-se a um novo conceito que é o do “cadáver maravilhoso”. Este “ofertou uma meditação visual sobre o que poderia significar se o super-herói desenvolvesse uma relação anti-social para com o estado e a comunidade nacional, abrangendo o valor da morte como uma maneira de galvanizar a acção pública contra possibilidades políticas limitadoras” (273) – o autor discute sobretudo as mortes do Super-Homem no início dos anos 1990, a do Capitão América por Brubaker et al., etc. Mas essa operação não é mais do que uma transformação nos papéis das personagens, que se vão alterando para tentar corresponder a um mundo (pelo menos no “Primeiro Mundo”) em que as alianças transnacionais, identitárias em fluxo e a cultural global colocam em crise inscrições culturais mais estreitas.


Todavia, o autor está também alerta ao tipo de co-optação, como se diz nos nossos dias, ou recuperação, ou aproveitamento, ou absorção, da parte dos poderes normativos, pelas práticas “desviantes”. Como exemplo, apresenta uma capa “variante” de Astonishing X-Men no. 51 por Phil Noto, em que se subsume o casamento homossexual das personagens Northstar e Kyle Jinadu a toda uma série de outras alianças entre personagens da Marvel, e ainda um espaço em branco para a fotografia do leitor. O que parece ser uma actividade de empowerment e implicação directa do leitor no mundo imaginário daquelas personagens acaba por, na verdade, “achatar (ou pelo menos homogeneízar sentimentalmente) a heterogeneidade das experiências de vida dos leitores individuais com uma imagem tradicional da reprodução e geração heterossexual, [i.e.] 'mais uma foto para o álbum e casamento...'” (280).

Ainda assim, é precisamente a abertura e flexibilidade destas personagens perante as novas realidades sociais que merece pelo menos uma atenção aberta e cuidada para tentar compreender em que medida é que podem ajudar a pensar melhor.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

3 comentários:

  1. Olá Pedro:

    Escreveste muito, mas nada do que escreveste me convence de que este livro não é politicamente naïf. Se não vejo acima as três palavras "separação de poderes" é porque o é. Por outro lado também nada acima me diz que nas histórias de super-heróis não há bons e maus e ergo maníqueísmo. Espero é que não aconteça aqui o que aconteceu no livro de Bradford W. Wright em que este escolheu ler só o que lhe interessava (pág. 3 de Captain America # 122) e "esquecer" o que não lhe corroborava a tese (pág. 5 do mesmo comic).

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  2. Estou a preparar uma entrevista ao autor (vamos ver se corre bem), e compreendo perfeitamente essas perguntas. Porém, o ponto de vista de Fawaz é menos o de uma crítica política como uma desmontagem marxista automática, digamos assim, do que uma inquirição ao uso da cultura popular como forma possível de expressão de identidades alternativas àquelas que são pressupostas pelos próprios produtores. É nesse sentido que me parece que ele segue alguns instrumentos que foram lançados por Gramsci e tornados mais articulados no campo cultural por John Fiske. Como o próprio escreveu em "Understanding Popular Culture": "Everyday life is constituted by the practices of popular culture, and is characterized by the creativity of the weak in using the resources provided by a disempowering system while refusing finally to submit to that power." Não me parece que Fiske seja politicamente naïf. Se Fawaz o é, não utilizando todos os instrumentos que teria para empregar, não sou eu a pessoa certa para julgar.
    Não penso que tenhamos de ver as coisas de uma forma exclusiva, do tipo "tudo o que é de super-heróis é mau", integrando numa suposta ideologia hegemónica e unilateral, tal como outro qualquer território. Sem dúvida que são fantasias ancoradas em compreensões muitas vezes populares do poder, do excepcionalismo, do individualismo e, claro está, o necessário opositor reduzido à unidimensionalidade, mas é precisamente no interior dessas limitações que o autor tenta explorar em que medida é que essas fantasias populares alimentam, ainda assim, papéis activos de re-inscrição social e cultural. Uma das limitações do livro estará em que lhe faltaria um último capítulo(?) mais virado para a sociologia, que analisasse a "vitória dos geeks", que tem ocorrido nos últimos dez anos (repare-se a popularidade nas notícias de um jogo como o "Pókemon Go", que há décadas estaria relegado a uma coluna em revistas da especialidade; ou o sucesso comercial de toda uma série de filmes baseados em comics, jogos e literatura juvenil).
    Aceitam-se sugestões para "apertar" o autor.
    Obrigado!
    pedro

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  3. Todas essas leituras estão muito bem, mas tenho três objecções: 1) utilizar instrumentos críticos alheios de forma acrítica, passe o paradoxo, não me parece muito inteligente (podia-se citar também Michel de Certeau, Gayatri Spivak, etc..); 2) até que ponto é que é avisado às minorias macaquear o poder? Quando me dizem que super-heroínas representam mulheres "fortes" pergunto-me sempre: para que o são? Para fazer o mesmo que os seus congéneres super-heróis? Por outro lado pergunto-me onde está o "empowerment" se "combatem o crime" em trajes menores e em saltos altos? Digo o mesmo mutatis mutandis para as Barbarellas e companhia; 3) e este é mesmo um ponto fulcral: se o super-herói gay ou negro serve de polícia, juíz e carrasco num mundo a preto e branco e em que o establishment é sempre o bem está ou não está a servir o poder à la Uncle Tom? Não podemos perder nunca de vista que a banda desenhada de super-heróis é uma exploitation: se falamos de blaxploitation, sexploitation, em suma, minorityxploitation é sempre de superfície que estamosa falar. Se os problemas das minorias fossem retratados com profundidade num comic de super-heróis (o simples facto de estar a escrever isto já me parece ridículo) o comic implodia comercialmente (não reconhecer isto é ser politicamente naïf). O problema da democracia é um problema à parte, mas liga-se ao que escrevi acima: mesmo que a democracia seja uma piada de mau gosto (e é o que é, realmente) é sempre preferível aos valores fascistóides (de que a glorificação da violência e o posturing é um subproduto estético) subjacentes a qualquer história de super-heróis. (Não reconhecer isto é também se politicamente naïf.)

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