8 de agosto de 2016

História Universal da Pulhice Humana. José Vilhena (E-primatur)

Este pequeno volume é um pequeno grande gesto. Se a obra de Vilhena, imensa, múltipla, variada, espraiada, paroxística até, ainda continua verificável e viva num substrato contínuo de alfarrabistas, a sua re-apresentação e até re-formulação sobre objectos mais “dignamente livros” poderá ser uma senda certeira a uma necessária re-apreciação. Os seus cultores jamais o abandonaram, é certo, pugnando mesmo pela sua importância, mas muitas das suas características impediam, talvez, que a obra de Vilhena tivesse as mesmas cartas de cidadania na perspectiva do humor, da caricatura, do desenho de imprensa, da própria actividade editorial, e até da literatura, que muitos de outros dos seus pares, quiçá mais bem-comportados. A que deverá essa visão enviesada, esse “semi-silêncio envergonhado” (R. Zink)? Provavelmente a ideia de que a obra de Vilhena é “grosseira”. (Mais) 

Em Portugal, Hoje. O medo de existir, numa secção em que José Gil se queixa sobre o entorpecimento do espírito e o alastramento de um plano cultural mais baixo (de acordo, claro está, com os mais altos píncaros senão nefelibatas da produção cultural), o filósofo escreve o seguinte: “O que é a grosseria? Resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma... A um dito fino, alguém responde com uma obscenidade: longe de produzir um efeito rabelaisiano (em que o fundo se eleva, tal qual, a formas sublimes, ou a uma paródia do sublime), a grosseria destrói a finura e o requinte da ironia, esmagando-a numa papa viscosa e repugnante”. Será essa a grosseria que é cumprida pela obra de Vilhena? Não cremos.

Vilhena criou, como bem se sabe, variadíssimas publicações, muitas vezes, senão sempre, criadas e conduzidas solitariamente. Para não falar dos inúmeros livros, há igualmente as revistas, O moralista, O fala barato e A gaiola aberta, revista esta já publicada após o 25 de Abril de 1974 e a dissipação da Censura prévia do antigo regime, mas assinalando em muitos dos seus dissabores com o “novo regime” que a liberdade de expressão não é um absoluto, mas antes uma negociação de poderes… Como efeito, apartidário, Vilhena não apenas dava no cravo e na ferradura, como em tudo o que pudesse parecer um qualquer conformismo com ideias feitas. Se houvesse inimigo maior, seria menos a de um regime político, do que a acrítica e apática aceitação com que a classe burguesa aceita as coisas como elas são, porque “sempre foi assim” ou “não fica bem” ser de outra maneira. O humor de Vilhena, que se expressava por, e explorava, não apenas imagens, mas igualmente textos, colagens, e a própria actividade editorial (recuperando uma verve e vontade que apenas teve um percursor central em Bordalo), era um belíssimo murro na mesa, um “Porra!”, face à letargia que se instalava com outras formas populares de cultura. E pela “linha de baixo”, sem almejar a outra coisa. Como se fosse a expressão do desinibido Id face ao Super-superego do regime da época.

Rui Zink, no seu estudo O humor de bolso, dedicado a Vilhena, inquire que tipo de literatura é este que o autor cultuava. Atravessando categorias textuais e literárias tais como as do kitsch, da pornografia, da cultura popular, satírica política e/ou de costumes, de massas, o investigador encontra traços comuns com elas todas, sem dúvida, mas sobretudo faz elevar os traços de uma oralidade desopilante, mas sobretudo e acima de tudo a própria possibilidade de encontrar traços de literariedade na sua obra. Vilhena não é apenas um desenhador de bonecada em cenas de porno-chanchada, mas um esgrimista da prosa portuguesa que baralha os níveis e devolve uma imagem dolorosa de confrontar.



Este volume impresso pela E-Primatur reúne os três livrinhos originais de História universal da pulhice humana, a saber, os volumes que Vilhena dedicara à Pré-História, O Egipto e Os judeus, publicados original e respectivamente em 1960, 1961 e 1965, fazendo parte da primeiríssima fase do Vilhena auto-editor, depois de anos como cartoonista para o Diário de Lisboa e a revista O Mundo Ri. Esta editora segue um processo curioso de decisão de que volumes produz, através da participação directa dos seus leitores e seguidores nas redes sociais, e através de edições fac-similadas, mantendo algumas características materiais dos originais (inclusive erros ortográficos/tipográficos, maleitas de impressão, se bem que o contraste das linhas e letras é sólido e claro, aqui). Este volume tem um formato de bolso, quase como se reencadernassem os três volumes originais, mas apresentando-se em capas cartonadas, ofertando-lhe assim uma espécie de aura e dignidade bibliotecária que não estaria decerto prevista na sua distribuição original massiva por canais menos prestigiantes. Mas lá está, vem aliar-se àquela re-interpretação indicada acima.

É expectável que os volumes sejam distintos, quer nas suas estruturas internas quer no modo como Vilhena aborda cada matéria, uma vez que não se procurava aqui propriamente uma unidade narrativa ou uma consistência qualquer. O tipo de humor de Vilhena é muito distinto entre a prestação textual e a imagética. As imagens, as mais das vezes, abandonam-se a uma brejeirice directa, ora mostrando mulheres de contornos soberbos e promissores, ora caricaturizando as personagens de modos quase abjectos. Um retrato de Caim, por exemplo, recupera a fácies de Hitler, criando uma aproximação humorística fácil de interpretar. O uso de episódios acrónicos é contínuo, como a revelação de um “jornal” egípcio ou um conjunto das “coristas de Amon”. No entanto, nesse ponto devemos recordar-nos que não é apenas no campo do humor que a falta de sincronia entre os instrumentos de representação e a ideia representada ocorre. Em toda a história da arte, os mais variados momentos representavam, por exemplo, episódios bíblicos e mitológicos utilizando vestes, espaços e funções contemporâneas, de forma a tornar a “lição” mais clara: nada de diferente na prática deste artista.

Mas são os textos em que o sarcasmo, a ironia e a virulência se unem para criar uma escrita requintada, sofisticada, inteligente e mordaz. Não é apenas a frase polida, com brilharetes de subordinadas, mas o vocabulário, a utilização de registos variados e integrados, a maiêutica inesperada com os hipotéticos leitores, que fazem brilhar a tarefa literária de Vilhena.
O tal espelho é claro. As “bocas” à situação política da época não era sequer disfarçáveis. Quando se fala da alteração entre os regimes de “Pedra Lascada” e de “Pedra Polida”, fala-se da possibilidade de “eleições livres” e declara-se, em nota de rodapé: “Sim. Nesse tempo havia” (pg. 123). Noutro momento, faz-se uma comparação directa entre a terrível civilização estudada e o Portugal (então) moderno, chamado de “paraíso de liberdades”. Vilhena era um filigranista da meia-palavra.

Mas não há grosseria nem falta de forma. Esse seria apenas um efeito superficial, momentâneo, que a leitura ou observação atenta dissiparia. O ridículo a que Vilhena faz passar todo a história não é feito, de facto, a partir de uma posição de superficialidade ou de ignorância. Bem pelo contrário, a erudição é comprovada pelos mais pequenos pormenores e pela seriedade com que vários factores ou linhas possíveis de inquirição são tentadas, como as “teorias” da evolução de Darwin e o que se chamaria hoje “criacionismo” digladiando-se no início do primeiro volume, para chegar a uma terceira via ainda mais espatafúrdia, ou a consideração – verdadeira! - da Bíblia, a qual, bem lida, revela episódios dignos de comparação a toda uma biblioteca, que inclui Sade e Nabokov, Bocage e Miller (v. imagem pg. 323).

Com dezenas e dezenas de livros, quadros e uma vida rocambolesca, que passava por alterações de moradas e uma complexa relação com a sua própria vida, talvez não estejamos errados ao dizer que Vilhena deixou poucos herdeiros, na verdade. Miguel Carneiro, em tempos, dera início a uma linguagem que se podia exprimir em territórios próximos (recordemo-nos da Bom Apetite!, com João Marçal), mas não abraçara de modo mais contínuo e directo a realidade portuguesa. E quando dela se aproximou, já o estilo era outro, mais elevado. Muitos outros autores tentam imitar os instrumentos, mas não compreendem a sofisticação necessária para atingir os mesmos fitos. Talvez Janus seja o autor que vive genuinamente uma experiência mais próxima daquela encetada por Vilhena, mas a dimensão melancólica do autor portuense não lhe permite atingir o mesmo tipo de sorriso dionisíaco que se desprende afinal do clássico lisboeta.


Para além dos desenhos da lavra do próprio autor, Vilhena emprega igualmente imagens retiradas de obras antigas, reproduções de gravuras tiradas quiçá a obras literárias ilustradas ou enciclopédias, colocando-lhes pequenas legendas que operam como um détournement. O autor também não é alheio ao emprego de colagens e construções tipográficas. Se não se pode imaginar, talvez, um mesmo grau de composição com um Jacques Carelman ou a mesma natureza de complexidade conceptual dos Situacionistas, a verdade é que Vilhena cumpria de certa forma o mesmo papel, quer de caricatura política-social quer de humor ácido. Nesse sentido, Vilhena era um autor, também ele, de mixed media, e nem sequer necessariamente low fi, dada a proficuidade e brio da prestação gráfica, com a agravante da dificuldade económica, de distribuição e até a perigosidade política.

Aparentemente, planeava-se a continuidade desta série, mas o exercício estava cumprido, e se a identificação da “pulhice” antiga servia para mostrar a contemporânea, ir buscar mais lições a outras eras antigas seria repetir um gesto, desnecessário. De acordo com estudos etimológicos, a palavra portuguesa “pulha” parece derivar da castelhana, mas cuja origem é desconhecida. Pulla remeterá a algo não-material que causa dores e sofrimentos internos. Haverá melhor fármaco, então, que uma nova materialidade para este bálsamo de humor?

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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