Este
pequeno volume é um pequeno grande gesto. Se a obra de Vilhena,
imensa, múltipla, variada, espraiada, paroxística até, ainda
continua verificável e viva num substrato contínuo de
alfarrabistas, a sua re-apresentação e até re-formulação sobre
objectos mais “dignamente livros” poderá ser uma senda certeira
a uma necessária re-apreciação. Os seus cultores jamais o
abandonaram, é certo, pugnando mesmo pela sua importância, mas
muitas das suas características impediam, talvez, que a obra de
Vilhena tivesse as mesmas cartas de cidadania na perspectiva do
humor, da caricatura, do desenho de imprensa, da própria actividade
editorial, e até da literatura, que muitos de outros dos seus pares,
quiçá mais bem-comportados. A que deverá essa visão enviesada,
esse “semi-silêncio envergonhado” (R. Zink)? Provavelmente a
ideia de que a obra de Vilhena é “grosseira”. (Mais)
Em
Portugal, Hoje. O medo de existir, numa secção em que José
Gil se queixa sobre o entorpecimento do espírito e o alastramento de
um plano cultural mais baixo (de acordo, claro está, com os mais
altos píncaros senão nefelibatas da produção cultural), o
filósofo escreve o seguinte: “O que é a grosseria? Resulta do
esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem
forma... A um dito fino, alguém responde com uma obscenidade: longe
de produzir um efeito rabelaisiano (em que o fundo se eleva, tal
qual, a formas sublimes, ou a uma paródia do sublime), a grosseria
destrói a finura e o requinte da ironia, esmagando-a numa papa
viscosa e repugnante”. Será essa a grosseria que é cumprida pela
obra de Vilhena? Não cremos.
Vilhena
criou, como bem se sabe, variadíssimas publicações, muitas vezes,
senão sempre, criadas e conduzidas solitariamente. Para não falar
dos inúmeros livros, há igualmente as revistas, O moralista,
O fala barato e A gaiola aberta, revista esta já
publicada após o 25 de Abril de 1974 e a dissipação da Censura
prévia do antigo regime, mas assinalando em muitos dos seus
dissabores com o “novo regime” que a liberdade de expressão não
é um absoluto, mas antes uma negociação de poderes… Como efeito,
apartidário, Vilhena não apenas dava no cravo e na
ferradura, como em tudo o que pudesse parecer um qualquer conformismo
com ideias feitas. Se houvesse inimigo maior, seria menos a de um
regime político, do que a acrítica e apática aceitação com que a
classe burguesa aceita as coisas como elas são, porque “sempre foi
assim” ou “não fica bem” ser de outra maneira. O humor de
Vilhena, que se expressava por, e explorava, não apenas imagens, mas
igualmente textos, colagens, e a própria actividade editorial
(recuperando uma verve e vontade que apenas teve um percursor central
em Bordalo), era um belíssimo murro na mesa, um “Porra!”, face à
letargia que se instalava com outras formas populares de cultura. E
pela “linha de baixo”, sem almejar a outra coisa. Como se fosse a
expressão do desinibido Id face ao Super-superego do regime da
época.
Rui
Zink, no seu estudo O humor de bolso, dedicado a Vilhena,
inquire que tipo de literatura é este que o autor cultuava.
Atravessando categorias textuais e literárias tais como as do
kitsch, da pornografia, da cultura popular, satírica política e/ou
de costumes, de massas, o investigador encontra traços comuns com
elas todas, sem dúvida, mas sobretudo faz elevar os traços de uma
oralidade desopilante, mas sobretudo e acima de tudo a própria
possibilidade de encontrar traços de literariedade na
sua obra. Vilhena não é apenas um desenhador de bonecada em
cenas de porno-chanchada, mas um esgrimista da prosa portuguesa que
baralha os níveis e devolve uma imagem dolorosa de confrontar.
Este
volume impresso pela E-Primatur reúne os três livrinhos originais
de História universal da pulhice humana, a saber, os volumes
que Vilhena dedicara à Pré-História, O Egipto e Os
judeus, publicados original e respectivamente em 1960, 1961 e
1965, fazendo parte da primeiríssima fase do Vilhena auto-editor,
depois de anos como cartoonista para o Diário de Lisboa e a
revista O Mundo Ri. Esta editora segue um processo curioso de
decisão de que volumes produz, através da participação directa
dos seus leitores e seguidores nas redes sociais, e através de
edições fac-similadas, mantendo algumas características materiais
dos originais (inclusive erros ortográficos/tipográficos, maleitas
de impressão, se bem que o contraste das linhas e letras é sólido
e claro, aqui). Este volume tem um formato de bolso, quase como se
reencadernassem os três volumes originais, mas apresentando-se em
capas cartonadas, ofertando-lhe assim uma espécie de aura e
dignidade bibliotecária que não estaria decerto prevista na sua
distribuição original massiva por canais menos prestigiantes. Mas
lá está, vem aliar-se àquela re-interpretação indicada acima.
É
expectável que os volumes sejam distintos, quer nas suas estruturas
internas quer no modo como Vilhena aborda cada matéria, uma vez que
não se procurava aqui propriamente uma unidade narrativa ou uma
consistência qualquer. O tipo de humor de Vilhena é muito distinto
entre a prestação textual e a imagética. As imagens, as mais das
vezes, abandonam-se a uma brejeirice directa, ora mostrando mulheres
de contornos soberbos e promissores, ora caricaturizando as
personagens de modos quase abjectos. Um retrato de Caim, por exemplo,
recupera a fácies de Hitler, criando uma aproximação
humorística fácil de interpretar. O uso de episódios acrónicos é
contínuo, como a revelação de um “jornal” egípcio ou um
conjunto das “coristas de Amon”. No entanto, nesse ponto devemos
recordar-nos que não é apenas no campo do humor que a falta de
sincronia entre os instrumentos de representação e a ideia
representada ocorre. Em toda a história da arte, os mais variados
momentos representavam, por exemplo, episódios bíblicos e
mitológicos utilizando vestes, espaços e funções contemporâneas,
de forma a tornar a “lição” mais clara: nada de diferente na
prática deste artista.
Mas
são os textos em que o sarcasmo, a ironia e a virulência se unem
para criar uma escrita requintada, sofisticada, inteligente e mordaz.
Não é apenas a frase polida, com brilharetes de subordinadas, mas o
vocabulário, a utilização de registos variados e integrados, a
maiêutica inesperada com os hipotéticos leitores, que fazem brilhar
a tarefa literária de Vilhena.
O
tal espelho é claro. As “bocas” à situação política da época
não era sequer disfarçáveis. Quando se fala da alteração entre
os regimes de “Pedra Lascada” e de “Pedra Polida”, fala-se da
possibilidade de “eleições livres” e declara-se, em nota de
rodapé: “Sim. Nesse tempo havia” (pg. 123). Noutro momento,
faz-se uma comparação directa entre a terrível civilização
estudada e o Portugal (então) moderno, chamado de “paraíso de
liberdades”. Vilhena era um filigranista da meia-palavra.
Mas
não há grosseria nem falta de forma. Esse seria apenas um efeito
superficial, momentâneo, que a leitura ou observação atenta
dissiparia. O ridículo a que Vilhena faz passar todo a história não
é feito, de facto, a partir de uma posição de superficialidade ou
de ignorância. Bem pelo contrário, a erudição é comprovada pelos
mais pequenos pormenores e pela seriedade com que vários factores ou
linhas possíveis de inquirição são tentadas, como as “teorias”
da evolução de Darwin e o que se chamaria hoje “criacionismo”
digladiando-se no início do primeiro volume, para chegar a uma
terceira via ainda mais espatafúrdia, ou a consideração –
verdadeira! - da Bíblia, a qual, bem lida, revela episódios
dignos de comparação a toda uma biblioteca, que inclui Sade e
Nabokov, Bocage e Miller (v. imagem pg. 323).
Com
dezenas e dezenas de livros, quadros e uma vida rocambolesca, que
passava por alterações de moradas e uma complexa relação com a
sua própria vida, talvez não estejamos errados ao dizer que Vilhena
deixou poucos herdeiros, na verdade. Miguel Carneiro, em tempos, dera
início a uma linguagem que se podia exprimir em territórios
próximos (recordemo-nos da Bom Apetite!, com João Marçal),
mas não abraçara de modo mais contínuo e directo a realidade
portuguesa. E quando dela se aproximou, já o estilo era outro, mais
elevado. Muitos outros autores tentam imitar os instrumentos, mas não
compreendem a sofisticação necessária para atingir os mesmos
fitos. Talvez Janus seja o autor que vive genuinamente uma
experiência mais próxima daquela encetada por Vilhena, mas a
dimensão melancólica do autor portuense não lhe permite atingir o
mesmo tipo de sorriso dionisíaco que se desprende afinal do clássico
lisboeta.
Para
além dos desenhos da lavra do próprio autor, Vilhena emprega
igualmente imagens retiradas de obras antigas, reproduções de
gravuras tiradas quiçá a obras literárias ilustradas ou
enciclopédias, colocando-lhes pequenas legendas que operam como um
détournement. O autor também não é alheio ao emprego de
colagens e construções tipográficas. Se não se pode imaginar,
talvez, um mesmo grau de composição com um Jacques Carelman ou a
mesma natureza de complexidade conceptual dos Situacionistas, a
verdade é que Vilhena cumpria de certa forma o mesmo papel, quer de
caricatura política-social quer de humor ácido. Nesse sentido,
Vilhena era um autor, também ele, de mixed media, e
nem sequer necessariamente low fi, dada a proficuidade
e brio da prestação gráfica, com a agravante da dificuldade
económica, de distribuição e até a perigosidade política.
Aparentemente,
planeava-se a continuidade desta série, mas o exercício estava
cumprido, e se a identificação da “pulhice” antiga servia para
mostrar a contemporânea, ir buscar mais lições a outras eras
antigas seria repetir um gesto, desnecessário. De acordo com estudos
etimológicos, a palavra portuguesa “pulha” parece derivar da
castelhana, mas cuja origem é desconhecida. Pulla remeterá a
algo não-material que causa dores e sofrimentos internos. Haverá
melhor fármaco, então, que uma nova materialidade para este bálsamo
de humor?
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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