11 de agosto de 2016

AAVV. Under Dark Weird Fantasy Ground # 1-3 (Hollow Press)


A revista, cujo título em acróstico, UDWFG, poderá recordar um murmúrio de afogamento e martírio de um qualquer demónio, ou um humano nas suas mãos, é com efeito um objecto de sortilégios macabros e nocturnos. Talvez mesmo uma espécie de grimório narrativo cuja leitura, se exercida em determinadas circunstâncias ritualísticas e numa ordem determinada, destrave as cancelas de outras dimensões tenebrosas e possa fazer deslizar sombras que nos alterem as percepções. Mas mesmo a sua leitura comum e semi-distraída colocará os leitores seguramente num ambiente algo incómodo, de uma maneira indefinida, que por isso mesmo se torna mais incómoda, ao contrário de prestações mais violentas ou directas, cujos elementos se tornam de imediato, se for o caso, obscenos, repudiáveis, mas por isso mesmo mais permeáveis a sensações estendidas. (Mais) 

A UDWFG é uma antologia aparentemente – ou melhor, de forma explícita por esse mesmo título - dedicada à ficção negra ou à ficção weird, uma convergência entre a literatura fantástica e géneros como o horror, a fantasia e a ficção científica, e cujo maior cultor, ou pelo menos maior demiurgo, foi H. P. Lovecraft. Com efeito, com os seus planos não-euclidianos de outros universos, as suas luzes irreais, os sons e ângulos inesperados, e criaturas como os Mi-Go, os Anciãos, os Shoggoth, e claro o grande Chtulhu, Lovecraft deixaria à posterioridade uma mitologia e um pasto a contínuas revisitações e expansões macabras. É óbvio que bebera de nomes anteriores, Poe e Machen, Dunsany e até Crowley, mas após ele Peake, Mieville e Barker contribuiriam de forma significativa para as possibilidades e até a popularidade dessas invenções. A banda desenhada não lhe é alheia, claro está, mas se durante muito tempo se manteve somente na prática de meras, superficiais e francamente medíocres adaptações (com raras excepções, de onde se deve salvar o nome de A. Breccia), somente em termos recentes a criação de mundos complexos deste género conseguiram ganhar uma capacidade não apenas de liberdade criativa, fora das fórmulas de susto e espectacularidade expectáveis, como a nível gráfico se procurava um brio sólido.

Esta revista, publicação italiana mas em língua inglesa, procura que o seu aspecto material (as páginas tintadas de negro em torno, o culto de alto contrastes que assinalam o trabalho de linha, ou cinzentos expressivos, as capas estilizadas, o logotipo-título mutável e imitando objectos clássicos dos géneros) se coadune com o interior. Os três primeiros números, que lemos, apresentam cinco histórias em capítulos por cinco autores, e apenas uma dela parece ter terminado no terceiro número. De tamanhos diferentes de revista para revista, com estilos bem distintos e instrumentos diversos, todas elas se unem porém nos grandes traços que são precisamente os elementos que as inscrevem naquele(s) género(s) apontado acima. De certa forma, podemos dizer que todas as histórias se abrem a complexos e variegados universos narrativos, habitados por estranhas e fabulosas criaturas, uma mais necromântica que a outra, esta mais próxima de formas de vida terrestres que aquela, estoutra devedora de contornos mais de ficção científica, e aqueloutra de high fantasy.

Os autores reunidos nestas páginas são os seguintes. O norte-americano Mat Brinkman, de quem falámos sempre que possível associando-o à plataforma que o lançara, a Paper Rodeo ou o grupo de Fort Thunder. Nesta história, seguimos um naco de carne, fragmento de um corpo maior já massacrado, e as vicissitudes pelas quais atravessa, num mundo que parece saído de uma versão abreviada de Dungeons & Dragons

O espanhol Miguel Ángel Martin, que de histórias com uma abordagem estilizada e genérica, assume aqui uma fantasia onde todas as suas características se unem e reforçam com contornos negros, onde criaturas de cruzamentos impossíveis parece estarem na senda de uma estrutura mágica, que tanto parece alcançável como sempre por detrás de mais um difícil obstáculo. 

O artista japonês vivendo nos Estados Unidos Tetsunori Tawaraya, que parece ser uma fusão entre o artista de outside/mainstream comics Fletcher Hanks e a arte de filigrana biológica de um Haeckel, perde-se na exploração de uma fauna e flora alienígenas, que apenas aos poucos parece estar associada com efeito a uma história organizada, com protagonistas e vilões. 

O italiano Ratigher, cuja arte está próxima de uma animação muito estilizada, mas colocando as suas personagens de aparência juvenil ao serviço de uma protelada e estranha saga negra, é aquele que nos apresenta a peça mais clássica, “Five Mantles”. É possível que possa ser mesmo aquela que mais se estenderá no tempo, com sólidas personagens e uma backstory capaz de aguentar ramificações várias. Devedora de toda uma série de referências, sem o esconder mas trabalhando nesse território, um pouco à la Last Man, seguimos duas irmãs com capacidades e objectos mágicos num subterrâneo labirinto cujos limites não se conseguem sequer ainda vislumbrar.

Finalmente, o também italino Paolo Massagli, que parece muito mais devedor de uma certa escola de ilustração de metal e/ou tattoo art, mas que procura moldar esses instrumentos para uma história que, ainda que vaga, vai navegando num território relativamente clássico. Várias figuras femininas, entre os looks das Suicide girls, da Tank Girl, Yo-Landi VI$$er e mais uma batelada de fantasias adolescentes de mulhres-demónio, digladiam-se entre si numa paisagem Infernal, com a participação de outra criaturas. Se nem sempre é clara a substituição das personagens e a razão dos conflitos, parece que o prazer reside no avanço inexorável por essas mesmas paragens, como numa espécie de Road Fury sem fim.

De facto, o grande prazer das histórias apresentadas na UDWFG não parece ser de forma alguma a construção psicológica das suas personagens, nem tampouco a sua relevância social, numa hipotética reflexão do nosso mundo através dos seus aspectos tenebrosos. É tão-somente uma desculpa para criar mecanismos de avanços das acções, de correntezas por entre espaços, de novos modos de dispor a causalidade dos eventos, e esperar que eles, arrastando toda e qualquer das ideias dos worldbuildings de cada autor, crie um cadinho suficientemente poderoso. E essa parece ser, parece-nos, uma descrição tão apta quanto outra qualquer dos sortilégios negros proporcionados nestas páginas.

Nota final: agradecimentos a Pepedelrey, por nos ter colocado na senda desta publicação, e pelo desconto.  

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