19 de agosto de 2016

Les enfants de Sitting Bull. Baudoin (Bayou)

Como em quase toda a sua obra, como se se tratasse do seu baixo contínuo, quando Baudoin explora a memória nos seus livros não a faz com o intuito da sua exposição, mas sim no de a transformar numa forma de inquirição não apenas do passado mas da própria individuação de quem a possui. Em que medida é que a memória não nos pertence somente, mas nos faz? Que responsabilidades éticas temos nós de nos lembrarmos de uma certa forma? Que permite a recordação para repensar a história, seja ela pessoal ou familiar, histórica ou colectiva, cultural ou política? Colocando a pergunta de uma forma mais simplista e associada ao título do livro, modo pouco oblíquo de Baudoin sublinhar uma das questões principais do livro mas que não surge como matéria central: quem são os filhos de Sitting Bull? (Mais) 

De uma forma superficial, poderemos dizer que Les enfants de Sitting Bull é um livro dedicado ou em torno da figura do avô paterno, Félix Baudoin. O livro parece estar dividido em três momentos, não necessariamente nascendo de uma estrutura predeterminada com vista à sua eficiência, mas seguindo de modo claro as vontades e transmutações do autor. A primeira parte é quase totalmente uma apresentação factual da biografia do avô Félix, começando na sua infância na Nice “italiana”, a sua primeira carreira nos baleeiros até naufragar na costa estado-unidense, levando-o a uma nova aventura por terra, que o levaria à São Francisco do último quartel do século XIX, as selvagens fronteiras do Oeste, a Nova Iorque em construção vertical, finalmente o regresso ao mar e à terra Natal, onde se tornaria agulheiro de eléctrico. Mas muitos outros episódios, brevíssimos, são mencionados, quase como se se desejasse assinalar as paragens todas num mapa, que incluiriam acontecimentos históricos (a construção do Canal do Panamá, a guerra civil chilena, a emergência dos mitos do western), e intercalam-se na própria revisitação dos processos em que Baudoin, ainda em criança, com o irmão Piero, ouviam muitas destas histórias da boca do pai, mas outros membros da família também. É, aliás, a possibilidade de vermos os actos em que esses episódios chegavam aos ouvidos do autor quando criança que começa a estruturar Les enfants de um modo cheio de camadas, necessariamente porosas, entre os momentos.

Isso segue-se por um breve excurso (mas “excursos”, em Baudoin, nunca são uma forma justa de descrever estas linhas de fuga que, parecendo criar ideias paralelas, alimentam sempre o caudal central) sobre a passagem do próprio Baudoin pelos territórios dos nativos americanos, espalhados pelos territórios norte-americanos e canadianos, algo que havia exposto em Les essuie-glaces. Mais, e aliás: esta é a oportunidade que Baudoin tem para “corrigir” ou tornar mais claro que grande parte do que o movera na sua estada no Canadá como professor de desenho e banda desenhada, e como alguém que tentou pugnar por uma banda desenhada autóctone criada por inuítes e outros povos empregando os seus próprios instrumentos expressivos e temáticos com esta “nova” disciplina (fazendo sonhar produtivas “zonas de contacto”), tivera a sua base nos relatos de uma América mítica tecida pelas aventuras do avô, ainda que esse mito tenha sido drasticamente diferente daquele usualmente alimentado pela cultura popular do cinema e banda desenhada. Edmond e Piero tomam sempre “o lado do índio”, não gostam de cowboys nem soldados, tudo o que lhes parece um elogio da militarização e da violência os aborrece, preferem outro tipo de sonhos e fantasias (como é exposto em, por exemplo, Piero). Dessa forma, abrem-se excursos nos excursos quando uma sequência de ideias leva ao espectáculo itinerante de Buffalo Bill, o Wild West, em que Félix poderá ter participado e que lhe permitiria um contacto amistoso quando da passagem de Will Cody por Nice, mais tarde, é isso o que abre a considerações sobre o tratamento das populações autóctones pelos colonialistas e o governo norte-americano, a vida e missão de Sitting Bull, e então o desvendar da filosofia de abertura, amizade, possibilidade de diálogo que este chefe lakota preconizou e que é transformada pelo autor.

É assim que, por fim, na fase finalíssima do livro, a terceira, Baudoin apresenta um pastiche de um western invertido, brincando com todos os clichés e ridículo hiperbolizado do género, em que o herói implacável é um índio chamado “Rouge Gorge” (“Garganta vermelha”) e os “Bárbaros” - o título da história – são os brancos que pilham e matam e escalpam sem razão. Um exercício próximo ao daquela desconstrução que havia tentado em Crazyman, e da mesma forma servindo de comentário político e social sobre os imaginários construídos por esta linguagem, que são de tal forma poderosos que substituem muitas vezes o conhecimento verdadeiramente histórico.

No fundo, e não é apenas nesse segmento de uma banda desenhada – como a apelidar? Falsa? Ficcional? Fictícia? Hipotética? Todos esses termos parecem errados, já que ela está aqui presente, mas pretende assinalar um espaço ou uma expressão que nunca teve lugar (é algo problemático dizer que “nunca teve lugar”, uma vez que isso obrigar-nos-ia a olhar para a, pouca, é certo, mas real tradição de produção de banda desenhada criada por pessoas associadas às comunidades nativas norte-americanas e canadianas), mas enfim... Não é essa pequena bd, dizíamos, apenas a assinalar uma face distinta dos discursos dominantes da banda desenhada popular de décadas, mas o próprio discurso do livro, que aqui e ali se poderão aproximar de elementos “clássicos”, começando pela ideia de aventura (mas também o discurso de surdos entre os dois avôs, que lembrará os mal-entendidos de um Girassol). Esses espaços, então, usando esses elementos de modo diferente, colocam em causa essas antigas identidades e procuram novas identidades.

bastas vezes e noutros locais mesmo descrevemos como a tarefa da Baudoin tem sido a de construir uma espécie de celebração contínua de toda a sua vida, estendendo-a de modo dramático pelas pessoas que constituem a sua família. Falar de “autobiografia” não é, de modo algum, suficiente em Baudoin. Ora, o autor já havia criado um outro livrinho dedicado ao avô paterno, Made in U.S., um dos pequenos patte de mouche da L'Association. Muito dos “factos” apresentados aí da biografia de Félix Baudoin são os mesmos deste volume, outros apresentam pequenas disparidades, ou há pequenas diferenças de inclusão/exclusão. Parte terá a ver, sem dúvida, com a economia de ambas as narrativas, ou até mesmo os seus propósitos, mas não podemos deixar de sentir que outra parte tem a ver com os próprios processos da memória, que nunca é taxativa ou condensada em formas fechadas e repetidas. Quem conta um conto acrescenta um ponto, e isso não deixa de ser, ou até mais vincado, na memória própria dos indivíduos.

Baudoin tira partido aqui de toda uma vida de experimentação visual. Se existem livros mais coerentes em termos estilísticos e de metodologia – numa primeira fase, por imposição das regras de mercado às quais se adaptava – e uma clara curva de aprendizagem nessas tentativas de integração (de aguarelas, folhas de cadernos de desenho à vista no local, de apontamentos e esboços, de correcções), Les enfants é uma espécie de campo totalmente livre. Não é que não haja coerência interna. Quase todos os episódios de rememoração individual do próprio Baudoin, o que inclui revisitar desenhos de livros anteriores, surgem em desenho a linhas soltas e rabiscadas a negro contra fundo branco, mas a transformação da vida do avô em matéria visual é muito mais dramática e espectacular. A vinheta da prancha que mostramos neste parágrafo, por exemplo, parece ser um encontro feliz entre Turner, Giacometti e Yves Klein. Narrativamente, pretende-se demonstrar a fragilidade do veleiro entre as duas forças naturais e sublimes do oceano e dos céus, ambos capazes de atormentar esse pequeno punhado de madeira, quanto mais em esforço concertado. Mas ao mesmo tempo, a claridade com que essas formas são mostradas, esses azuis paradoxais evocando-se, opondo-se e entrosando-se um no outro criam ao mesmo tempo o substrato concreto e sólido que permitem a essa fantasma feito pelo homem de os atravessarem e, assim, aumentar a sua capacidade de nos maravilhar na sua travessia, senão a sua própria existência. Ainda outra metáfora da memória?


No fundo, é através dessas massas incongruentes entre si e toda a diversidade e recorrências – o autor reemprega alguns dos seus leitmotivs, desde os homens cujas cabeças são substituídas por objectos à criança isolada em cenário, a integração de documentação fotográfica, textual ou outra, a “interrupção” da faixa narrativa principal por pequenos segmentos narrativos oníricos ou de memórias – que o autor reforça a ideia de aventura, mas negando-lhe a perigosa familiaridade que temos com essa noção. Lemos uma autobiografia, e uma biografia de um aventureiro, e alguns pontos de histórias colectivas encaixadas umas nas outras, mas ao mesmo tempo é-nos colocada a pergunta de que responsabilidade queremos nós assumir, enquanto leitores, perante essa mesma história. A resposta então a quem são os filhos de Sitting Bull é um convite a nos incluirmos nela.  

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