23 de agosto de 2016

O beijo adolescente. Rafael Coutinho (Cachalote)


A adolescência é uma fase da vida dos seres humanos (pelo menos no “primeiro” mundo “ocidental”) caracterizada pela total turbulência. Não é mais a inocência da infância, pautada por um qualquer grau de protecção, mas também de maravilha, encantamento e potencialidade total do mundo, mas não é ainda a segurança e acalmia que a vida adulta poderá eventualmente permitir, com maior ou menor encantamento. É uma fase em que o medo do futuro, que surge como um peso inexorável e uma inconstante incerteza, vem traficar medos, ímpetos, vontades em formação, conturbadas insatisfações, e ensejos contraditórios. Mas é ao mesmo tempo um momento de potencialidade de desenvolvimento incrível. “Energia em estado bruto”, como explica uma das personagens. Um acesso a poderes especiais. (Mais)

Rafael Coutinho reimagina a adolescência como (e esperamos que esta descrição não seja redutora demais ou perca um elemento fundamental) uma espécie de aplicação e rede social a que os recém-adolescentes acedem aos 12 anos através de um beijo, desenvolvendo e libertando capacidades supra-humanas, as quais são passíveis de comodificação imediata, transformando este ou aquele adolescente num ícone da cultura popular e comercial, até que atinja os 18 anos, após o que essas capacidades se dissipam e o lançam numa vida adulta cinzenta e acomodada. A adolescência é, aqui, então, uma oportunidade de vogar ao máximo a onda do fetichismo material desejado e produzido por si mesmo, mas também é o objecto de desejo de várias frentes, de companhias a entidades, nem sempre claras nos seus propósitos. E por detrás disto tudo, uma intriga semi-policial pelo controle desses programas e, consequentemente, dos adolescentes eles mesmos e da sua potencialidade. Há monstros, companhias, pirataria informática, tribos urbanas, novas linguagens modas, tendências musicais, e por aí fora, metástases, afinal, de uma cultura de gestão de identidades.

O beijo adolescente parece inscrever-se nesse género contemporâneo a que se dá o nome de slipstream, em que elementos da ficção científica, da fantasia, da ficção sociológica e política, se vêm misturar para criar ambientes mágicos que não deixam de ser reflexões directas sobre o estado das nossas próprias sociedades. Nesse aspecto, O beijo adolescente encontrar-se-ia numa família bem alargada, que incluiria a escrita de China Mieville e a banda desenhada de André Pereira. Tal qual Safe Place, por exemplo, é claríssima a forma como Coutinho re-integra elementos provindo dos jogos de computador num quotidiano mais trivial, como forma de criação de identidade das personagens, e como todo e qualquer gesto desse mesmo quotidiano é passível de ser aproveitado comercialmente. Por outro lado, as questões de identidade e até a exuberância visual dessas identidades recorda-nos, mesmo que de modo tangencial, Private Eye. No entanto, apesar de ser possível, quem sabe, identificar alguns pontos mais específicos com a realidade brasileira, há um certo grau de desprendimento dessa realidade social para se criar uma tessitura um pouco mais alargada e aplicável a outros contextos distintos, ou pelo menos que aceite esta “redução cultural”. No entanto, a bateria e estratégia de escrita, pela sua qualidade de ambivalência e navegação em variadíssimas camadas de informação recordarão, ainda que de modo superficial, algum Morrison ou Ales Kot.

Esta trilogia de livros cria uma autêntica saga, a qual se estrutura em torno de um grupo mais ou menos coeso e concentrado de personagens que atravessam esta adolescência muito particular, as dinâmicas de grupos entre elas, envolvendo aspectos desde a rivalidade empresarial a elos amorosos, passando por alianças culturais e dúvidas existenciais. É difícil fazer uma sinopse, uma vez que as linhas de divisão de intrigas e sub-intrigas é complexa, e a organização temporal e de acções não é de forma alguma linear. Uma última parte, por exemplo, laça a atenção em torno de apenas uma personagem, uma espécie de pastor evangélico batalhando contra toda a cultura do “beijo adolescente”, e que parece acelerar e expor um futuro, mas que não é totalmente desempacotado.

Cada página corresponde a uma unidade a mais do que um nível. A sua pré-publicação em páginas soltas levou à sua criação em stacatto, não apenas assinaladas pela repetição do título da série das mais diversas maneiras, mais ou menos integradas no contexto diegético da história (à la logotectura de Eisner) mas pela própria estrutura da escrita. Não apenas são construídas individualmente em termos estruturais e visuais, como narrativamente também se concentram num momento ou etapa de toda a narrativa, ora focando-se num acontecimento, num grupo determinado das muitas personagens da saga, ou no desenvolvimento de um qualquer passo da história. Não há propriamente uma navegação fluida de página a página, mas antes um avanço por supetões e fragmentos que apenas em retrospectiva se coalescem num corpo maior. Existem mesmo partes que parecem revelar momentos anteriores em termos cronológicos ao “presente” seguido, e há saltos elípticos significativos, o que obriga a uma gestão da memória e releitura que, de certa forma, está em perfeita consonância com o tema de O beijo adolescente.

Os protagonistas atravessam todo um rol de crises e construções de identidade, e o leitor acompanha essas tempestades de negociações complexas, tremendas e irresolutas entre aquilo que a um momento parece ser a maior das conquistas do individualismo inconformista para se revelar tão-somente a total integração num papel expectável e, mais importante, aproveitável no jogo dos valores comerciáveis. Parece estarmos a observar um estranho xadrez de interesse, mas nem sempre nos será claro quem move as peças, ou sequer que movimentos foram cumpridos, se nos for mesmo possível compreender que peças afinal foram movidas. Grande parte do prazer da leitura de O beijo adolescente encontrar-se-á menos na reconstrução de um puzzle de elementos variados num padrão totalmente compreensível e subsumível a explicações claras do que à própria natureza fluida, fragmentária e movediça desse puzzle. O que não deixa de ser uma metáfora ideal à passagem pela adolescência, construída mais por troços aqui brilhantes e ali negros do que de uma fiada coerente e unívoca.

A publicação é próxima do tablóide, muito ao alto. Coutinho tira partido desse formato criando composições variadas, a maior parte das quais relativamente regulares, mas por vezes abdicando da diagramação convencional para oferecer estruturas em cascata ou imagens mais livres, e que obrigam a protocolos de leitura mais particulares. A cor (que tem um papel integrado na narrativa, uma vez que apenas os adolescentes são coloridos, ao passo que os adultos surgem a preto-e-branco e cinzentos, desde variações apenas a linha até gradações mais complexas; e uma das crises é a “perda de cor” pela parte dos ex-adolescentes) é explorada de maneira expressiva, espectacular e psicadélica, criando várias camadas de realidade. Apesar do seu imenso lavrar da arte da linha que já havíamos confirmado com Cachalote, há uma notória apuração do traço desde o primeiro ao último volume, com a estilização das personagens a tornar-se cada vez mais fluida e caligráfica, a solidez das propostas de composição a aumentar, e a valência dos pormenores e cor a ganhar cada vez mais terreno.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta das publicações, e P. F., por sofrer o transporte.  

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