10 de novembro de 2016

Big Kids. Michael Deforge (Drawn & Quarterly)

Apesar do seu formato, um livrinho de bolso de capa cartonada, esta é bem capaz de ser a maior obra até à data do autor, confirmando-o não apenas como um inventor de novas formas de criar banda desenhada em termos figurativos, de composição e no uso das cores, o que já havíamos discutido a propósito de vários dos seus títulos anteriores, como também a um nível de dramatismo, exploração emotiva e relevância social. Deforge tem-se revelado como um verdadeiro autor “completo”, não no sentido clássico de “trabalhar sozinho”, mas antes de “moldar todos os elementos passíveis de uso numa banda desenhada”. A leitura dos seus projectos são de facto experiências cumulativas de atenção para com todos os factores expressivos que ele acessa. De uma forma sucinta, Big Kids é uma novela em torno da vida de um adolescente e o momento em que, nessa fase da vida, se atravessam transformações radicais a todos os níveis, não apenas físicas, como em termos de consciência, relacionamento social, personalidade, identidade. (Mais) 

Mas Deforge não nos apresenta uma simples narrativa slice of life, com os instrumentos costumeiros do realismo contemporâneo da banda desenhada, e procura antes fazê-la atravessar por um crivo psicadélico de vários outros géneros. Poder-se-ia falar de ficção científica, de absurdo, de fantasia, ou até aquele género que David Cronenberg preconizou e popularizou no cinema, do body horror. Depois de um breve prelúdio em que todas as personagens são apresentadas, assim como a situação do jovem, relativamente isolado no que parece ser uma comunidade urbana, e aprendendo ainda a gerir a sua experimentação com a sexualidade, o rapaz passa por uma transformação radical: transforma-se numa espécie de árvore. Não é que o jovem se transforma isoladamente num monstro-árvore, distinto de todos os outros, e que essa realidade se torne uma monstruosidade que alimentaria a intriga. A transformação é como que interna, psicológica, da sua percepção, permitindo-lhe passar a ver o mundo de um modo distinto: e nessa percepção, algumas pessoas são “árvores” ao passo que outras são “galhos”.


O mundo não se altera e todas as relações se mantêm tal qual. As pessoas-árvore têm a capacidade de se aperceberem do mundo com uma camada adicional de sensações: os sons são vistos como cores, a música ganha uma forma corpórea e animal, as gotas de chuva são sentidas por dentro do corpo, as sensações físicas são traduzidas em luzes e formas, as lágrimas despedem-se em feixes em todas as direcções. Aparentemente, as pessoas-galho não têm essa capacidade, estabelecendo-se desde logo uma hierarquia dicotómica, mas que o autor explora nas mais diversas formas dinâmicas, pelas relações confusas entre “árvores” e “galhos”, se bem que os primeiros estão sempre num nível superior de consciência e percepção. Os segundos, naturalmente, são “apenas” pessoas. Esta é a parte de absurdo da narrativa, em que afinal aquilo que nos pareceria surpreendente e até monstruoso é afinal uma tranquila e trivial experiência para as personagens desse universo narrativo, como ocorre em A metamorfose ou O rinoceronte.

Um dos desvios curiosos do livro é quando April, amiga e companheira de casa do protagonista, está a desenvolver um jogo digital no qual cria avatares que pretendem devolver, digamos assim, a experiência ante-árvore aos humanos-árvores, criando uma complexa rede sobre percepção, experiência, nostalgia, e questões afectas à cibernética e temáticas pós-humanas. Todas as imagens ópticas e fotográficas são adaptadas à percepção-árvore, mas não as imagens gráficas, que mantêm a sua dimensão representativa, abrindo caminho a muitas interpretações filosóficas sobre a qualidade semióticas das imagens (ópticas versus gráficas), da percepção e da relação humana. Pasto fértil.

Mas Deforge, que é um autor que tira o máximo prazer na exploração das linhas e cores, sobre formas psicadélicas, dedica grande parte da narrativa – quase banal – precisamente às tais novas sensações, ou aos novos modos de sensação, que estão reservadas à fase-árvore do protagonista, transformando Big Kids igualmente numa inteligente exploração sobre as potencialidades físicas e corpóreas, não apenas dos seres humanos mas nesta tal dimensão extraordinária. Nesse sentido, o emprego do adjectivo “surreal”, neste caso, não seria somente uma interjeição esvaziada de entusiasmo, mas um correcto descritivo atento ao que essa palavra representa em termos artísticos e históricos: trata-se de facto de uma vivência num nível acima do do realismo, algo para além da vigília e da norma, que atenta a outras formas de existência. Tudo isso, ainda assim, para criar uma novela estrambólica, desassossegada e até incómoda sobre esta experiência, de resto partilhável por muitos adolescentes.


A um só tempo universal e único, originalmente surpreendente e comum, Big Kids é um pequeno marco distinto na forma de criar banda desenhada.
Nota: as imagens foram colhidas da internet. 

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