Apesar do seu formato, um livrinho de
bolso de capa cartonada, esta é bem capaz de ser a maior obra até à
data do autor, confirmando-o não apenas como um inventor de novas
formas de criar banda desenhada em termos figurativos, de composição
e no uso das cores, o que já havíamos discutido a propósito de
vários dos seus títulos anteriores, como também a um nível de
dramatismo, exploração emotiva e relevância social. Deforge tem-se
revelado como um verdadeiro autor “completo”, não no sentido
clássico de “trabalhar sozinho”, mas antes de “moldar todos os
elementos passíveis de uso numa banda desenhada”. A leitura dos
seus projectos são de facto experiências cumulativas de atenção
para com todos os factores expressivos que ele acessa. De uma forma
sucinta, Big Kids é uma novela em torno da vida de um
adolescente e o momento em que, nessa fase da vida, se atravessam
transformações radicais a todos os níveis, não apenas físicas,
como em termos de consciência, relacionamento social, personalidade,
identidade. (Mais)
Mas Deforge não nos apresenta uma
simples narrativa slice of life, com os instrumentos
costumeiros do realismo contemporâneo da banda desenhada, e procura
antes fazê-la atravessar por um crivo psicadélico de vários outros
géneros. Poder-se-ia falar de ficção científica, de absurdo, de
fantasia, ou até aquele género que David Cronenberg preconizou e
popularizou no cinema, do body horror. Depois de um breve
prelúdio em que todas as personagens são apresentadas, assim como a
situação do jovem, relativamente isolado no que parece ser uma
comunidade urbana, e aprendendo ainda a gerir a sua experimentação
com a sexualidade, o rapaz passa por uma transformação radical:
transforma-se numa espécie de árvore. Não é que o jovem se
transforma isoladamente num monstro-árvore, distinto de todos os
outros, e que essa realidade se torne uma monstruosidade que
alimentaria a intriga. A transformação é como que interna,
psicológica, da sua percepção, permitindo-lhe passar a ver o mundo
de um modo distinto: e nessa percepção, algumas pessoas são
“árvores” ao passo que outras são “galhos”.
O mundo não se altera e todas as
relações se mantêm tal qual. As pessoas-árvore têm a capacidade
de se aperceberem do mundo com uma camada adicional de sensações:
os sons são vistos como cores, a música ganha uma forma corpórea e
animal, as gotas de chuva são sentidas por dentro do corpo, as
sensações físicas são traduzidas em luzes e formas, as lágrimas
despedem-se em feixes em todas as direcções. Aparentemente, as
pessoas-galho não têm essa capacidade, estabelecendo-se desde logo
uma hierarquia dicotómica, mas que o autor explora nas mais diversas
formas dinâmicas, pelas relações confusas entre “árvores” e
“galhos”, se bem que os primeiros estão sempre num nível
superior de consciência e percepção. Os segundos, naturalmente,
são “apenas” pessoas. Esta é a parte de absurdo da narrativa,
em que afinal aquilo que nos pareceria surpreendente e até
monstruoso é afinal uma tranquila e trivial experiência para as
personagens desse universo narrativo, como ocorre em A metamorfose
ou O rinoceronte.
Um dos desvios curiosos do livro é
quando April, amiga e companheira de casa do protagonista, está a
desenvolver um jogo digital no qual cria avatares que pretendem
devolver, digamos assim, a experiência ante-árvore aos
humanos-árvores, criando uma complexa rede sobre percepção,
experiência, nostalgia, e questões afectas à cibernética e
temáticas pós-humanas. Todas as imagens ópticas e fotográficas
são adaptadas à percepção-árvore, mas não as imagens gráficas,
que mantêm a sua dimensão representativa, abrindo caminho a muitas
interpretações filosóficas sobre a qualidade semióticas das
imagens (ópticas versus gráficas), da percepção e da
relação humana. Pasto fértil.
Mas Deforge, que é um autor que tira o
máximo prazer na exploração das linhas e cores, sobre formas
psicadélicas, dedica grande parte da narrativa – quase banal –
precisamente às tais novas sensações, ou aos novos modos de
sensação, que estão reservadas à fase-árvore do protagonista,
transformando Big Kids igualmente numa inteligente exploração
sobre as potencialidades físicas e corpóreas, não apenas dos seres
humanos mas nesta tal dimensão extraordinária. Nesse sentido, o
emprego do adjectivo “surreal”, neste caso, não seria somente
uma interjeição esvaziada de entusiasmo, mas um correcto descritivo
atento ao que essa palavra representa em termos artísticos e
históricos: trata-se de facto de uma vivência num nível acima do
do realismo, algo para além da vigília e da norma, que atenta a
outras formas de existência. Tudo isso, ainda assim, para criar uma
novela estrambólica, desassossegada e até incómoda sobre esta
experiência, de resto partilhável por muitos adolescentes.
A um só tempo universal e único,
originalmente surpreendente e comum, Big Kids é um pequeno
marco distinto na forma de criar banda desenhada.
Nota: as imagens foram colhidas da internet.
Nota: as imagens foram colhidas da internet.
Sem comentários:
Enviar um comentário