Apesar de não conter uma lombada, este volume de mais de
quarenta páginas, todas elas ocupadas por matéria gráfica-narrativa,
constitui-se um verdadeiro álbum, apresentando uma narrativa organizada em
torno de um só núcleo. Conforme havia sido prometido em As Crónicas da Cemitéria, há todo um universo de referências que é repetido, como se o autor
trabalhasse sob a noção de “tema-e-repetição”, ou algo que equivalesse à
metáfora de melodias sobre um tema. De novo vemos o regresso da figura
antropomórfica da morte, ora sob a imagem de uma encapuzada de gadanha ora sob
a de uma caveira, guitarras clássicas, espadas, ampulhetas e garrafas falantes,
e personagens advindas de um caldo genérico de high fantasy e sword
& sorcery: guerreiros cimérios, princesas sedutoras, druidas, criaturas
maléficas, corvos, e acrescentando-se a este bestiário criaturas do espaço,
como Chewbaccas ferozes. (Mais)
As conversas entre esses tais objectos abrem espaço a que a
caveira partilhe histórias antigas com os companheiros de horas perdidas, e são
essas histórias-dentro-da-história que ocupam a parte de leão da narrativa, numa
estrutura clássica. A primeira é de natureza trágica, entre um baladeiro mágico
e a sua amante, e a outra mais cómica, sobre uma alma aprisionada no corpo de
um rouxinol, mas sempre bebendo de um mesmo substrato. O que é curioso é que,
mesmo nestas fórmulas que parecem genéricas e apresentadas de modo rápido e
sumário, Rudolfo Mariano acaba por criar uma curiosa mitologia, densa, senão mesmo
um apanhado de uma matéria que poderíamos imaginar como sendo passível de
desdobramento em múltiplos volumes. Se bem que crie redes de ligação quer com
mitos cristãos (a queda dos anjos rebeldes e a criação do abismo) quer com
histórias mais ou menos reconhecíveis (desde Tolkien à Marvel), Outro mundo
acaba por erigir um universo muito particular. Tendo em conta ainda que estas
personagens que emolduram as narrativas são recorrentes nos trabalhos de
Mariano (em trabalhos publicados noutros locais e mesmo online), acreditamos
que a longo prazo estejamos perante um verdadeiro monumento de worldbuilding.
Visualmente, estamos perante uma aturada e paciente
monumentalidade, de facto, em que o horror vacui opera como princípio,
não havendo canto onde não estejam presentes densas tramas ou jogos de linhas
criando texturas, que tanto servirão para construir objectos sólidos (as
paredes de granito dos castelos e montanhas, as nuvens pesadas no céu, os
arranjos florais de relâmpagos) ou efeitos de moldura e decorativismo que são
tão simbólicos como ambientais. As histórias surgem em páginas engalanadas de
forma paciente e específica, trazendo uma certa onda de Arts & Crafts ou à
la Ivan Bilibin, pós-metal, porém.
Em termos textuais, o autor também cria situações
deliciosas, encontrando um estranho equilíbrio entre uma linguagem dramática,
épica e formulaica, como se espera deste tipo de aventuras e géneros, e uma
abordagem mais descontraída, como se de facto se tratasse de um contador de
histórias amistoso falando com um público à mão de semear.
Apesar do seu aparente universo contido, em torno do terror,
do heavy metal, do épico sci-fi/high-fantasy, a verdade é que o autor demonstra
que haverá espaço para um desenvolvimento muito curioso e quase universal de
histórias comoventes, divertidas e tremendas com estas suas personagens. E seja
dos cantos mais afastados do universo ou dos abismos mais profundos dos
avernos, todas elas partilham características que conheceremos bem, ao redor de
um fogo e de uma par de cervejas.
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