Este pequeno e estreito livro não
chega a trezentas páginas, sendo menos de duzentas aquelas que
contêm banda desenhada propriamente dita. Como Brown já vinha
fazendo desde os seus primeiros livros “sérios”, The Playboy
e I Never Liked You, grande parte do volume é composto por
notas, fontes bibliográficas explanadas, ancoramento que serve para
reforçar ou re-contextualizar a sua obra banda desenhística.
Escusado será adiantar que “a obra vale por si”, ou argumentos
quejandos, já que este território tem espaço para toda a espécie
de práticas, inclusive, o que nos parece ter aqui lugar, a de nos
apresentar um “romance de tese”. Que tese será essa, já é um
pouco mais difuso ou diluído, mas arriscar-nos-íamos a afirmar que
se trataria de uma defesa da prostituição (ou alguma, se
preferirem) como não apenas uma expressão livre da sexualidade como
de um caminho legítimo para a assunção de poder da parte das
mulheres (em determinadas sociedades, para mais, a ocidental de
matriz judaico-cristã). (Mais)
O livro é-nos apresentado como uma
apresentação em cadeia de várias adaptações dos episódios
bíblicos, os quais são apresentados como unidades isoladas. Esses
episódios são os seguintes: a história de Caim e Abel, do
crescimento aos caminhos distintos, a oferenda a Deus e a preferência
deste, e o assassinato de Abel por Caim; o episódio em que Tamar se
deita com o pai do seu marido Er, que morrera, para poder gerar um
filho; o de Rahab, a meretriz de Jericó que ajudaria os Israelitas a
conquistar a cidade; quase todo o livro de Rute; a relação entre o
rei David e Betsabé; a parábola de Jesus dos talentos; e a do filho
pródigo; a unção de Jesus por Maria em Betânia; e um estranho
momento de decisão textual por São Mateus Evangelista. Nos
suplementos, ainda temos a adaptação da história de Job.
O propósito de Chester Brown não é
uma adaptação da Bíblia, encadeada enquanto unidades
textuais incrustadas, mas antes salientar episódios, acontecimentos
e interpretações que servirão um propósito ulterior, espelhado no
sub-título da obra. Através destas sucessões de pequenas anedotas
literárias, procura-se entender a “prostituição e a obediência
religiosa na Bíblia”. Mesmo quando os episódios não têm
qualquer ligação directa com a prostituição, como ocorre com Caim
e Abel e as parábolas de Jesus (fora os comentários sobre empregar
prostitutas), é a questão da obediência/desobediência à Palavra
do Senhor que irá reforçar depois os papéis assumidos pelas
figuras femininas, sejam elas meretrizes profissionais sejam elas
mulheres que se viram obrigadas a estratagemas análogos à da
prostituição para poderem repor a justiça que lhes fora negada
(Tamar e Rute, sobretudo). Mas ao mesmo tempo, também serve para
propor uma tese que foi esgrimida desde, pelo menos, os séculos
II-III E.C., como na polémica entre Celso e Orígenes: a de que
Maria, mãe de Jesus, teria sido uma prostituta.
Este último ponto nunca é apresentado
“factualmente” nas adaptações (quer dizer, não vemos nenhuma
dramatização dessa cena), mas todos os episódios servem para
reforçar o momento em que vemos São Mateus, que não sabe como
tomar a decisão de indicar que Maria era uma prostituta, a ponderar
essa questão, e, graças a uma criança prostituta, a incluir todas
as mulheres indicadas acima como a genealogia matricial de Jesus,
abrindo espaço às “pistas” que são, aqui, interpretadas por
Brown. Não se trata tanto de um “código Da Vinci”, mas não
deixa de haver um sistema de interpretação textual análogo, que é
desvendado e apresentado pelo próprio livro.
Mary Wept Over the Feet of Jesus
vê-se como um corolário perfeito dos interesses de Chester
Brown, já antes expressos na banda desenhada. Por um lado,
recordemos que ao longo das páginas da sua série de comic books,
Yummy Fur e depois Underwater, Brown havia iniciado uma
espécie de versão em banda desenhada do Evangelho segundo São
Mateus, no qual retratava um Jesus austero, algo impaciente com
os seus seguidores pouco perspicazes, mas que se movia por uma
vontade férrea de uma ética e justiça que não se podia compadecer
de forma alguma com compromissos. Por outro, a sua vida como cliente
assumido de serviços de prostituição levara a Paying for it,
uma espécie de mescla entre a autobiografia e o ensaio sobre a dita
“mais antiga profissão do mundo”.
O autor apresenta uma rede imensa de
bibliografia empregue, sublinhando quais os autores que mais o
moveram, ora em termos de apresentação de fontes alternativas às
versões canónicas bíblicas (recorrendo não apenas aos apócrifos
como a fontes anteriores paralelas, etc.) ora em termos de
interpretação dos próprios textos. Esta última tarefa é
monumental e hercúlea, e é tão impossível como pateta querer numa
frase diminuir a complexidade dos estudos bíblicos. À sua
compreensão não bastará a pistis, a fé, que se reserva aos
crente, mas conhecimentos transversais do campo linguístico,
histórico, arqueológico, sociológico, textual, político, e por aí
fora, em que cada um dos factores se entrosa no outro e os altera.
Por isso, não é de surpreender que a leitura de fontes académicas
possa dar como fruto interpretações bem distintas, se não mesmo
contraditórias. Não terá a ver com aspectos estritamente
religiosos (“é Cristo filho de Deus?”, “é o filho da mesma
substância que o Pai?”), mas antes questões quase básicas sobre
a vivência da Palestina do século I (“seria Jesus casado?”,
“como compreender a noção de virgindade sexual de Maria?”,
“qual o papel das mulheres na sociedade nazarena?”). Brown usa
algumas das melhores traduções (com Robert Alter à cabeça, mas
também Stephen Mitchell), assim como lança mão tanto de fontes que
abordam a figura de Cristo como uma criação mística como uma
figura histórica (tendendo mais para esta última interpretação),
e ainda vários nomes sonantes da hermenêutica bíblica à luz dos
mais recentes desenvolvimentos culturais (Alice Bach, Yoram Hazony,
ou Hugh J. Schonfield). Não sendo Brown um académico propriamente
dito, haverá outras fontes que poderia ter empregue, seguido métodos
mais rigorosos, ou ter trabalhado sobre os documentos originais ele
mesmo, e não fontes secundárias, mas essa não pode ser uma razão
para não encontrar neste livro um edifício criado com cuidado e
propósito.
Todavia, um dos problemas é que
Chester Brown parece tomar as suas interpretações como, e o
trocadilho é propositado, a palavra do senhor. São vários os
momentos em que, esquecendo a humildade, afirma que tal ou tal autor
faz uma interpretação que lhe parece errada, ou então toma uma
lição de outro autor como cabal e inabalável. Não é que haja
qualquer problema em tomar uma decisão e posicionamento que leve a
uma representação específica (a utilização de um véu ou
turbante num episódio, a disposição de uma casa e os seus papéis
sociais, a compreensão de um episódio e as suas metáforas
textuais, etc.), mas há como que uma escolha empedernida que não
abre espaço à indecisão ou dúvida. Às vezes, isso leva a
escolhas menos felizes em termos narrativos, como quando na adaptação
do livro de Rute (no livro, “Ruth”), Noemi lhe diz para
“descobrir os pés de Boaz”, vemos Rute a pensar literalmente
“Pés... isso é um eufemismo para pénis”). A credibilidade ou
naturalidade da cena é demolida.
Não é que Brown esteja muito
preocupado com uma abordagem de devolução histórica. Este livro
não é aparentado ao Genesis de Crumb ou ao Yeshuah de Laudo Ferreira, apesar da “matéria bíblica”. Como dissemos
acima, é “de tese”: daí que a abordagem costumeira de Brown
atinja aqui graus de apuração máximos, com os traços diminuídos
a um mínimo, como que apenas para assinalar “homem”, “mulher”,
“cajado”, “casa”. Cada página é apresentada numa inexorável
gralhe de 4 vinhetas verticais, algumas das quais ocupadas por
textos, e as figuras pequenas e desproporcionadas parecem cifras para
os eventos apresentados. A elegância é total, a sua leitura e
legibilidade é célere, reforçando essa ideia de alimentar uma
concepção, mais do que um mero prazer narrativo-figurativo. A capa, porém, não deixa dúvida, em que uma forma de mandorla, marcada por uma lágrima-gota de sangue esquemática tombando de um livro branco em aberto convida a interpretações simbólicas relativamente claras.
Brown indica que quer mostrar algumas
destas personagens, sobretudo Caim e os protagonistas das parábolas,
como favorecidos por Deus precisamente por desobedecerem, mostrando
como esses desvios da expectativa são na verdade a prática mais
real. Isso ajudaria a transmitir melhor a mensagem “herética” do
próprio Brown, que se assume como cristão, mas desviante. A própria
leitura activa da Bíblia já é suficiente para assustar os mais
incautos e àqueles apenas habituados às versões infantilizadas da
catequese, mas é sempre curioso ver os seus aproveitamentos por
artistas que as sublinham de forma criativa (pessoalmente, isto
recordaria a agreste versão musicada de episódios semelhantes pelos
The Residents, com o álbum Wormwood) e, neste caso, para
sustentar uma visão muito particular.
Nota final: agradecimentos a Gabriel
Martins, pelo empréstimo do livro.
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