21 de novembro de 2016

Mary Wept Over the Feet of Jesus. Chester Brown (Drawn & Quarterly)

Este pequeno e estreito livro não chega a trezentas páginas, sendo menos de duzentas aquelas que contêm banda desenhada propriamente dita. Como Brown já vinha fazendo desde os seus primeiros livros “sérios”, The Playboy e I Never Liked You, grande parte do volume é composto por notas, fontes bibliográficas explanadas, ancoramento que serve para reforçar ou re-contextualizar a sua obra banda desenhística. Escusado será adiantar que “a obra vale por si”, ou argumentos quejandos, já que este território tem espaço para toda a espécie de práticas, inclusive, o que nos parece ter aqui lugar, a de nos apresentar um “romance de tese”. Que tese será essa, já é um pouco mais difuso ou diluído, mas arriscar-nos-íamos a afirmar que se trataria de uma defesa da prostituição (ou alguma, se preferirem) como não apenas uma expressão livre da sexualidade como de um caminho legítimo para a assunção de poder da parte das mulheres (em determinadas sociedades, para mais, a ocidental de matriz judaico-cristã). (Mais) 
O livro é-nos apresentado como uma apresentação em cadeia de várias adaptações dos episódios bíblicos, os quais são apresentados como unidades isoladas. Esses episódios são os seguintes: a história de Caim e Abel, do crescimento aos caminhos distintos, a oferenda a Deus e a preferência deste, e o assassinato de Abel por Caim; o episódio em que Tamar se deita com o pai do seu marido Er, que morrera, para poder gerar um filho; o de Rahab, a meretriz de Jericó que ajudaria os Israelitas a conquistar a cidade; quase todo o livro de Rute; a relação entre o rei David e Betsabé; a parábola de Jesus dos talentos; e a do filho pródigo; a unção de Jesus por Maria em Betânia; e um estranho momento de decisão textual por São Mateus Evangelista. Nos suplementos, ainda temos a adaptação da história de Job.

O propósito de Chester Brown não é uma adaptação da Bíblia, encadeada enquanto unidades textuais incrustadas, mas antes salientar episódios, acontecimentos e interpretações que servirão um propósito ulterior, espelhado no sub-título da obra. Através destas sucessões de pequenas anedotas literárias, procura-se entender a “prostituição e a obediência religiosa na Bíblia”. Mesmo quando os episódios não têm qualquer ligação directa com a prostituição, como ocorre com Caim e Abel e as parábolas de Jesus (fora os comentários sobre empregar prostitutas), é a questão da obediência/desobediência à Palavra do Senhor que irá reforçar depois os papéis assumidos pelas figuras femininas, sejam elas meretrizes profissionais sejam elas mulheres que se viram obrigadas a estratagemas análogos à da prostituição para poderem repor a justiça que lhes fora negada (Tamar e Rute, sobretudo). Mas ao mesmo tempo, também serve para propor uma tese que foi esgrimida desde, pelo menos, os séculos II-III E.C., como na polémica entre Celso e Orígenes: a de que Maria, mãe de Jesus, teria sido uma prostituta.

Este último ponto nunca é apresentado “factualmente” nas adaptações (quer dizer, não vemos nenhuma dramatização dessa cena), mas todos os episódios servem para reforçar o momento em que vemos São Mateus, que não sabe como tomar a decisão de indicar que Maria era uma prostituta, a ponderar essa questão, e, graças a uma criança prostituta, a incluir todas as mulheres indicadas acima como a genealogia matricial de Jesus, abrindo espaço às “pistas” que são, aqui, interpretadas por Brown. Não se trata tanto de um “código Da Vinci”, mas não deixa de haver um sistema de interpretação textual análogo, que é desvendado e apresentado pelo próprio livro.

Mary Wept Over the Feet of Jesus vê-se como um corolário perfeito dos interesses de Chester Brown, já antes expressos na banda desenhada. Por um lado, recordemos que ao longo das páginas da sua série de comic books, Yummy Fur e depois Underwater, Brown havia iniciado uma espécie de versão em banda desenhada do Evangelho segundo São Mateus, no qual retratava um Jesus austero, algo impaciente com os seus seguidores pouco perspicazes, mas que se movia por uma vontade férrea de uma ética e justiça que não se podia compadecer de forma alguma com compromissos. Por outro, a sua vida como cliente assumido de serviços de prostituição levara a Paying for it, uma espécie de mescla entre a autobiografia e o ensaio sobre a dita “mais antiga profissão do mundo”.

O autor apresenta uma rede imensa de bibliografia empregue, sublinhando quais os autores que mais o moveram, ora em termos de apresentação de fontes alternativas às versões canónicas bíblicas (recorrendo não apenas aos apócrifos como a fontes anteriores paralelas, etc.) ora em termos de interpretação dos próprios textos. Esta última tarefa é monumental e hercúlea, e é tão impossível como pateta querer numa frase diminuir a complexidade dos estudos bíblicos. À sua compreensão não bastará a pistis, a fé, que se reserva aos crente, mas conhecimentos transversais do campo linguístico, histórico, arqueológico, sociológico, textual, político, e por aí fora, em que cada um dos factores se entrosa no outro e os altera. Por isso, não é de surpreender que a leitura de fontes académicas possa dar como fruto interpretações bem distintas, se não mesmo contraditórias. Não terá a ver com aspectos estritamente religiosos (“é Cristo filho de Deus?”, “é o filho da mesma substância que o Pai?”), mas antes questões quase básicas sobre a vivência da Palestina do século I (“seria Jesus casado?”, “como compreender a noção de virgindade sexual de Maria?”, “qual o papel das mulheres na sociedade nazarena?”). Brown usa algumas das melhores traduções (com Robert Alter à cabeça, mas também Stephen Mitchell), assim como lança mão tanto de fontes que abordam a figura de Cristo como uma criação mística como uma figura histórica (tendendo mais para esta última interpretação), e ainda vários nomes sonantes da hermenêutica bíblica à luz dos mais recentes desenvolvimentos culturais (Alice Bach, Yoram Hazony, ou Hugh J. Schonfield). Não sendo Brown um académico propriamente dito, haverá outras fontes que poderia ter empregue, seguido métodos mais rigorosos, ou ter trabalhado sobre os documentos originais ele mesmo, e não fontes secundárias, mas essa não pode ser uma razão para não encontrar neste livro um edifício criado com cuidado e propósito.

Todavia, um dos problemas é que Chester Brown parece tomar as suas interpretações como, e o trocadilho é propositado, a palavra do senhor. São vários os momentos em que, esquecendo a humildade, afirma que tal ou tal autor faz uma interpretação que lhe parece errada, ou então toma uma lição de outro autor como cabal e inabalável. Não é que haja qualquer problema em tomar uma decisão e posicionamento que leve a uma representação específica (a utilização de um véu ou turbante num episódio, a disposição de uma casa e os seus papéis sociais, a compreensão de um episódio e as suas metáforas textuais, etc.), mas há como que uma escolha empedernida que não abre espaço à indecisão ou dúvida. Às vezes, isso leva a escolhas menos felizes em termos narrativos, como quando na adaptação do livro de Rute (no livro, “Ruth”), Noemi lhe diz para “descobrir os pés de Boaz”, vemos Rute a pensar literalmente “Pés... isso é um eufemismo para pénis”). A credibilidade ou naturalidade da cena é demolida.


Não é que Brown esteja muito preocupado com uma abordagem de devolução histórica. Este livro não é aparentado ao Genesis de Crumb ou ao Yeshuah de Laudo Ferreira, apesar da “matéria bíblica”. Como dissemos acima, é “de tese”: daí que a abordagem costumeira de Brown atinja aqui graus de apuração máximos, com os traços diminuídos a um mínimo, como que apenas para assinalar “homem”, “mulher”, “cajado”, “casa”. Cada página é apresentada numa inexorável gralhe de 4 vinhetas verticais, algumas das quais ocupadas por textos, e as figuras pequenas e desproporcionadas parecem cifras para os eventos apresentados. A elegância é total, a sua leitura e legibilidade é célere, reforçando essa ideia de alimentar uma concepção, mais do que um mero prazer narrativo-figurativo. A capa, porém, não deixa dúvida, em que uma forma de mandorla, marcada por uma lágrima-gota de sangue esquemática tombando de um livro branco em aberto convida a interpretações simbólicas relativamente claras.

Brown indica que quer mostrar algumas destas personagens, sobretudo Caim e os protagonistas das parábolas, como favorecidos por Deus precisamente por desobedecerem, mostrando como esses desvios da expectativa são na verdade a prática mais real. Isso ajudaria a transmitir melhor a mensagem “herética” do próprio Brown, que se assume como cristão, mas desviante. A própria leitura activa da Bíblia já é suficiente para assustar os mais incautos e àqueles apenas habituados às versões infantilizadas da catequese, mas é sempre curioso ver os seus aproveitamentos por artistas que as sublinham de forma criativa (pessoalmente, isto recordaria a agreste versão musicada de episódios semelhantes pelos The Residents, com o álbum Wormwood) e, neste caso, para sustentar uma visão muito particular.

Nota final: agradecimentos a Gabriel Martins, pelo empréstimo do livro.

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