Livro curto, Acédia é o
primeiro trabalho de longo fôlego a solo de André Coelho que se
apresenta como uma narrativa coerente, e não colecção de desenhos
ou improviso em torno de um tema. Novela concentrada, negra,
lacónica, a escrita de Coelho espelha-se em todos os elementos que
compõem a narrativa e é necessário ler a sua forma e superfície
para libertar os seus significados. Tal qual o tema proposto, há uma
realidade que nos é apresentada mas cujo desvendamento se associa à
percepção do leitor e poderá mesmo ser intransmissível. (Mais)
À guisa de sinopse, poder-se-ia dizer
que este é um livro que segue a vida de um jovem homem, Daniel, nos
primeiros momentos em que um aparente tumor na cabeça o leva a ter
alucinações ou distorções de percepção que vem agravar o seu
estado de espírito, abalado por outros acontecimentos da sua vida. A
história é enquadrada por três tentativas de contacto pelos seus
médicos, e que permitem cartografar fases ou atitudes de Daniel para
com essa situação. Se bem que talvez fosse também possível ler
essas cenas recorrentes como apenas uma, e estarmos perante uma
narrativa cuja organização temporal não é linear, mas recursiva.
Essa decisão alteraria a consideração dos elementos, mas
mantermo-nos-emos numa leitura conservadora.
A questão da distorção da realidade
através de uma hipotética doença física é, naturalmente, uma das
grandes heranças dicksianas (de Philip L. Dick) de Acédia,
pensando sobretudo na trilogia Valis, se bem que o universo do
livro do Coelho atém-se a um quadro de referências quase trivial e
imediato da nossa própria experiência, muito aparentado, quiçá, à
vida do próprio autor, já que o protagonista, Daniel, partilha toda
uma série de semelhanças físicas com André Coelho. Talvez um
exercício de auto-ficção, ou de pelo menos uma “veste de
ficção”, como teorizara Grant Morrison, apenas ao autor isso dirá
respeito, mas permitirá aos leitores uma possível interpretação
crítica que alie esta ficção à realidade que nos pertence.
Uma vez que as cenas em que os diálogos
surgem são muito limitadas, reduzindo as poucas falas quase ao
estritamente necessário ou até a frases de circunstância, e os
eventos mostrados podem ser rapidamente sumariados (a morte do cão,
as consultas, a vida doméstica com a namorada, etc.),
compreenderemos que o propósito da narrativa não é de forma alguma
mostrar uma “vida cheia”, pelo menos de acontecimentos externos.
Mas como o próprio título indica, recuperando uma das designações
medievais da melancolia, aquilo que importa é compreender os
tumultos internos de Daniel.
Nalguns traços de composição,
acumulação de meios (através da colagem, Coelho procura fontes
foto-, video-, radio- e/ou cinematográficas, a mixagem com
fotocópia ou algo que com isso se aparenta), este trabalho recordará
algumas experiências do final dos anos 1980, em que autores tão
díspares como Bill Sienkiewicz, Barron Storey e Jon J. Muth traziam
para a banda desenhada um grau de textura ríspida, disruptiva num
fluxo, de resto, relativamente controlado, pelo menos em termos
narrativos (muito distinto, portanto, da bumpiness intrínseca
e própria da expressividade de uma Lynda Barry, por exemplo). A
forma como o autor faz oscilar as páginas entre spreads que
respiram, ou diagramações ora simples ora muito complexas,
cumulativas e com linhas oblíquas leva a ritmos frenéticos e
cambiantes entre cada momento. O livro é claramente pensado em
unidades de duas páginas cada, os spreads, e que vão
trazendo intensidades diferentes de ritmo, velocidade e da perda de
Daniel no seu mundo interno.
A acédia – etimologicamente derivado
do grego antigo para “negligência” e para dar conta de
“aborrecimento” ou, com sentido moral, a “preguiça” - era
vista por S. Tomás de Aquino como um pecado particularmente grave,
uma vez que era como um fechamento do espírito, o qual impediria à
alma o contacto com o divino. Este seria, por sua vez, um
conceito-chave para Walter Benjamin e para a sua visão filosófica
da história, que se relacionava por sua vez com outras linhas de
desenvolvimento, como a da memória involuntária de Proust, por
exemplo, e que levaria à noção seguinte, algo redutora da nossa
parte: é uma espécie de desespero, a um só tempo empático e
melancólico, e que pode levar à apatia, de tentar capturar uma
imagem da história no preciso momento em que ela se dissolve, é a
recuperação de uma imagem do passado e a sua colocação sobre a do
presente, impedindo que este surja como o tempo em que nos moveríamos
livremente, mas se torna imbuído, pesado, carregado com esse mesmo
passado. A modernidade conheceria esta noção sobre outras formas e
nomes, como spleen oitocentista, e que daria lugar à flânerie
dos poetas.
Se não observamos Daniel a deambular
pelas ruas da sua cidade, ainda assim não faltam sequências que
podem ser lidas como derivas, até num sentido náutico. Depois do
que parece ser o seu primeiro ataque de fotofobia, seguem-se várias
cenas algo desconexas (a sua entrega a uma dominatrix, uma
cena de um concerto, outros momentos oníricos) e que poderiam ser
descritas como uma espécie de descida a um inferno muito particular.
Inferno composto pelas tais sobreposições de imagens, umas
participando da realidade tangível e outras da percepção
distorcida, ou do sonho, umas do passado e outras do presente, etc. E
essa descida tem mesmo contornos próximos da ideia de Inferno.
O cão é visto por algumas culturas
como uma criatura psicopompa por excelência, e é esse papel aquele
que vemos claramente no fecho desta história, com o cão (morto?,
visionado, regressado?) ofertando uma chave a Daniel. E aqui ocorre
um fenómeno curioso. A chave não poderia ser um símbolo mais óbvio
e claro dos enigmas que vão sendo apresentados ao longo destas
páginas. É como dizer que um triângulo é um símbolo místico. É
demasiado patente para ser tornar significativo de uma forma
especial. Mas Coelho joga com essa obviedade de uma maneira em que
nos deixa com a certeza absoluta de que Daniel tomou uma decisão e
que o seu comportamento futuro, a sua acção, o libertou da acédia,
afinal. Isso sabemo-lo. Não sabemos porém qual será o teor dessa
acção, e tampouco o valor, positivo ou negativo, que teria da
hipotética moralidade da história. Pois isso não é de todo
importante. A chave que serviu para “abrir” a acção de Daniel é
também aquela que funciona como “fecho” da narrativa a que temos
acesso, ou até direito. O futuro – a resolução da imagem da
História, para regressar a Benjamin – não é já da nossa conta.
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