A publicação destes dois livros no
mesmo ano, por dois projectos diferentes (mas que sabemos estarem
aliados por agentes comuns), vem repor uma das muitas falhas da banda
desenhada disponível em Portugal em língua portuguesa na norma
europeia. As relações de ambos os títulos partem da circunstância
de ambas partilharem o mesmo escritor, Alan Moore, e de fazerem parte
de um projecto que ele não tem abandonado, pois mais que o pareça
nas suas afirmações explícitas: a da reinscrição do género dos
super-heróis numa nova relação com a referencialidade real para, a
partir disso, interrogar o género mas também a fantasia, a
efectividade das utopias, a realidade política que nos assiste, etc.
E à distância de mais de trinta anos, não pode haver dúvidas de
que houve de facto uma transformação radical desse género
provocado pelo trabalho do escritor inglês. (Mais)
Já tanto foi escrito sobre Watchmen
(menos sobre Miracleman, até pela sua acessibilidade mais
restrita) que é impensável retomar aqui todos os factores que lhe
fizeram a fortuna. Recordemos que não apenas é um monumento na
cultura dos fãs como foi igualmente influente no desenvolvimento dos
estudos de banda desenhada, ajudando Thierry Groensteen a fundar o
conceito de “tressage” (“entraçamento”) e a Jan Baetens e
Pascal Lefévre a contribuírem sobejamente Pour une lecture
moderne de la bande dessinée. Bastará dizer que é, ainda hoje,
um dos marcos maiores desse género, não apenas pela sua influência
como pela sua estrutura total de storytelling. Se
figurativamente o trabalho de Gibbons não possa ser visto como
movedor de grandes paixões, ele está porém ao serviço, e para
empregar a metáfora-chave do livro, deste mecanismo de relógio
perfeito que o constitui. Miracleman, um projecto anterior e
que em muitos aspectos serviu de palco de aprendizagem para Moore
escrever uma narrativa de maior fôlego, a par com V for Vendetta,
tem uma natureza mais distinta, mais clássica, mas cujo apodo de
“desconstrutivista” não podia ser mais adequado. Estão lá as
sementes de muitos dos conceitos que Moore depois exploraria mais
profundamente em Watchmen, Swamp Thing, e, bem mais
tarde, Supreme e The League of Extraordinary Gentlemen,
já para não falar de trabalhos mais curtos (como as histórias do
Captain Britain, do Super-homem, a série 1963, etc.). Se bem que
cada um desses projectos tenha características diferentes entre si
em termos estruturais ou de referencialidade (a seriedade de Swamp
Thing versus a patetice de 1963, a revisitação de um
“arquivo interno” com Supreme contra a plasticidade de um
imaginário literário alargado em League, etc.), eles poderão
ser cosidos entre si com uma linha vermelha contínua.
Todavia, ao mesmo tempo, não vale a
pena deitar fora o bebé com a água do banho. Com efeito, Watchmen
é um livro obrigatório de se conhecer e ler atentamente para uma
aprendizagem da história da banda desenhada e da sua estruturação,
em geral, mesmo que seja para depois efectuar um afastamento
desse modelo. Miracleman
é algo que interessará sobretudo a uma arqueologia específica aos
super-heróis mas nessa óptica não é uma obra nada displicente.
Bem pelo contrário, contém toda uma série de elementos-chave
interessantes e inteligentes, os quais, agora à distância de tanta
produção posterior que imitou os seus modelos – Marvels,
Kingdom Come, Astro City, Stormwatch,
Planetary, The Authority, Justice League of America
por Grant Morrison, X-Force, Invincible, etc.) poderá
parecer diluída, mas por isso importa revisitar ou reler (ou, o que
é provável para muitos leitores, ler pela primeira vez) para
descobrir como ponto de partida.
Respeitando os princípios do que
constitui uma utopia, repare-se que ambas as obras mostram-nas em
construção. Quer dizer, não se trata aqui, como ocorria em Thomas
More ou em Jonathan Swift, de uma visita a um algures (na verdade, um
nenhures) que surge como uma
estrutura já existente, mas antes a introdução num mundo que nos é
familiar de um factor de transformação radical, no seu sentido
literal de “raiz”, alterando toda a tessitura que surgirá. As
mudanças operadas nos mundos de Michael Moran, o homem que foi
transformado no Marvelman/Miracleman, e no da equipa dos Watchmen,
envolvem novas tecnologias, novos conhecimentos, onde cada fenómeno
e evento se encontra interligado de forma profunda, imediata e
duradoura (desde a abolição da moeda ao desenvolvimento de novos
motos elétricos, o desaparecimento de armas nucleares à unificação
dos governos mundiais, etc.). Por sua vez, são essas implicações
materiais que depois terão consequências a níveis mais abstractos,
seja na criação de novas categorias políticas, sociais e até
psicológicas (que o contacto com as raças alienígenas em
Miracleman espoleta)
ou mesmo de ideologias e mentalidades (é possível ler-se Veidt como
um proponente da filosofia que Fukuyama apresentara em O
fim da história e o último homem,
sobre a vitória do neoliberalismo, como aliás é estudado por
Andrew Hoberek num livro dedicado ao volume de Moore e Gibbons).
Na
verdade, quase se poderiam trabalhar – como é feito em um bom
número de ensaios – estas três obras de Moore (Watchmen,
Miracleman e V
for Vendetta) como uma tríade
matizada mas que burilam a mesma ideia de utopia. Em todas elas
apresenta-se uma sociedade estabelecida – uns Estados Unidos a mãos
com várias crises económicas e uma tensão nuclear que espelha a
realidade, com pequenos ajustes pela presença de super-heróis; um
Reino Unido muito realista e quase trivial e cujo processo é
interrompido pela violenta erupção destas personagens; uma
Inglaterra fascista e distópica que começa a ser desmantelada por
uma personagem misteriosa – que acaba por ser transformada, mais ou
menos por uma única personagem, ou uma mão-cheia delas. Em todas
elas testemunhamos essa transformação, mas não o seu
desenvolvimento e continuidade pós-utopia (em V for
Vendetta essa interrupção é
mais abrupta, ao passo que nestes dois livros surgem breves codas,
mas deixando o desenvolvimento maior fora de cena). Em todas elas as
próprias novas sociedades apresentadas não deixam de surgir como
maçãs lustrosas mas onde já espreita o verme (com cuidado,
compreender-se-á que, leitores com acesso aos pensamentos interiores
dos protagonistas, entendemos que as suas “vitórias” não são
nem completas nem eternas).
Bastará
reparar como, aparentemente, em todas elas se instituem hegemonias
(quase) totais em que não haverá oposição de poder idêntico:
Miracleman é o ser mais poderoso no seu mundo diegético ou
tornou-se aliado de todos os que se lhe poderiam opor (tendo
eliminado o seu maior inimigo, que também se apresenta de um modo
brutal, honesto e moralmente ambíguo, sendo este um dos muitos
pontos brilhantes de Moore); em Watchmen,
o Dr. Manhattan resolveu abandonar a Terra, deixando que Veidt
instaure a sua visão, sendo os opositores mortos (Rorsach),
impotentes (Night Owl) ou mulheres cujos interesses domésticos são
mais fortes que o seu hipotético poder político (aqui residindo,
pelo contrário, alguns dos menos conseguidos gestos do autor). As
hegemonias, porém, precisamente pela sua falta de flexibilidade e
adaptabilidade, estão votadas a serem transformadas de um modo
igualmente violento. E pouco importa aqui abrirmos espaço à
consideração de projectos posteriores, seja as rédeas de
Miracleman nas mãos
de Gaiman sejam os projectos envolvendo as marcas registadas dos
Watchmen na DC. Não
deixando de ser possível ler esses outros trabalhos à luz destes
livros originais, não nos parece ser particularmente feliz ler os
gestos originais à luz de desenvolvimentos posteriores, que não
estavam previstos na sua própria criação.
Não
estão desprovidos de problemas, cada um destes títulos. Como
dissemos, o aspecto visual de Watchmen
sofre um pouco com as figuras estáticas e por vezes melodramáticas
de Gibbons, e se a variedade de Miracleman
oscila entre a beleza e fluidez de Rick Veitch e John Totleben e a
relativa falta de elegância de outros artistas (infelizmente todos
subsumidos às novas cores digitais de acordo com as novas
directrizes da Marvel, uma vez que seria impossível recuperar os
fotolitos das separações de cores dos anos 1980), já a escrita de
Moore ainda não se encontrava totalmente apurada – muitas das
personagens têm padrões linguísticos idênticos e abandonam-se a
enormes solilóquios.
Mas há
igualmente aspectos redentores senão mesmo magníficos, e que
continuam sendo cenas memoráveis. Pessoalmente, a forma como Moore e
os seus colaboradores exploram a questão da desvanecendo-se nas
suas personagens são pequenas maravilhas da escrita. Moran
apercebendo-se de que a sua nova natureza não é palco para a
felicidade doméstica que esperava, e vê a sua humanidade a
desaparecer paulatinamente, em episódios tão comoventes como
dolorosos, e Dr. Manhattan alienando-se cada vez mais das
preocupações humanas ao ponto da sua distância absoluta. Nesse
aspecto, estas duas personagens são na verdade muito próximas uma
das outra.
As edições portuguesas em si, porém, são
excelentes, apresentando-se em dois volumosos tomos que guardam tudo
em que importa mergulhar para apreciar cada uma delas, e em traduções
fluidas. A edição de Miracleman
é particularmente feliz uma vez que reúne toda a saga principal e
mais uma série de complementos de uma forma que não fora jamais
feita internacionalmente. Com estas adições, portanto, voltamos ao
ponto de partida, não haverá desculpa para não poder conhecer
estes importantes passos no desenvolvimento deste género particular,
e numa das jóias da banda desenhada contemporânea.
Nota final: agradecimentos a ambas as
editoras, pela oferta dos livros.
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