A travessia de fronteiras, em alguns casos, não é vista como
possível em termos de liberdade total, mas é ela que poderá determinar a
possibilidade de conquistar uma vontade que, sem o seu alcance, é esmagada na
inércia. Os Estados Unidos são vistos ainda, não sem razão, como um campo mais
aberto e preparado para sonhos que parecem inalcançáveis noutros contextos,
sobretudo se disserem respeito a vontades que vão bem para além da mera
sobrevivência e começam a ocupar áreas de criatividade artística, como a banda
desenhada. Ora, pelo menos em parte, era esse o fito que o artista Sandoval
tinha em querer emigrar para os Estados Unidos: a de que seria aí que o seu
sonho em se tornar autor de banda desenhada profissional se poderia cumprir.
Este livro inicia-se num momento em que está à espera do momento ideal para
atravessar a fronteira e tentar então nesse outro país a sua sorte. (Mais)
Mas a travessia não é fácil, e rapidamente voltamos atrás
para compreender que os processos burocráticos, políticos e económicos que lhe
permitiriam a emigração “normal” falharam, não lhe deixando senão a escolha de
procurar soluções da travessia clandestinas. Acresce ao sonho o facto da sua
namorada viver em Phoenix, tornando essa cidade do “outro lado” na primeira
pequena Meca à qual a sua peregrinação deveria dar. O livro, curto, dá conta
então de toda a viagem e dos seus dissabores e interacções.
Alguns críticos esgrimam a noção de que uma autobiografia
apenas pode ser tão interessante quanto a vida a que diz respeito. Já havíamos
debatido esta visão, que contrariávamos a partir de uma base estritamente
estética, uma vez que podem haver relatos da mais completa trivialidade
tratados com a mais profunda das compreensões humanas (autores como Harvey
Pekar, Gabrielle Bell, Dominique Goblet, John Porcellino, David B., Baudoin, entre
outros atingem os cumes dessa prática), ao passo que vidas às vezes mais “diferenciadas”
podem esbarrar com uma apresentação tão pífia ou tão melodramática que acabam
por surgir como meramente exercícios de estilo (e há casos de relatos de
sobrevivência do cancro ou até mesmo sobre a relação como Holocausto que se
reduzem a fórmulas esvaziadas). Ora, à partida, a experiência de vida a que
Tony Sandoval faz menção neste livro não é “comum”, ou melhor dizendo, não será
“comum” à comunidade dos seus leitores, sobretudo portugueses: a de atravessar
a fronteira entre os Estados Unidos Mexicanos e os Estados Unidos da América,
de forma clandestina. Todavia, como veremos, essa travessia, nas páginas da
banda desenhada, é feita de uma forma algo chã que lhe retira parte do poder
que poderia conquistar.
O surgimento deste livro no contexto presente torna-o pertinente
de um modo especial. Naturalmente, o problema da emigração ilegal mexicana para
os Estados Unidos é um tema vivo há décadas, sobretudo para as partes
envolvidas, mas as recentes eleições norte-americanas, tão polarizadas e em que
este tema era um dos pomos de discórdia, trouxe-o para um palco em carne viva. Já
antes tínhamos dado conta de um livro que focava, em muitos aspectos, sobre as
relações económicas e políticas entre os dois países e que levam a situações desesperantes,
horríveis mesmo, a sul da fronteira (o saldo principal destas travessias
contam-se em número de mortos). Viva la vida!, de Baudoin e Troub’s é um livro perfeitamente adulto, dando voz a
várias pessoas, a fazendo abrir um espaço de expressão complexo que espelha
igualmente a complexidade do assunto. Mas Rendez-vous
é um livro que se atém a uma perspectiva única, pessoal, o que é compreensível,
mas que jamais se interroga a si mesma ou procura contextualizações mais
politizadas. Não há, digamos assim, uma dimensão ensaística no livro. Até mesmo
o “final feliz” reduz-se a uma pequena piada, que ainda que possa ser vista
como alívio face à experiência, acaba por tornar o projecto de Sandoval numa
espécie de fuga para a frente política.
O autor habituou-nos ao seu estilo “giro cabeçudo”, que a
editora portuguesa tem dado a conhecer de forma sistemática e com grande
qualidade, empregado em géneros afectos à fantasia, entre o delicodoce e o
sombrio. Esta família estilística é um episódio curioso na história da
ilustração e caricatura, remontando ao século XVIII italiano para criar formas
de representação que, partindo do grotesco e também remetendo a experiências
reais de anões no teatro, permitiam formas de criar fantasias de escala e
relações de poder. Durante o final do século XIX e no início do século XX, com
a alavancagem da nascente “ilustração infantil” (isto é, práticas visuais,
estruturais e poéticas específicas para crianças, de uma forma diferenciada dos
adultos que era inédita), introduzia-se a noção do “cute”, com autores como
Rose O’Neill e Grace Dreyton na linha da frente, bebendo das proporções dos
bebés para criarem as suas personagens e que seriam decisivas na banda
desenhada vindoura e de forma permanente (basta pensar, hoje, na presença e
sucesso de projectos de designer toys
como os bonecos Pop! da Funko). Todavia, não nos podemos abstrair de que uma
forma, quando é trabalhada para servir de instrumento aguçado de um propósito,
ao ser empregue num contexto bem distinto, pode sublinhar usos irónicos,
desviantes, surpreendentes ou então acaba por funcionar antes como um veículo
algo falho.
Ora, é precisamente essa a ideia que sentimos em relação a Rendez-vous em Phoenix. Apesar do autor se
manter, como é esperado, no campo do naturalismo (com a excepção de uma cena onírica-simbólica),
e introduzir pequenas diferenças em termos de pormenor de linha e
expressividade dos rostos, um trabalho de cor mais sóbrio, uma composição de
página mais regular em relação aos volumes anteriores, não deixam estas opções
de figuração por criar uma espécie de distância entre a gravidade do tema e o
seu tratamento. O momento em que os mexicanos passados são assaltados, o
brevíssimo cruzamento que fazem com negros americanos, e, enfim, todos os
momentos mais dinâmicos, acabam por ganhar uma leveza e comicidade que parece
desemparelhada com os propósitos de Sandoval. Ou seja, de uma forma metafórica algo deselegante
da nossa parte, se o autor atravessou uma fronteira em termos de conteúdo, mesmo
que de modo ténue, em termos formais não a cumpriu.
Enquanto projecto, é possível que este seja um processo
difícil para o autor, mas que poderá assinalar a transformação da sua vontade
criativa, espelhando o que sucedeu com tantos autores antes dele. A de
escaparem da força de atracção dos seus territórios mais habituais e que se constringem
a géneros e fórmulas mais ou menos convencionadas para começarem a batalhar com
contornos mais livres e pessoais, por vezes, quem sabe, até dolorosos. E como
reza o cliché, o início de uma viagem está no primeiro passo, dado aqui. Atravessando
uma fronteira.
Nota final: agradecimentos à editora e à organização dos
Galardões BD Comic Com Portugal, pela possibilidade de acesso ao pdf do livro.
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