Depois do “sucesso” de Papá em África, não apenas em termos comerciais para a editora como
para a sua recepção-discussão no nosso país (o ruído e os
mal-entendidos são sempre fogo em caruma), o selo “para gente
bruta” resolveu publicar mais uma pequena colecção de algum
material do autor sul-africano. Provindo da sua parte, isto é, de
“Joe Dog”, na revista Bitterkomix, este caderno surge por
ocasião da presença de Anton Kannemeyer em Portugal na sua
exposição integrada no Festival da Amadora. Desta forma, este
pequeno volume serve de complemento à histórias do livro anterior,
e onde aquele era uma espécie de radiografia a um imaginário
interno e cultural partilhado, que tantas vezes reflecte igualmente
fantasmas dos seus leitores, estoutro é mais focado na experiência
própria do autor, como se houvesse a possibilidade de mostrar um
balanço da sua vida como fruto das consequências da educação. (Mais)
O editor resolveu criar um foco
particular para o material autobiográfico do autor, de forma a que
surjam aqui histórias que espelham o que “Joe Dog” estaria a
experienciar na altura em que criou estas histórias, sobretudo a sua
irritação profunda para com a sociedade bem-pensante e
pós-apartheid do seu país, que parece ter aproveitado essa
transformação para querer esquecer o passado rapidamente, senão
mesmo transformá-lo em algo que não responsabilizaria as pessoas do
presente. Todas as histórias mostram o autor-adulto comentando
aspectos da sua cultura que despreza, elencando ódios de estimação
(um exercício costumeiro em muitos autores da banda desenhada
alternativa dos anos 1990), expondo as falsidades das auto-imagens da
sua sociedade, ou recordando episódios da sua infância e
adolescência que, ao mesmo tempo, vão revelando modos de
funcionamento não apenas da sua família imediata (os pais
divorciados) mas toda a estrutura social em que cresceu.
Apesar de ser uma identidade diferente
da portuguesa, haverá certamente pontos em comum com a nossa própria
experiência. Não apenas, pra começo da conversa, na realidade
pós-colonialista, que Portugal ainda não resolveu totalmente,
continuando a alimentar mitos bem-pensantes sobre o nosso papel em
África e após-ela. É inteligente, portanto, a forma como é
acrescentada a esta colecção uma mão-cheia de trabalhos de outras
paragens de Kannenmeyer que falam dessa relação histórica,
política e racial, mostrando-se mesmo retratos de José Eduardo dos
Santos e Jonas Savimbi, como um aceno para Portugal. Mas há também
aspectos hodiernos. Logo no início, o autor fala da noção de
“sucesso” na África do Sul, a confusão entre “riqueza
material” e a respeitabilidade social que isso implica, nada
distinta da obsessão que existe entre nós pelos “empreendedores”
ou por quem “bate punho”.
Longe da homogeneidade de Papá em
África (que também já se apresentava com larga variedade),
este volume dará a conhecer aos leitores portugueses alguma da
“evolução interna” do desenho do autor, que oscila entre uma
abordagem mais geométrica e de linhas mais vincadas e o seu estilo
mais arredondando. Em termos de humor, haverá aquelas que parecem
mais inócuas e outras mais directas e francas. A exploração de
temas tintinófilos estão sempre presentes (até na críptica “Nós
odiamos Nick Rodwell”), mas essa é somente uma armadilha para os
incautos. Esperemos é que, à saída, compreendam a necessidade
dela.
2 comentários:
"elencando ódios de estimação (um exercício costumeiro em muitos autores da banda desenhada alternativa dos anos 1990)"
hahahaha
sim é verdade, isso e BDs sobre masturbação -aliás, segundo o José Lopes, só os grandes autores de BD é que fazem BDs sobre masturbação!
:)
M
wha-?
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