Este livro vem assinalar, de certa forma, um aniversário
“redondo”, uma vez que os primeiros passos do movimento Oubapo, ou Ouvroir de
la Bande Dessinée Potencielle, ou “Ateliers da Banda Desenhada Potencial”,
foram dados há um quarto de século, tendo dado a uma colecção de volumes por
esta editora, colectivos e projectos individuais, mas igualmente workshops um
pouco por todo o mundo, com ou sem os seus agentes originais, discussões
académicas, estratégias integradas na produção “normal”, etc. Influenciados
pelo mais famoso movimento literário da Oulipo, a Oubapo tenta criar formas de
trabalho que partem não tanto de uma “ideia diegética” ou “representacional”,
mas antes de uma qualquer formulação estrutural, formal, que deve ser resolvida
depois. Um jogo de regras pré-estabelecidas que depois se deve solucionar. Um
labirinto construído pelos próprios ratos que devem escapar (Queneau). Tudo
palavras dos intervenientes… Em larga medida exercício de salão, não deixa
ainda assim de provocar um pensamento reflexivo sobre esta arte em particular,
acto de extrema importância quando esta linguagem corre o risco de parecer
“demasiado familiar”. (Mais)
29 de dezembro de 2016
26 de dezembro de 2016
Espero chegar em breve. Philip K. Dick e Nunsky (Mmmnnnrrrg)
O isolamento criativo dos autores,
mesmo numa cena incipiente como a portuguesa, poderá dar francos
frutos. Num curto período, o elusivo Nunsky, que havia apresentado
uma fulgurante mas fugaz novela com “88”, que ocupara todo um
número do fanzine mutante Mesinha de Cabeceira, há 20 anos,
regressou para apresentar toda uma bateria de trabalhos acabados,
coesos, densos, inteligentes e graficamente vincados, cada qual com a
sua própria personalidade de humor, género, tradição, e exigência
de leitura. “Espero chegar em breve” é o terceiro desses gestos,
compaginando-se igualmente como totalidade do último número da
mesma série de fanzines indicada cima (o 28º número, cujo formato
e capa texturada o torna como se fosse uma brochura dos serviços
intergalácticos no interior). Desta feita, trata-se de, numa
descrição simples, como reza na própria capa, uma “adaptação
do conto de Philip K. Dick”, cujo título original é “I hope I
shall arrive soon”, apesar da sua versão primeira ter tido um nome
mais prosaico, “Frozen Journey”. (Mais)
23 de dezembro de 2016
Si Lewen’s Parade, An Artist’s Odyssey (Abrams)
Si Lewen, que viria a falecer algum tempo depois da produção
deste livro, foi um pintor norte-americano que é muitas vezes agregado a essa
imensa família do “expressionismo abstracto” desse país, se bem que não conste
da primeira linha de artistas que usualmente se citam. Não tendo o mesmo papel
no palco internacional que outros nomes mais sonantes, a sua presença não é de
forma alguma displicente nesse contexto, e algumas das suas obras ocupam um
espaço interpelante, vincado, significativo, e até original, mesmo que esta palavra tenha hoje um valor diluído. Oscilando
entre a figuração e a abstracção, herdando dos cubistas muitas vezes a presença
dupla dessas forças num só plano de composição, os jogos de referencialidade
com o mundo, e jamais abdicando do “sentido”, transmitido quer pela figura,
quer pelo título (se bem que muitas telas sejam baptizadas com “Sem título”)
quer pela coordenação de séries, Lewen é um autor que, descoberto de atacado,
faz-nos ponderar até que ponto a História da Arte, tal como é estruturada e
transmitida pelos seus canais mais usuais, não é ainda um projecto de uma
incompletude estrondosa, quiçá mesmo impossível. Acresce a isto a produção de
objectos ou obras que possam ser re-agregadas pela História da Banda Desenhada,
e ainda se torna mais complicada a sua integração… (Mais)
21 de dezembro de 2016
Como viaja a água. Juan Díaz Canales (Arte de Autor)
Este projecto a solo do argumentista da
famosa série Blacksad é, a um só tempo, talvez
estranhamente sem paradoxo, uma obra niilista e uma esperança
positiva. Apesar de podermos falar de um protagonista, o velho
Aniceto, de 83 anos, a verdade é que as acções estão concertadas
numa geometria de afectos muito particular, numa primeira escala
entre os compinchas de Aniceto, e em segundo lugar, em círculos
complexos de distância e proximidade, o seu filho e o seu neto, e a
mulher grávida deste. Com efeito, a uma primeira visão, a acção
dirá respeito às acções levadas a cabo por Aniceto, Longinos,
Urbano, Godofredo e Teodoro (nomes que numa pincelada quererão
revelar um outro momento da história de Espanha) e que os colocará
numa senda algo perigosa. Noutra escala, tratar-se-á das relações
que Aniceto estabelece com os seus familiares, alimentadas de
tensões, incompreensão, boa vontade, pequenos erros e todos aqueles
pequenos desastres que alimentam a vida de todas as famílias. Mas é
o coração de Aniceto que informa toda a trama, no fundo. (Mais)
19 de dezembro de 2016
Rose Profond. Jean-Paul Dionnet e Pirus (Casterman)
Há algo de profundamente
desconcertante ao sermos confrontados com mundos demasiado perfeitos,
em que não há espaços para sombras ou as próprias sombras são
inócuas logo à partida. Talvez tenha a ver com o facto de que a
esmagadora maioria das histórias tradicionais sempre tiveram um
substrato de violência e horror, depois higienizado ao longo do
século XIX e para mais no século XX ao passarem pelos filtros
moralistas e materiais de meios como a banda desenhada e a animação,
mormente aqueles exclusivamente dedicados aos leitores e espectadores
mais novos. Se houve caso de estudo para “o regresso do reprimido”,
ei-lo. A emergência dos universos Disney, sobretudo, levariam a esse
desejo de o conspurcar o mais rapidamente possível. Senão, veja-se
a rapidez com que estas personagens encontraram espaço nas Tijuana
Bibles. (Mais)
18 de dezembro de 2016
Dez anos para o fim do mundo. Caeto (Companhia das Letras)
Depois do grande gesto autobiográfico de Memória de Elefante, é possível que Caeto
se sentisse tentado a dar continuidade a essa mesma pesquisa, e expressão de
si, a um grau mais afastado do âmago da primeira aventura. Se ali havia uma
concentração maior na figura do pai, da morte deste e a relação conturbada ao
longo de anos, Dez anos para o fim do
mundo espraia-se em várias direcções, tentando que elas se tornem agregadas
num gesto comum. Neste livro, então, Caeto revisita a sua infância e
adolescência, as mudanças de casa, de escolas e de ambiente económico, as eleições
de 1990 e as implicações que isso tinha na sua paisagem social, as primeiras
experiências sexuais, com drogas e de criação de quadrinhos, e depois o seu
casamento, a lua-de-mel, o nascimento do primeiro filho, a mudança de casa e a
separação da mulher, assim como a fabricação do próprio Memória.
Exposto desta forma, parecerá talvez que haja uma
arrumação cronológica, mas isso não é verdade. Todos estes episódios visitam-se
de forma desordenada, com saltos prolépticos e analépticos, criando antes uma
trama temática ou pelo menos de questões recorrentes que e vão alimentando
entre si. Como se a preocupação em construir uma imagem de si não pudesse
organizar-se de forma linear, mas antes seguisse as respirações livres das
marés da memória. Em muitos aspectos, Dez
anos tem um tom elegíaco, mesmo
quando os episódios são de uma felicidade extrema. Uma vez que o autor
atravessou várias sessões de terapia para combater uma depressão, advinda pelo
confronto emocional e intelectual que estava a nutrir pela criação de Memória de Elefante, obrigando-o a rever
momentos dolorosos do passado e da relação com o pai, essas sessões acabam por
funcionar como uma espécie de, não tanto “moldura narrativa”, mas pelo menos de
uma estrutura que subjaz à junção destes troços. É até o seu fim, dessas
sessões, que acaba por funcionar como uma espécie de pré-fecho do volume. (Mais)
Apocalipse Nau. Eloar Guazzelli (Editora Nós)
Este volume de
Guazzelli é marcado pela sombra das asas da morte. Na verdade, são três mortes
que aqui se agregam como fantasma, sendo uma delas colectiva e outra “familiar”.
Cada uma dessas mortes relaciona-se com o autor de forma autobiográfica, em
vários graus de inscrição social, círculos concêntricos e complexos de
identidade que muito dificilmente se destrinçam entre si e também difíceis são de
tornar hierárquicos. Sem a ordem pela qual são apresentados, a primeira morte é
a dos artistas e companheiros da redacção do Charlie Hebdo, que serve
de espoletador ao gesto do autor brasileiro para esta mesma obra. É esse o tema
central, temático, que faz arrolar várias dimensões políticas contemporâneas
que se encontram antes e depois do ataque, e nas áreas contíguas, como as de
liberdade de expressão e pensamento, de circulação de informação, de canais de
divulgação e discussão dos temas ditos públicos, etc. Outra das mortes é de
Marco Archer, o cidadão brasileiro que foi condenado à morte na Indonésia
também em Janeiro de 2015 por tráfico de droga. E a última a do pai de
Guazzelli, que morrera anos antes, mas cujo impacto chegaria mais tarde, com a
da mãe. Temos portanto uma morte de cartoonistas, de um brasileiro, e de um
pai, remetendo, já na esfera da pessoa de Guazzelli, da sua condição de artista
de quadrinhos, brasileiro, filho e homem. (Mais)
15 de dezembro de 2016
"Bertoyas dans la jungle." Artigo na Mémoires du Livre com Benoît Crucifix.
A obra de Bertoyas é multifacetada e mesmo no interior somente do que ele cria em "banda desenhada", seja em antologias que estendem o entendimento dessa disciplina (como a L'horreur est humaine) ou nas suas próprias publicações, há uma verve que complica as simples divisões categóricas que usualmente se esgrimem em termos de formato, circulação, mercado e género. É a sua lavra o objecto de estudo de um artigo académico co-escrito com Benoît Crucifix, que tivemos o prazer de ver incluído no projecto Memóires du Livre/Studies in Book Culture. O artigo junta várias linhas de pesquisa de ambos os autores, rondando questões tais como o estudos dos fanzines, a micro-edição, a noção de edição "selvagem" de Jacques Dubois, a dissidência (que já havia sido explorada pelo grupo ACME), uma leitura política do "menor" de Deleuze e Guattari, tentando ao mesmo tempo entrar em diálogo com alguns dos canais de produção europeus de banda desenhada dita independente. Poderão aceder gratuitamente ao artigo em pdf nesta página.
Um grande merci bien ao Benoît e ao Bertoyas por tornar isto possível.
Um grande merci bien ao Benoît e ao Bertoyas por tornar isto possível.
12 de dezembro de 2016
How to talk to girls at parties. Neil Gaiman, Fábio Moon e Gabriel Bá (Dark Horse)
O problema muitas vezes do sucesso e do apoio vocal e numeroso
de certos autores é que abre oportunidades de publicação de trabalho que
mereceria um outro tipo de filtro ou esforço. Gaiman atingiu um tal nível de estrelato
que até surge como personagem de “autor com conselhos para novos escritores” em
séries de animação (The Simpsons, Arthur) e já há muito tempo que qualquer recado ou notinha acaba
por ser antologiada, coligida ou adaptada a outro meio. O problema não está,
naturalmente, no facto de ser publicado. Isso é até positivo. O problema está
em que tem mais um efeito cumulativo do que de relatividade da qualidade de
escrita. (Mais)
8 de dezembro de 2016
Judea. Diniz Conefrey (Pianola)
Ao
falarmos de Pereira prétend,
falávamos de uma categoria de adaptações à banda desenhada de
obras literárias que não se coadunava com as estratégias mais
costumeiras da “facilitação” e “acessibilidade” dos
originais. Não quer dizer que não existam transposições que,
mantendo uma grande capacidade de “fieldade” para com os
acontecimentos e a caracterização das personagens, não consigam ao
mesmo tempo estruturar-se como obras acabadas por mérito próprio do
seu campo de acção e expressão (alguns casos de Tardi, de
Battaglia, o Milton de Auladell, o recente O astrágalo).
Mas depois há aquelas que partem de uma base literária para se
lançarem a pesquisas mais intensas do seu próprio meio e que entram
num diálogo mais exigente com a teleologia e literariedade dos
originais, sem que essa seja reduzida meramente à intriga. Surgem
assim obras maiores como A cidade de vidro,
Le château,
O
diário de K.,
alguns trabalhos de Breccia, o Disposession de Grennan. Nessas obras, como em poucas obras, há uma verdadeira
preocupação em compreender a intensidade da matéria expressiva
para criar transposições precisas – ali, as palavras, o fraseado,
a sintaxe, a metáfora ou a sua ausência, aqui a composição, o
burilar da superfície da imagem, o agenciamento das vinhetas em
cadeias legíveis, a presença ou ausência de matéria verbal, a
escolha de representações. (Mais)
7 de dezembro de 2016
Pereira prétend. Pierre-Henry Gomont (Sarbacane)
Se
os homens não são ilhas, alguns deles bem o tentam ser. Pereira,
sem outro nome ou apodo que o torno à partida uma personagem cheia
de vida, parece querer viver a sua vida no interior de uma redoma
suficientemente confortável, longe dos tumultos que os outros
agregam. Já lhe basta as agruras da viuvez e da solidão, mas que ao
mesmo tempo o sustentam nesse seu isolamento. O pior é quando a
força das circunstâncias, marés incontroláveis, impulsionam essas
ilhas, afinal, para um arquipélago, senão novos continentes. Ora
Afirma Pereira, o famoso romance do escritor Antonio Tabucchi,
é a história de um homem cuja suposta mundividência, teimosa,
atreita, esguia, é forçada a abrir-se para o verdadeiro mundo, por
mais doloroso que isso possa ser. (Mais)
4 de dezembro de 2016
Les équinoxes. Cyril Pedrosa (Dupuis)
Há um fôlego na
banda desenhada francófona contemporânea que parece alimentar o desejo de toda
uma série de autores em construírem narrativas longas, densas e que procurem
ocupar um nicho a que se poderia dar o nome de “o grande romance gráfico contemporâneo”.
Até mesmo em termos de formato vemos apostas em volumes maçudos, de capa
cartonada, com pormenores de valores de produção, alimentando materialmente o
ensejo interior. Há casos de adaptações literárias, autobiografias ou
reportagens ou relatos implicados, mas sobretudo projectos de ficção, como é o
caso deste novo livro, do autor de Portugal.
Se essa outra prestação nos parecia ter sido algo adocicada no seu tratamento
do “outro” (que, no caso, corresponderia a um “nós”), o novo trabalho de
Pedrosa procura um foco atomizado, mas com isso procura capturar uma
experiência mais alargada de vida. (Mais)
2 de dezembro de 2016
Colaboração no The Comics Alternative: The Return of the Honey Buzzards, de Aimée de Jongh
Há tantos métodos de leitura quanto o seu próprio acto. A deste livro começa sobretudo em termos de um balanço. Na incessante busca e publicidade do "grande livro do ano", por vezes a crítica perde de vista respirações mais calmas da banda desenhada, que nem sempre passa por grandes tumultos mas passos incrementais. O primeiro livro "sério" da jovem artista flamenga Aimée De Jongh é um bom barómetro de um certo "estado da arte" sobretudo da escrita na banda desenhada contemporânea, que não se poderia tornar possível sem mais musculadas conquistas anteriores e até mesmo uma abordagem flexível de estilos vários, inclusive das bds em redes sociais (tumblr e afins).
Texto aqui.
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