14 de agosto de 2017

Miracleman. A Idade de Ouro. Neil Gaiman e Mark Buckingham (G. Floy)

Antes de mais, queríamos esclarecer a declaração de intenções, uma vez que, tendo sido os tradutores deste volume, somos parte interessada no projecto.

Dito isto, e na continuidade de alguns projectos da editora, que nos tem disponibilizado alguns dos melhores títulos do mainstream norte-americano contemporâneo (Saga, Fatale, Southern Bastards), e depois de uma edição com todo o run de Alan Moore (a que corresponderiam 3 livros), eis que se publica um volume com todo [v. comentários] o material criado e publicado na época por Neil Gaiman e Mark Buckingham, herdeiros imediatos do anterior autor, e seus múltiplos colaboradores artísticos. Como é consabido, o Miracleman, nas mãos de Moore et al., transformar-se-ia no principal cadinho e laboratório de cruzamentos de muitas das noções daquele autor britânico que tanto seriam influentes no seu próprio trabalho no território dos super-heróis como depois em todo este género, e a que se viria a dar muitos nomes, desde “desconstrutivismo”, a “pós-moderno”, até mesmo “maturidade” ou “revisionismo”. Não é que algum desses termos esteja errado, mas tampouco serão completos. Seja como for, é inegável que se encontrariam aí muitos dos elementos que depois se tornariam inevitáveis na esmagadora maioria da produção deste género. (Mais)

A integração da figura fantasiosa do super-herói num universo de referências cujo enquadramento sócio-económico e político era mais próximo da realidade cria um curto-circuito que é esmiuçado por Moore, ao ponto de ser um estudo de caso sobre o pragmatismo da imposição de um sistema utópico (através, ainda assim, das ferramentas fantásticas nas mãos de seres com capacidades extraordinárias e alienígenas com tecnologias prodigiosas). Gaiman, ao herdar essa situação, e sendo alguns dos seus primeiros trabalhos de banda desenhada, resolve uma fuga em frente. Mais do que desenvolver a psicologia individual das personagens, os eventos anteriores ou as tramas prometidas, o autor lança antes uma série de contos curtos (quase todos da dimensão de um comic book individual, mas alguns mais curtos), estudando as consequências da utopia, mas assegurando a sua existência (daí o sub-título, apropriado). E, mais importante ainda, consequências ao nível do, digamos, rés-do-chão.

Dos oito contos apresentados pela dupla de autores, nenhum deles é verdadeiramente protagonizado pelos super-heróis principais, Miracleman e Miraclewoman. Eles participam da acção de um ou outro episódio, mas de forma secundária ou momentânea, mesmo se decisivamente (em “à flor da pele”, Miraclewoman participa de maneira descentrada, à qual voltaremos). Os protagonistas são todos “pessoas comuns” e aprendemos as várias formas como foram afectadas pela transformação radical do mundo em seu torno devido à acções daquelas personagens majestosas e incríveis. Novos modos de rezar, de desenvolvimento da religião, de encontrar o amor e de estabelecer parcerias, de superarem traumas, de ter filhos e educá-los, de celebrar a vida, e de trabalhar todos os dias são a matéria destas histórias. Haverá conflitos, histórias de amor, alianças construídas e amizades destruídos, mas nada na escala tectónica usual dos super-heróis. Há como que uma espécie de mistura de narrativas mais típicas da cena da banda desenhada alternativa e realista da época do que com o mainstream, mas integrado nesse universo de fantasia. O que não deixa de ser uma das assinaturas do próprio Gaiman.

Apesar de, como dissemos, os trabalhos em Miracleman serem alguns dos primeiros trabalhos de Gaiman neste território (“Gritos”, a primeira história, data de 1986), aquilo que o tornaria um excelente autor na década de 1990 está já presente nos pormenores destas histórias. Um cuidadíssimo ouvido para especificidades de expressão e diálogos das personagens, diferenciando-as entre si (e que a tradução, muito provavelmente, falha em cumprir), um modo subtil de dar a entender um mundo maior através de gestos ou referências de modo aparentemente trivial, evitando o abuso da exposição explicativa, e, enfim, dando-nos verdadeiras “pessoas” e não somente cifras de personagens que têm acções a cumprir para despachar a narrativa. São inúmeros os pormenores comovedores que fazem compreender como estas personagens têm uma vida própria e complexa por detrás das suas reacções e como quase nenhuma delas é completa em termos morais. Isto é, outra das forças de Gaiman é não nos apresentar personagens que são necessariamente boas ou más, mas como ele mesmo e Terry Pratchett escreveram em Good Omens, pessoas cujo problema é serem “fundamentalmente humanas”. E apesar do crescimento da fama de Gaiman nos parecer diametralmente oposto ao seu próprio desenvolvimento enquanto escritor, não se pode negar que esta abordagem de burilamento literário das personagens foi de uma influêncua extrema no território anglófono. E muito merecedor de ser relido ou lido pela primeira vez, para que se compreenda essa história.

Este livro é tão criado por Gaiman como por Buckingham. Se é sabido que Moore tem uma abordagem à escrita que muitas vezes torna a sua presença indelével, levando à ascensão da “visão do escritor” (o que não invalida ter obras com autores magistrais, de Oscar Zarate a Eddie Campbell, Melinda Gebbie a Bissette e Totleben), Gaiman parece ter uma relação um pouco mais simbiótica com os seus artistas, pelo menos, repetimos, nesta sua fase inicial, mais “alternativa”. Grande parte do interesses destes episódios está no cumprimento de Buckingham (tal como Dave McKean faria com o mesmo escritor) em procurar a melhor solução gráfica possível para a história em questão, alterando a assinatura figurativa, a paleta cromática, o esquema composicional, as técnicas de desenho, etc. Estendermo-nos em análises pormenorizadas de cada uma delas (da reutilização de instrumentos do Popism de Warhol na história em que este pintor “participa”, as linhas cinéticas e bruscas de “Uma prece, uma esperança”, as soturnas e empoeiradas fotocópias de “História de espiões”, etc.) está fora de questão, mas são lições sólidas de como criar formas diversas num mesmo projecto adequadas à retórica necessária de cada passo.

Apesar do que foi dito acima, Gaiman e Buckingham são muito cuidadosos em reempregar quase todas as linhas narrativas que Moore et al. haviam criado na série anterior, e se não estão interessados propriamente a “reescrever” a história, a “revelar” cantos que não haviam sido explorados ou “segredos” - esse é antes o território de Moore, com efeito -, fazem reviver essas mesmas personagens (por vezes, literalmente: regressam dos mortos) para lhes entrar nas mentes de forma profunda. Os diálogos entre Mors e Gargunza, ou Gargunza e Warhol, por exemplo, são sinal dessa forma sustentada de mostrar as inteligências das personagens, e não somente canais de acções. Mais, o último episódio deste capítulo, “Carnaval”, mostra como é possível criar redes, ou revelar as redes invisíveis, que afinal unem as personagens no interior deste mundo de cristal que é uma obra fechada. De resto, esta poderia muito bem ter funcionado como a última pedra do edifício de Miracleman, como durante anos parecia ter sido.

Da história editorial complexa e cheia de percalços, interrupções e falsos arranques, bastará dizer que ficam fora destes gestos da G. Floy os contos de Apocrypha, conduzidos igualmente por esta dupla de autores, mas contando com muitos outros nomes da banda desenhada anglófona de então; a história “Retrieval”, que tem sido publicada como uma espécie de extra inédito nas reedições de todos estes episódios em formato de comic book pela Marvel (cuja edição este volume segue, utilizando os novos ficheiros com cores digitais, que empobrece, a nosso ver, algumas das soluções gráficas originais, mas cujas versão são, pelos vistos, irretrievable) e que servirá de prólogo a The Silver Age/A Idade de Prata; e, possivelmente, o material que está ainda por produzir e publicar, e que corresponderia à continuação da saga da personagens, assinada ainda pelos mesmos Gaiman e Buckingham, de novo, The Silver Age e depois The Dark Age, planificadas e divulgadas há décadas...


Entretanto, ficarão os leitores pela nota nostálgica e delicada desta Idade de Ouro.

2 comentários:

  1. Olá Pedro,

    Só uma pequena correcção: "um volume com todo o material criado e publicado na época por Neil Gaiman e Mark Buckingham" não está correcto. O volume recolhe os seis números de A Idade de Ouro (e mais umas 30 pgs de extras). Na altura, chegaram a ser publicados os primeiros 3 comics do segundo arco de história (A idade da Prata), e um quarto número estava desenhado (mas não foi publicado). Essa segunda série irá ser relançada e completada pela Marvel em breve (espera-se...), e o que se diz é que Mark Buckingham, além de desenhar os números 5 e 6, decidiu redesenhar muito dos #1-4.

    Não sei se alguma vez veremos o terceiro arco de história completo (A Idade das Trevas), creio que a Marvel é capaz de ser esquecido que tinha agora que pagar preços de Gaiman HOJE e não de Gaiman antes, no início dos anos 2000, todo este processo de relançamento de Miracleman se iniciou...

    Ou seja, o nosso volume corresponde ao primeiro arco de história apenas, e quando sair o segundo, parte do qual tinha sido editado há vinte e tal anos, editaremos então o segundo volume.

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  2. Tens toda a razão. Como fui "caçando" todos os números que pude da série, há já anos, pautei-me pelo que tinha, e esqueci-me que nunca obtive os dois números do arco do "Idade da Prata" (penso que o terceiro nunca chegou a ser publicado), agora fora do meu alcance financeiro. Talvez essa "fúria do coleccionador" me tenha feito fazer esse erro, corroborado pelo facto da Marvel não os ter relançado nesta nova vida da série.
    Quanto aos negócios, escapa-me totalmente e não faço futurologia.
    Obrigado,
    pedro

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