Parafraseando Frank Zappa a propósito
do jazz, o “punk não está morto, mas já cheira um bocado mal”.
Ou talvez não. Este projecto já estaria anunciado há algum tempo,
com alguns sinais aqui e ali, por blogs, conversas e encontros de
cariz de vária natureza, do mais académico ao mais descontraído, e
com associações metastásicas por linhas paralelas que apenas o
tempo dirá se se complementam, se se opõem ou simplesmente se
atropelam. Seja como for, os esforços gémeos de Marcos Farrajota e
de Afonso Cortez encontram aqui um caminho que se sustenta mutuamente
num split-book, em que o primeiro ausculta as relações da
noção cultural do “punk” com a banda desenhada em Portugal, e o
segundo faz uma história variada do movimento musical entre nós,
nos vinte anos que distam de 1978 a 1998. Por razões que têm a ver
com a nossa própria especialidade e conhecimentos, falaremos apenas
da “metade” de Farrajota, estando em crer que o livro de Cortez
esteja na excelente linha de produções a que a editora tem
presidido com o conjunto de ensaios sócio-culturais em torno de
fenómenos musicais de Rui Eduardo Paes. (Aborrece-nos apenas
recordar que o único vinil que tínhamos desta colheita, e que
aparece citado, foi quebrado contra o chão por razões sem qualquer
importância...) (Mais)
Não nos atreveremos a apresentar aqui
uma ideia de que o punk seria possível de definir. Enquanto
sub-cultura, no preciso sentido que Dick Hebdige propôs, ela não
está somente na sequência das várias culturas específicas aos
adolescentes das sociedades mais ricas materialmente do mundo
ocidental (Reino Unido, Estados Unidos, etc.), como depois se acaba
por desdobrar em várias sub-sub-expressões, e muitos dos seus
elementos acabaram por sobreviver ou mutar-se, de maneira a que
possamos compreender que tenham alterado radicalmente os próprios
processos de organizar os movimentos, modas, ou práticas das
culturas jovens e subversivas. E se as primeiras formas de expressão
passavam sobretudo pela música teriam repercussões imediatas sobre
o vestuário, os tipos de dança, de formas de lazer, de cultura
visual, de modos de comunicação e até em modos de violência, já
para não falar de inscrições políticas e respostas às hegemonias
sociais de cada tempo em particular. Stuart Hall havia definido a
cultura como sendo “aquele nível no qual grupos sociais
desenvolvem padrões de vida distintos e dão forma expressiva à sua
experiência social e material”. Assim, as sub-culturas seriam uma
classe de fenómenos que se traduzem por estilhaçamentos dos
discursos dominantes e consensuais das sociedades em que emergem. E
quanto mais espectaculares, melhor. Para Hebdige, nenhuma outra
cultura suscitou tanta oposição da parte das visões normativas,
nem outro movimento, se assim se quiser chamar, foi tão oposicional
a essas mesmas perspectivas do que o punk.
Portanto, o que deveria ser importante
de sublinhar do punk não seria tanto identificar os autores como
sendo ou não punks (que Farrajota consideraria, com razão, algo tão
patético como pidesco), no sentido em se usam ou não sabão para
esticar a crista ou alfinetes nos blusões de ganga rasgados, mas
antes perceber se existem elementos advindos desse movimento que
possam ser lidos como tal. Apesar de haver sinais de domesticação,
co-opting, comodificação e apropriação do punk,
através de mecanismos de apropriação discursiva da parte do mundo
académico (a Intellect, editora da Studies in Comics, tem
mesmo uma publicação com peritagem intitulada Punk &
Post-Punk!), re-utilização e mercantilismo do vestuário por
várias marcas de roupa, ou até o inevitável rehashing do
capitalismo cultural (custa falar dos Green Day ou Offspring no mesmo
fôlego que os Bad Brains ou os Dead Kennedys), o que Farrajota tenta
sobretudo identificar são os elementos atomizados que se podem
considerar como sendo fruto do punk propriamente dito (digamos,
londrino e californiano), mesmo que reempregues em contextos
diferentes (nacionais, para começar, mas depois ganhando contornos
distintos). E em relação à banda desenhada.
Se se policiasse, de facto, a cultura
punk de uma maneira muito específica, seria possível reduzir o
discurso a pouco. Mas o editor e criador de banda desenhada emprega o
seu conhecimento feito de experiência própria e de leituras para
investigar o tema num processo mais lato. A organização do livro é
estruturada de uma maneira bastante clássica e organizada. Inicia-se
pela identificação das raízes internacionais e depois organiza
cronologicamente a edição portuguesa de material passível de ser
visto sob este ângulo ou foco. Esta organização temporal não o
impede de recuar a um passado, dando início à tal identificação
lateral dos elementos, que depois se reflecte na inclusão de
projectos já posteriores às datas que se imaginariam afectas de
maneira directa ao punk.
Daí há toda uma série de
desdobramentos que permitem colocar as questões mais prementes e
certas. Começa-se pela representação estreita de personagens ou da
cena musical punk, e é muito curioso que, com efeito, a esmagadora
maioria dela se reduza a caricaturas e mobiliário urbano, o que leva
a questões de integração da diversidade possível e da emergência
de verdadeiras personagens, colocando, talvez sem surpresas, Fernando
Relvas como figura inédita e irrepetida. Depois, temos a
interrogação da realidade, a emergência da autobiografia, a
inclusão e atenção para com assuntos tais como as drogas, o sexo,
a ocupação de edifícios, e finalmente questões estilísticas,
desde o desenho, composição ou utilização de estratégias
gráficas como a colagem. Neste último ponto, a rememoração do
magnífico “Avé-Marias Rap”, de Diniz Conefrey, confirma que
houve tempos em que se verificava uma maior investigação expressiva
nesta disciplina, que não se tem repetido nos tempos mais actuais,
apesar do aumento da visibilidade e produtividade.
Apesar desta organização, que se vai
desenrolando como resposta a perguntas de um hipotético
interlocutor, o autor vai associando a sua história a episódios
pessoais, entrevistas e conversas com muitos dos autores, pequenas
notas bio- e bibliográficas importantes, contextualizações de
testemunha e uma maciça e saudável dose de humor e opinião que
torna o discurso rico e divertido, mas sobretudo vivo. É muitas
vezes nos apartes que Farrajota, na verdade, revela a sua verve,
humor, capacidade de análise e muitas vezes virulência (mas afinal,
se nos metemos na boca do punk...). A ideia de compromisso não faria
sentido, mas a auto-crítica, até certo ponto, não está ausente.
Mesmo que se possa crer que uma
perspectiva diferente, ancorada noutra experiência pessoal, pudesse
ter providenciado uma imagem distinta, não estamos em crer que
fosse, porém, mais clara e tão abrangente. Farrajota concede muitas
vezes que as coisas poderiam ser vistas de modos diferentes, sendo
ele também um atento e conhecedor crítico musical com uma
assombrosa competência para identificar géneros e sub-géneros e
matizes musicais [e que se expressa nas suas breves reportagens de concertos], a qual, quanto a nós, nem sequer saberíamos como
começar a responder. De resto, e aliás, as sonoridades presentes no
CD que acompanha este projecto, com temas inéditos dedicados a
várias figuras da banda desenhada ou territórios afins por diversos
nomes que se encaixam no tal descritivo elástico, atravessam pelos
vistos as várias temperaturas ou matizes musicais que a palavra punk
parece poder suscitar, desde o oi! dos Grito! ao groove dos Putan
Club, do spoken whatever do Presidente Drógado ao estranhamente
melódico-suave dos Estilhaços Cinematográficos (se não tivermos
atenção à letra).
Acima de tudo, fica a ideia de que a
maior herança do punk é a cultura do do-it-yourself,
aliando-se então uma das tendências mais marcantes da banda
desenhada moderna portuguesa, a da emergência e formidável produção
de fanzines, a essa prática particular que ocorreu de forma tão
dramática e especial no punk.
O próprio arranjo gráfico do livro
tira algum partido do “mau-comportamento” herdado do movimento
punk (e talvez devamos incluir aí as inúmeras gralhas?), e que procura trazer alguma fluidez e heterodoxia na
organização entre imagens e palavras. De leitura rápida, Punk
Comix não deixará de ser um instrumento de leitura obrigatória
para compreender alguma da história da banda desenhada moderna e
contemporânea em Portugal.
obrigado pela resenha crítica!
ResponderEliminarficou para discussão se "todos os autores de BD portugueses são punks" devido a eterna falta de sentido dos monopólios editoriais (meribéricas e afins) e a necessidade de "mostrar trabalho" que os autores tiveram através de zines e auto-edição... que a herança do punk seja os DIY isso já se sabe...
boas férias se for caso disso!
M