2 de fevereiro de 2018

Gravidez. Júlia Barata (Tigre de Papel)

De tempos a tempos, vemos a abertura de novos territórios na banda desenhada em Portugal. Gravidez, não sendo propriamente uma novidade em termos genéricos ou estilísticos, é-o todavia no seio da nossa própria cena, que ainda continua, apesar da sua mais recente saúde, arreigada a abordagens relativamente convencionais e expectáveis. Este livro, para além de ser a primeira experiência de fôlego da artista e ilustradora portuguesa radicada na Argentina, é também a primeira incursão neste campo criativo pela livraria-editora Tigre de Papel, tornando-se portanto duplamente uma “nova voz”. (Mais) 

Poderemos entender este livro de várias maneiras. Como uma autobiografia, um diário, um caderno de viagem, uma exploração específica de uma experiência única (a gravidez), mas ao mesmo tempo um cadinho em que, de uma forma particularmente subtil, se propõem modos de interrogar ideias feitas, atitudes sociais, expectativas generalizadas e que convidariam, certamente, a toda uma série de discussões de cariz político. Em termos básicos, ou numa hipotética sinopse, poder-se-ia dizer que é a “história da gravidez da Júlia” e toda uma série de interacções com o mundo à sua volta, desde o companheiro aos amigos e família, os vários serviços de saúde, soluções alternativas ao acompanhamento da gravidez, mas também uma auto-reflexão sobre o que essa experiência significa para si mesma, quer do ponto de vista físico quer do ponto de vista existencial.


O facto do livro ter um formato oblongo convidaria igualmente a toda uma série de interpretações materiais-conceptuais, possibilitando ir tão longe quanto o que uma alucinação semiológica permitiria, discutindo a “verticalidade” do acto central à diegese, mas fiquemo-nos por algo mais simples. A autora estrutura as suas páginas em pequenas filas de personagens que leva a estratégias recorrentes: ora o desenho de um cenário completo e unificado onde as personagens se repetem para dar a ideia de movimento, ora apresentando breves sequências de uma acção, estratificando-a ao longo do tempo, ora espraiando uma galeria de personagens que criam a ideia de uma tipologia face a um acontecimento, ou então reforçando sempre a ideia de movimento linear.

A autora, cultora de uma atitude de desenho-esboço, uma gestualidade sumária e rápida herdeira de toda uma série de autores modernos que poderia encontrar em Claire Bretécher um dos seus apogeus, não está interessada propriamente em efeitos de realismo ou de ilusão, mas antes em assegurar os elementos de agência que lhe importa moldar. Não se esteja à espera de, por exemplo, “coerência gráfica”, uma vez que a flutuação dos registos funciona para melhor transmitir as diferentes intensidades de cada “episódio”. Apesar da autora ter discutido publicamente como estas pranchas finalizadas e publicadas são uma versão reestruturada de um verdadeiro registo diarístico que foi compondo ao longo desses meses, essa urgência e imediatez é mantida no produto final. A utilização de várias abordagens gráficas – linhas grossas ou finais, linhas pontilhadas ou pequenos rendilhados e texturas, manchas negras, aqui maior trabalho de detalhe na construção de uma personagem secundária, ali maior celeridade na delineação das personagens principais – contribui sobremaneira para o ritmo desconjuntado desse mesmo percurso, temporal e experiencial.

Por sua vez, aquela linearidade, a qual não deve de forma alguma ser vista como uma fraqueza ou uma ausência de mecanismos de organização narrativa “mais sofisticados”, apenas consolida o foco de todo o projecto. Tal como proposto por nós numa das questões colocadas à autora quando da apresentação pública de Gravidez, há aqui uma nítida opção por criar uma descomplicada estrutura temporal associada ao que o título promete. O livro não se estende sobre as condições da união entre a protagonista e o seu parceiro, nem tampouco explora a vida do seu fruto. Concentra-se no complexo acto e processo da gravidez: começa imediatamente antes do retorno da “fertilidade”, seguido logo da notícia-choque da gravidez e a mudança de Portugal para Buenos Aires, e termina pouco tempo depois do parto, com o rebento plenamente chegado à vida externa.

A autora pretende fazer uma abordagem franca e quase completa desta gravidez, mas vai tanto além como aquém disso. Aquém porque, apesar de à partida podermos estar à espera de uma total exposição do si de uma forma “demasiado” íntima – o que, em si mesmo, seria apanágio de toda uma série de experiências da autobiografia da banda desenhada moderna, sobretudo aquela advinda da “escrita [gráfica] feminina” – há sempre uma distância suficiente que a afastaria, em grau, ainda que não em natureza, de autoras como Aline Kominsky, Roberta Gregory ou Julie Doucet.

Digamos que, se criássemos uma (desinteressante, mas com valor heurístico aqui) dicotomia entre uma abordagem “pornográfica” e outra “delicodoce”, diríamos que Júlia Barata não se inclina nem para aquele trio de autores anglófonas, mais acerbas, nem tampouco para um tom mais suave, como o da autora francesa Capucine, a qual também criara outro diário de gravidez, Corps de rêve. Por exemplo, na cena de uma episiotomia a que se vê forçada, Barata opta por uma representação de um “close-up” da vagina num registo mais simbólico e metafórico do que iconográfico. Sendo a única cena que foge totalmente à câmara dos eventos do resto do livro, torna-se significativa. Dito isto, o estilo do desenho está mais próximo do new wave do que os registos de uma ilustração mais convencional e formulaica.


Mas, por outro lado, Gravidez vai além daquele tratamento. A autora não quer tão-somente falar das metamorfoses do seu corpo e espírito. A “circunstância” da gravidez é a desculpa para que, em torno dela, se criem perspectivas sobre as atitudes que existem em relação a ela. Como qualquer pessoa que tenha estado grávida, ou envolvida numa gravidez, saberá, os conselhos chovem de todas as direcções e quase toda a gente tem conselhos a dar. Mais, num tempo em que existe uma imensa facilidade em ter acesso a informação sobre tudo, tudo poderá surgir para discussão. O problema está em navegar por entre esse excesso, as escolhas a fazer mas, sobretudo, apercebermo-nos de quais juízos de valor emergem nessa navegação e quando aceitar ou rejeitar esses mesmos juízos.

Ora, a questão não é, pelo menos neste nosso espaço, discutir quais conselhos são certos ou qual a atitude a tomar, naturalmente, mas compreender a forma como Júlia Barata é muito subtil nessa gestão na sua banda desenhada. Na ausência de legendas de uma narradora externa, de diálogos com outras personagens sobre terceiros, até mesmo de apartes com o narratário, e no uso parcimonioso de balões de pensamento, a protagonista não faz qualquer juízo de valor sobre as pessoas com quem interage, sobre o que dizem, ou até do que vê (se bem que possamos interpretar as suas expressões). Mas à medida que vai falando com novos amigos na nova cidade, com obstetras, agentes de seguradoras, vendedoras de roupa de bebé, parteiras privadas e doulas, terapeutas e enfermeiras, e pessoas em geral, vão surgindo aqui e ali farpas, conselhos, ideias feitas, opiniões, perspectivas, etc. com que a protagonista lida de modos sempre distintos, mas sobretudo deixando aos leitores a responsabilidade de criar os seus próprios juízos. Imaginamos que estes juízos sejam diferentes entre os leitores (estes acreditando que uma doula permite uma relação mais primal e directa com certos ritmos do corpo e independentes da “invasão” da medicina ocidental, aqueles outros preferindo a segurança ofertada pelo serviço nacional de saúde, etc.), e é aí que reside uma das forças do livro.

É uma gravidez, não todas ou sequer a gravidez, que é aqui exposta. Mas é ela que convida, após a leitura desta experiência e a sua expressão individual, encetar talvez uma conversa maior.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, assim como pelo convite ao seu lançamento oficinal na livraria do mesmo nome, e um cumprimento à autora, pela simpatia e confiança.  

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