23 de março de 2018

Duplo Vê/O Tautólogo. Mattia Denisse (dois dias)


Por esta altura, começa a construir-se um edifício feito de elementos singulares, e a que se poderá vir a dar o nome de “obra gráfica”, de Mattia Denisse, designação que tanto terá a felicidade de agrupar essa sua produção por um traço material, permitindo uma visão de conjunto e uma consideração das constantes, como poderá incorrer em distrações relativas a especificidades de cada um desses mesmos elementos. (Mais) 

Este volume é a materialização, sob a forma de um livro, do projecto de exposição/instalação de desenhos Duplo Vê, que teve lugar na Casa das Histórias Paula Rego, a que já fizéramos menção quando da nossa participação nas marginálias da sua “versão” online. Dessa forma, se o considerarmos a partir do conceito do “arquivo”, talvez possam surgir algumas questões de família com outras práticas artísticas. Não é que se trate de um repositório à la Atlas de Richter, onde existisse uma colecção de elementos passíveis de serem reempregues e transformados depois, mesmo que tenhamos, em outros trabalhos do autor, aventado a ideia de que certas cenas poderiam parecer apontamentos de instalações ou performances por vir. Todavia, sublinhe-se que menos do que uma espécie de esboço, esses desenhos devem surgir como a própria materialização e concretização dessa mesma acção. O Tautólogo, apesar desse título, não é um mero repositório burocrático dos desenhos da exposição, não é um catálogo. É antes um relançamento dos mesmos materiais numa modalidade diferente, que agencia esses mesmos desenhos em novas redes de possibilidade. Sendo um códice, a sua organização e convite ao folheamento está “fechado”, digamos assim: a forma que tem não pode ser negada, e há claramente uma busca de um ritmo interno. Note-se como há uma paginação de um número de desenhos semi-minimais desenhados a lápis vermelho e azul, seguidos por núcleos de quatro páginas com desenhos a mais cores.

Apesar desse ritmo, a aparente falta de linearidade narrativa, este fluxo descontínuo, não impede que surjam “blocos de significado” recorrentes, ou situações que conseguimos unir sob a impressão de um mesmo descritivo. Tendo em conta a representação da personagem masculina, partilhando traços físicos idênticos aos do próprio artista, é muito difícil não construir uma ideia fantasmática do “artista no seu atelier”, rodeado dos seus instrumentos de trabalho ou na iminência de criar a sua prática. Mais, a associação textual deste projecto à autobiografia de Georges Perec, W ou les souvenirs d'enfance, leva a que se torne estimulante uma leitura autobiográfica. O xadrez, a alquimia, o desdobramento do próprio corpo, as pesquisas da fisicalidade, passando pelo sexo e a morte, também nos seus sentidos arquetipais, os jogos de linguagem recombinatória, o ciclo do escafandro (“História fantástica do mergulho”), uma espécie de abandono a uma natureza selvagem, nunca “virginal”, mas sempre informada por grandes enquadramentos teóricos, e toda uma panóplia de referências cultas (literárias, artísticas, cinematográficas, filosóficas, etc.) são os tais descritivos possíveis. O filósofo Mark Johnson, que demonstrou com George Lakoff a origem física da nossa linguagem metafórica (bem para além das ditas “figuras de estilo” empregues na retórica), escreveu que “o conteúdo proposicional é apenas possível graças a uma rede complexa de estruturas esquemáticas não-proposicionais que emergem da nossa experiência corporal [bodily]”. Por outras palavras, Johnson demonstra como as imagens não emergem tão-somente de uma hipotética e directa relação com a visão, mas antes no interior de uma rede de convenções, possibilidades e limitações do corpo humano. Denisse, mesmo que não explore de forma explícita essa relação e debuxamento de limite, trabalha de uma forma clara essa mesma relação, colocando estes corpos (estas personagens) no centro do agenciamento dos restantes elementos.

Não deixa de ser curioso também que, se as “artes arquivais” fazem usualmente menção ou uso de todo um aparato tecnológico desenvolvido ao longo do século XIX e XX, e que tem já no XXI consequências exponenciais na internet 3.0 e na internet-das-coisas, Denisse se vire não apenas para uma das mais velhas tecnologias humanas como para acções que também implicam um quase-despojamento nessa história. Todos estes desenhos são cumpridos tão-somente com lápis sobre papel. Os materiais riscadores mais básicos – grafite e pigmentos, num invólucro de madeira – e as superfícies mais imediatas – papel. Mas também as “cenas” mostram um uso relativamente simples das tecnologias de informação, comunicação e armazenamento. Certo, temos uma cena onde se vê um projector numa sala de aula, ou outra com o portátil do artista, mas a esmagadora maioria das imagens mostrarão o protagonista manipulando ramos e paus, formas geométricas básicas ou estruturas impossíveis, tabuleiros de xadrez e os seus implacáveis relógios, e estando em contacto directo com os seus próprios duplos, com esqueletos, com símios, com uma mulher despida. Bastas vezes vemos o interior de uma sala onde se apresentam, em estantes simples, toda uma série de objectos que remetem a uma ideia de um gabinete de curiosidades a um só tempo anómico e repleto de referências à história da arte e da antropologia. Ou então a um laboratório alquímico, disciplina na qual são a recombinação e transmutação as práticas principais.

A associação à patafísica é por demais clara, já que mesmo textualmente citada em determinados momentos. A patafísica nasceu num contexto paródico de estudantes, nas mãos dos colegas adolescentes de Alfred Jarry, como bem nos recorda uma recente e completa biografia do escritor em língua inglesa, Alfred Jarry. A Pataphysical Life, de Alastair Brotchie. Mas essa brincadeira ganharia contornos mais sérios de investigação e prática literária e artística e, mais tarde, filosófica, com a quantidade de autores, sobretudo de expressão francesa, que contribuiriam para a sua consolidação (se bem que jamais “solidificação”). A sua “definição” original apresentava-a como “a ciência de soluções imaginárias, que simbolicamente atribuem aos contornos as propriedades dos objectos descritos pela sua virtualidade”. Ao contrário da ciência propriamente dita, que tratará do geral, a patafísica abordava o particular, e funcionaria, tal como um epifenómeno em relação aos fenómenos, isto é, numa posição sobreposta, em relação à física. Focando, então, o excepcional, explorando as capacidades do virtual sobre o mundo real, fazendo com que o desejo, menos do que uma ausência, passasse a informar de forma quase tangível, o actual. De novo, tudo isto nos remete para a ideia de projecção das acções das personagens representadas nos desenhos de Mattia Denisse, na continuidade da ideia de um arquivo de coisas por vir.

E tal como a patafísica parodia, mas aproveita, as capacidades providenciadas pelas ciências, tentemos demonstrar uma potencialidade do livro. A esmagadora maioria dos desenhos são aqueles delineados a linhas vermelhas e azuis (tal como o livro nos é oferecido em duas versões de capa), os quais devem ser compreendidos como “pré-desenhos” das composições similares mais detalhadas (na figuração, texturas em trama, cores, detalhes). O vermelho e o azul corresponderão aproximadamente às extremidades do espectro cromático da visão humana e, consequentemente, à frequência electromagnética. Se pensarmos nas noções de red shift e blue shift, ou desvio para o vermelho e desvio para o azul, poderemos pensar em outros sistemas de oposição como aquele entre o afastamento e a aproximação, o futuro e o passado, a velocidade e a inércia... Essas dicotomias são resolvidas na combinação do desenho, que tanto projecta algo para além dele (meta-, pata-) como se resolve nele mesmo. Portanto, conforme o leitor ou leitora, que poderá fazer-se de vesgo como o Deus interrogado ao longo do projecto, poder-se-á manipular o livro como um gesto de passado, de arquivo, de catálogo, de balanço, de fecho, como um novo gesto de lançamento, de acção, de interpretação. E uma dessas opções não elimina, substitui, delimita, a outra.

Cada olho no seu galho.
Nota final: agradecimentos ao autor e editores, pela oferta do livro. Gif copiado do site da editora.

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