15 de março de 2018

Livro das imagens. Sei Miguel (O Homem do Saco/Marmita de Gigante)


É por vezes difícil, se não impossível, lermos, vermos, interpretarmos e pronunciar um juízo de valor sobre uma determinada obra nova sem recorrermos a elementos que lhe são extrínsecos. As mais das vezes, isso prende-se a questões de biografia, círculo social ou outra actividade profissional, pública ou artística que o autor ou autora exerçam e que parecem fazer pressão sobre aquelas que se nos apresentam no momento. É isso o que sucede quando se procuram “traços” de arquitectura em desenhistas que têm formação de arquitecto (e tão distintos como Richard Câmara, Francisco Sousa Lobo, Pedro Burgos, Ana Cortesão, André Pereira), ou se pretendem compreender como actividades musicais podem informar a prática da banda desenhada (Carlos Zíngaro, Ilan Manouach, Brian Chippendale, André Coelho). Quase sempre esse exercício é supérfluo e inválido, uma vez que providencia mais com elementos de cegueira e limitação do que um caminho para cumprir uma melhor leitura crítica. (Mais)

Ao depararmo-nos com esta colecção de desenhos de Sei Miguel, consagrado monstro da improvisação sonora, é muito difícil então que não tentemos raspar parte da sua patina conquistada no circuito musical para alimentar uma putativa celebração dos próprios desenhos. Um exercício facilitista, de certa forma, que quase impediria enfrentar os desenhos por si mesmos. Todavia, e sem paradoxo, talvez seja essa compreensão de outra actividade que poderá fornecer-nos algumas pistas de leitura. Uma possível definição de performance (cf. Stephen Davies) é a de “um conjunto de instruções, dirigidas aos seus executantes, para a produção das suas execuções”. A improvisação não significa propriamente que haja uma ausência absoluta de “instruções”, mas antes uma profunda compreensão dos micro-mecanismos das estruturas expressivas possíveis com um determinado meio sobre o qual se exerce mestria (de um instrumento musical, do desenho) e uma capacidade subtil e quase-instantânea de reacção em relação às condições circunstanciais e imediatas do momento da sua produção.

Uma compreensão clássica do “estilo”, no que diz respeito à produção do desenho, veria uma plena possibilidade de elencar elementos constitutivos dessa actividade, que se agregariam quase necessariamente a determinados efeitos perceptuais. Por outras palavras, uma quase redutora ligação directa entre causa e efeito entre um traço, uma linha, uma nota suspensa, uma explosão de fôlego num trompete, a um efeito de significado “previsto”. Contudo, essa perspectiva impediria que se instalasse na própria produção nova dos perceptos uma capacidade de surpresa, de inesperado, até mesmo impediria que o “erro”, tão bem-vindo na improvisação, se tornasse pasto de maravilha e produtividade estética, e separasse de uma forma contudente a ideia de uma “intenção original” e os seus resultados materiais efectivos e observáveis/perceptíveis: um concerto, um desenho.

De acordo com algumas entrevistas, Sei Miguel começou a sua actividade enquanto desenhador, ecoando a experiência de Carlos Zíngaro que, a um momento jovem, pensava ser esse o território onde medraria profissionalmente, sendo a música algo secundário. Este volume reúne dezenas de desenhos, elaborados no intervalo temporal indicado na capa. Acrescentando-e à maneira muito precisa como o autor intitula, assina e data os desenhos (pelo menos com o ano), presume-se um desejo e um cuidado no seu arquivamento, insuflando à sua qualidade improvisada uma possibilidade de gravação, transformando-os então, por consequência, numa passível plataforma de observação posterior, de aprendizagem, de, lá está, compreender e aprofundar a mestria dos tais micro-mecanismos expressivos que o desenho proporciona.

Desenhados com um material riscador banal, desligado da nobreza de outros materiais, poderia dar a sensação repentina estarmos perante meros “rabiscos”, “doodles”, distraídos, que se cumpririam durante uma conversão ao telefone ou numa reunião de trabalho (seria tentador criar essa imagem a partir de um desenho e situação como a de “Requerimento”). Mas a relativa pobreza do material é consentânea com a relação desproporcional proposta por Sei Miguel entre a economia de meios do ponto de partida e exuberância dos seus resultados, que convidam a uma negociação permanente com o significado ou a interpretação do espectador. É preciso igualmente salientar a materialidade do próprio volume, desde o tratamento das imagens à paginação, ao design e formato do livro, às manchas quase-invisíveis da fita-cola que decoram a capa, que transformam todas estas imagens – que imaginamos terem sido criadas em circunstâncias muito distintas, quiçá em materiais de suporto diferentes, e em formatos diversos – numa procissão relativamente homogénea, coesa, sublinhando muitas das características comuns da assinatura gráfica do autor: linhas rápidas sem hesitações, formas abertas, um burilar das figuras de modo angular, algo devedor ao cubismo e, através dele, às ditas abordagens primitivistas, alguns pequenos apontamentos de texturas, pontilhismos ou tramas para criar texturas e volumes breves, manchas negras que fazem reequilibrar as massas e aumentam os jogos de contraste possíveis.

Tal como os livros de que temos falado de Gonçalo Pena, de Alice Geirinhas, de Mattia Denisse, ou outros, o acto da própria colecção de objectos heterogéneos como desenhos numa massa unida poderá forçar uma espécie de sentido unívoco sobre todo esse corpo. Mas identificarmos elementos recorrentes, sejam eles estilísticos, recursivos, materiais ou temáticos, é precisamente um dos princípios organizativos do acto interpretativo. E é naturalíssimo que emerja neste volume uma vontade, dos próprios desenhos, em se coalescerem numa unidade.

A esmagadora maioria dos desenhos centra-se em figuras, personagens antropomórficas, hieráticas. Se algumas delas quase parecem remeter a um universo de arquétipos (“Sacerdotisa”, “O bom pastor”, “Aeromante”, “Criador”, “adorabilis”), cujos significados são reforçados pela presença de personagens que citam a mitografia ocidental (“Santo Antão”, “Saturninos”, “Tétis e Oceanus”, “Narciso”, “baixa mitologia – Leda”) ou situações micro-narrativas que auscultam noções ritualísticas (“Ablução”, “O monge enamorado”, “A casa da morte”, “Serenata”, “O antigo dever”),
outras parecem ser quase retratos em frente a episódios quotidianos e triviais (“São horas de dar as boas-noites”, “Espólio/Jovem erudito”, “No jardim”, “Egipto”). Menos do que encontrarmos um psicodrama organizado, vemos regressos e recorrências a determinados assuntos.

No entanto, sublinhe-se a repetição de um motivo: o da hierarquia entre corpos, em que um demiurgo observa as suas criaturas, ou um totem preside aos bacanais dos idólatras, ou uma relação entre duas, ou mais personagens, envolvem de imediato um pequeno novelo sentimental (feliz como em “A noiva” ou trágico como em “um caso triste”, mas identificável em muitas outras prestações). São raras as figuras totalmente isoladas, quase todas se encontram sempre numa rede de relações que é necessário destrinçar (chegue-se ou não às mesmas conclusões).

Existem também algumas composições quase-abstractas, de paisagens onde se isolam objectos geológicos ou cristalizados, talvez, mas que ecoam elementos que compõem igualmente os fundos ou os corpos de outras composições onde a figura humana ocupa o lugar de destaque. Aliás, são essas estruturas não-humanas que muitas vezes adensam os desenhos no que parecem ter de “excessivo”, isto é, para além da necessidade do que identifica a figura para chegar à sua riqueza material. E são muitas vezes os pormenores que tornam os desenhos estimulantes na sua leitura: as expressões contrastantes dos observadores, inclusive da lua cartoonesca, de “choro”, a acumulação de chaves em “Suburbanos”, o cavalo que trota atrás do menino em “Brinquedos”, o relâmpago alado em “Leda”, o objecto observado por “Narciso” (a sua própria reflexão distorcida?). Como é de esperar, esses elementos apenas reforçam aquele exercício interpretativo que aventámos: maior rigor nas relações entre as figuras, adensamento do seu pequeno mundo concentrado, abertura da leitura.

Acompanhados de dois poemas-comentário de Gastão Cruz, sendo um deles um riff sobre os títulos e matéria dos desenhos, poderão ser também outro ponto de partida para a “leitura” de toda esta matéria, sobretudo por nos ensinar que “Ver é torcer a beleza dos seres”.
Nota final: agradecimentos aos editores e ao autor, pela oferta do livro.

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