14 de março de 2018

Fearless Colors. Samplerman (Mmmnnnrrrg et al.)


Na contracapa deste volume antológico, que colecciona grande parte da produção do autor francês nesta sua vertente de bandas não desenhadas mas coladas, encontramos uma mulher, numa espécie de função de Atlas, a segurar um globo terrestre. Calcorreando a sua circunferência, encontramos várias personagens retiradas de variados territórios da banda desenhada, que apesar de se encontrarem num putativo intervalo limitado – diríamos a banda desenhada de género(s) e comercial das décadas de 1930 a 1950, sobretudo americana –, representariam vários registos: a aventura, o policial, a comédia, o biográfico-histórico, o fantástico, etc. Há femme fatales, um vilão, um hillbilly, um cientista ao microscópio, bebés nadadores, uma tribo de mulheres-gato, a mão de um pescador, uma pomba e uma manivela. Talvez estas personagens avulsas e diversas não tenham aqui um valor narrativo propriamente dito, mas em relação à expressão feliz e celebratória da cariátide do mundo poderão cumprir o papel de signos de um arquivo maior: aquele que está disponível e é empregue pelo artista, para a sua prática transformativa e criativa. (Mais)

No entanto, a imagem poderá dar a entender que é propósito do autor re-lançar estas personagens em novas situações, paranarrativas, eventuais (isto é, associadas a um evento, a alteração do estado das coisas, implicando uma ancoragem espácio-temporal e de causalidade), quando no fundo o que se opera nestas páginas é uma actividade quase puramente estética, focada que está em questões de composição e na manipulação de elementos constitutivos como formas, linhas, tensões de objectos gráficos, cores, recorrências e ritmos. Se, nessa prática, acabar por emergir alguma sensação de significado textual, de acontecimento, de relações passíveis de interpretação emotiva ou psicológica, será um acidente de percurso, uma mais-valia de significado.

Samplerman fará parte de um pequeno mas notável grupo de artistas que tem criado novas bandas desenhadas a partir de textos preexistentes, através da técnica da colagem. Conforme já havíamos debatido numa ocasião anterior, lavrámos um pequeno ensaio académico (ainda inédito) em torno dessa questão, e quando debatemos o projecto 978 de Pascal Matthey, atravessámos algumas das noções-chave desta prática, tal como arrolámos alguns nomes irmanáveis e aos quais agora se junta o deste artista. Por exemplo, como medida de contraste, ainda que não absoluto, em 978 havia, apesar das aparências, um claríssimo programa narrativo a emergir da disposição das imagens e a sua transformação em travelling. Pelo contrário, em Fearless Colors, a mera presença de fragmentos de objectos e /ou personagens identificáveis, sob a forma de cortes, trechos, troços, dejectos e sobras, acumulando-se e acotovelando-se entre si para criar uma imagem maior, poderia dar a impressão de se querer avançar uma “outra” história, mas ela na verdade dilui-se apenas nesse trânsito e prazer das formas.

É famosa a curta peça de Art Spiegelman, “The Malpractice Suite”, que se pode encontrar no seu Breakdowns (de 1977): a partir de uma tira relativamente famosa e praticamente inócua, Rex Morgan, M.D., sobre um médico, Spiegelman opera aquilo que Thierry Groensteen chama no “bouquet” da Oubapo um trabalho de reenquadramento por expansão, “revelando” dessa maneira os pesadelos surrealistas que se escondiam para além dessa soap opera da “middle white America”. O tipo de material de partida parece ser aproximadamente idêntico àquele empregue por Samplerman, mas os efeitos – visuais e políticos – são bem distintos do famoso autor norte-americano. A banda desenhada de produção “industrial” parece ter dado azo muito rapidamente a práticas de apropriação, onde se destaca a colagem, com as linguagens das segundas vanguardas do século XX. Vejam-se as obras de autores como Ray Yoshida – que o autor cita, apropria e em torno do qual faz variações de composição/distribuição de elementos – ou de Öyvind Fahlström. E, tal qual esses dois artistas, Samplerman parece diminuir o material da banda desenhada a uma espécie de fragmentos de formas, menos atomizadas que as de Pascal Mathey, mas não ao ponto de ser uma mera recuperação de formas activas.

O texto editorial de apresentação deste volume emprega o vocábulo “fractal”, o que nos parece ser muito preciso e correcto, se tivermos em conta a maneira como o autor acciona mecanismos de recursividade, destacando determinados elementos que “cortara” em multiplicações, dispostas depois de uma forma simétrica ou pelo menos em padrões arregimentados de acordo com algum princípio axial. É sobretudo uma distribuição caleidoscópica aquela que é espoletada na esmagadora maioria das páginas, mas há algumas outras variações espaciais e compositivas.

Algumas das peças, como as iniciais, quase parecem ser variações das imagens mais antigas produzidas com recurso a microscópicos, em que quase se negociava uma observação factual e estruturada em princípios objectivos e científicos, e a incrédula descoberta da existência dessas mesmas figuras, até ali pensadas como fantasiosas. Ou seja, por um lado, a felicidade da descoberta de algo novo e que se imagina ser revolucionário no que diz respeito ao conhecimento e a prática humana. Por outro, a irresistível tendência de “gozar” de imediato com essa mesma possibilidade. No que diz respeito à banda desenhada, Samplerman fá-la avançar, estendendo a ementa dos seus recursos, mais ao mesmo tempo não deixa de brincar um bocado com essa mesma actividade, como se não se quisesse ser levado demasiado a sério... Talvez esta seja ainda uma barreira a ultrapassar pela própria banda desenhada (se bem que existem muito autores que já a demoliram há muito, de Jochen Gerner a Ilan Manouach, Martin Vaughn-James a Francisco Sousa Lobo, mas também Alberto Breccia e Tsuge, entre muitos outros).

Essa ideia de desdobramento orgânico é, de resto, o que parece presidir a “Big Mess” (em torno de uma só personagem), “revealed” (?, difícil identificar a identidade e isolamento das peças, mas esta apresenta-se numa sequência de uma grelha regular de 3 x 4 vinhetas: jogando com cristalizações a partir de elementos de polígonos, paisagens, dedos, Kirby dots, etc.) e “Sky Dynamo” (padrões), menos um jogo de espelhos distorcendo uma putativa imagem original do que uma expansão de elementos internos dessa forma em dendrites activas.

Nalguns casos, alguma matéria verbal, sobretudo diálogos, “sobrevivem”, recordando a prática transformadora de Tom Philips, e não é totalmente impossível ler esse mesmo texto de forma a fazer emergir novos textos, de resto, como bem diz o editor Marcos Farrajota, numa lógica de samplagem, remix, e scratch mais típicas do experimentalismo sonoro. O aumento “temático” também é possível, naturalmente, como ocorre na peça onde Samplerman reemprega elementos de Fletcher Hanks (Fantomah), tornando ainda mais selvagens e surreais as histórias desse autor, ou aumentando o absurdo do trânsito futurista em “Mankind has a problem” [v. imagem anterior]... Por outras palavras, não é que seja impossível forçar um sentido domesticado e até linear em algumas das peças. “Do you think you own me?” é a peça que mais estaria próxima daquela de Spiegelman, por exemplo. Poder-se-ia também imaginar que finalmente temos aqui uma tradução do que significaria enfrentar, com efeito, uma “crise nas infinitas terras”, que convidaria a delírios visuais bem mais inesperados do que aqueles intentados por George Pérez. Mas estamos em crer que seria não apenas uma violência mais forçada do que em outros casos de bande colée (Mathey, Jess) como se tornaria um filtro facilitista que nos impediria de ver e apreciar, pela sua natureza própria, as construções, “sem medo”, que Samplerman nos providencia. A afinidade com o trabalho de Cátia Serrão é, nessa liberdade da narrativa, vincadíssima, ainda que a artista portuguesa atinja os seus fins sem a defesa da ironia.


Fearless Colors reúne trabalhos produzidos entre 2012 e 2015, e foi co-publicado num esforço conjunto entre a editora portuguesa, a espanhola Ediciones Valientes e a Kus! da Látvia. O autor esteve presente na Mundo Fantasma, no Porto, a propósito da abertura da exposição Matéria Escura, de Filipe Abranches (que se faz acompanhar por um pequeno texto nosso) e fez uma breve demonstração do seu processo de trabalho, utilizando instrumentos analógicos (corte e colagem), apesar dele empregar sobretudo ferramentas digitais para estes trabalhos. O autor estará presente esta Sexta-feira, dia 16, a partir das 18h00, na Nouvelle Librairie Française, para um encontro informal com leitores interessados, que poderão adquirir o livro e pedir uma dédicace (provavelmente ficando com um buraco no livro?).

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