A longo
prazo, será produtivo pensar na colaboração desta dupla de uma
forma mais analisada. Tentar compreender como é que atingem uma
fórmula de fundação sólida tal que a factura dos seus livros não
pode ser considerada do ponto de vista de uma “história com
desenhos” nem de “desenhos historiados”. Todos os factores
contam na sua estruturação prístina, inconsútil, enquanto banda
desenhada. A leoa é uma biografia da escritora
dinamarquesa Karen Blixen, autora da famosa autobiografia África
Minha (graças igualmente ao filme de Sydney Pollack de 1985), A
festa de Babette, e de Contos e Inverno. Uma biografia que
vai além desses instrumentos, pra devolver uma vida profunda,
imaginativa e vivida dessa personagem. (Mais)
A
estrutura narrativa é apresentada de uma forma simples e
compartimentada. Depois de uma espécie de intróito mágico, em que
o nascimento de Karen é festejado e coroado pela visita de sete
fadas, remetendo esta biografia para um género mais fantasioso,
seguem-se três blocos. O da sua infância e juventude, em busca de
um rumo para os desejos de liberdade e criatividade, suspensos, senão
mesmo esmagados, pela cultura puritana da sua classe social (uma
linhagem nobre decadente da parte do pai, e uma pequena burguesia
tradicional da parte materna); a sua primeira maturidade no Quénia,
que será o fruto “romântico” da sua vida; e o regresso à
Dinamarca, iniciando finalmente a sua carreira literária, tardia mas
majestosa, e onde os fios da sua experiência confluem para a tornar
uma autora central das letras europeias do século XX.
No final
de volume, apresenta-se uma lista considerável de livros, filmes e
documentos consultados para a construção da escrita de A leoa,
mas Pandolfo, imaginando que responsável por esse ponto de partida,
não constrói uma narrativa densa com o máximo de informações
possíveis, antes criando, mesmo em quase 200 pranchas, uma unidade
fluida, tranquila e capaz de parar tempo para compreender emoções e
consequências internas.
Essa
simplicidade estrutural, portanto, apenas serve o propósito da sua
organização episódica, já que o tratamento interno lança mão
das mais diversas estratégias de escrita, inclusive da visual
própria da banda desenhada. Como dissemos atrás, Karen é visitada
por sete fadas, e os não-leitores provavelmente compreenderiam essas
palavras numa qualquer tradução tradicional ou disneyesca... São
fadas no seu mais potente significado etimológico, sem dúvida, já
que ditam a fortuna que virá a esta criança, mas cada uma delas
representará uma dimensão da biografia da autora que não terá, em
retrospectiva, maior proeminência do que as outras, como se se
tratasse de uma equação equilibrada: as fadas são Nietzsche, cuja
filosofia da vontade de poder será o principal móbil da fuga de
Karen do mundo estiolado e abafado que a rodeia; Xerazade, símbolo
de uma outra vontade, a de contar histórias, ainda que embrulhada
igualmente em questões de poder sexual, sedução e diálogo;
Shakespeare, como representante maximal da invenção de, não
personagens, mas pessoas, no labor literário; um leão, que
ocupará um lugar de fascínio que a aproximará ao continente
africano, com as suas contradições políticas dessa mesma
simbologia e interpretação; um rei da África negra, uma espécie
de nódulo e espelho dos povos com quem Karen iria confraternizar em
África, e com quem aprenderia um mundo mais vasto, como os Masai, os
Somali ou os Kikuyus; o Diabo, que lhe promete levantar obstáculos
para toda a vida e que se irá traduzir na parte trágica da sua
vida: as mortes traumáticas do pai, do amante, as dificuldades que a
vida lhe reservará por ser mulher, os problemas financeiros; e uma
cegonha, que não chegará a poder ditar-lhe as sortes, mas a
acompanhará toda a vida na sua ânsia de partir, viajar, migrar,
voar.
Os autores
não optam por uma biografia realista e linear. Há um equilíbrio
suficiente entre as abordagens. Existem momentos apresentados
visualmente mas narrados por uma voz externa a essas acções,
usualmente de um narrador que não Blixen, explicando o quadro dos
acontecimentos, encurtando as durações, buscando informação que
escapa à esfera da vida da autora para adensar o mundo social em seu
torno. E existem traduções imediatas de sequências com as
personagens, dialogantes, fazendo coisas, cumprindo papéis. Risbjerg
apresenta aqui uma assinatura mais fluída com o trabalho de linha
com o que parece ser pincel, tornada sólida e ancorada por um
trabalho sóbrio das aguarelas e aguadas em papel texturado, visível
sob as manchas. A opção por uma paleta particularmente limitada de
cinzentos, ocres, castanhos, poucos azuis e raríssimos verdes,
tornam estranhamente homogénea as paisagens dinamarquesas e
quenianas, mas ao mesmo tempo uniformizando a focalização da
protagonista e, se quisermos, uma certa ambientação decandentista,
finissecular, anémica, que ela herda sem dúvida. As composições
de página são extremamente variadas, acompanhando os vários ritmos
narrativos, emocionais e de relações das personagens, chegando a
mimar alguns episódios: a liberdade e aparente caos do voo dos
estorninhos, as memórias glaucas do pai de Karen no país dos Sioux,
os crepúsculos africanos sentindo a desaparição das sociedades
tradicionais... São sobretudo os dois primeiros capítulos aqueles
que apresentam maiores inventabilidades gráficas, demonstrando a
vida activa e de busca da personagem principal, reservando-se à
terceira parte uma mais convencional abordagem do seu trabalho e
recepção literários.
Quando
mencionámos o leão, afirmámos que surgiria como um símbolo
contraditório, e pensamos que essas contradições, ou
problemáticas, estão totalmente ausentes deste volume. Duas
dimensões, sobretudo, que uma óptica pós-colonialista e feminista
iluminaria com facilidade. É uma biografia celebratória, claro. Não
propriamente uma hagiografia, mas um livro que constrói o seu
propósito em torno de uma narrativa clara: a vitória de uma mulher,
solitariamente, contra toda uma sociedade que lhe desejava um papel
tradicional, e uma conquista literária num “mundo de homens”. Na
página 55 urge uma verdadeira galeria de referências literárias,
que servirão das leituras decisivas da jovem Karen. Inclui as
Brontë, Austen, Shelley. Mas não deixa de ser curioso que, na
economia deste livro, as figuras mentoras, e actuantes, da
literatura nascente da protagonista surjam sob a forma de pessoas
tais como Shakespeare e Ibsen, ambas figuras histórias e dramaturgos
literatos e psicológicos, e Sherazade, uma figura mítica, feminina
e associada à oralidade. Quase todas as figuras femininas com alguma
presença actancial no livro são sempre símbolo do domínio dos
valores tradicionais e de uma domesticidade limitadora. O recurso de
Blixen a um pseudónimo para lançar o seu primeiro livro, Isak
Dinesen, é tratado como um jogo, mas não tematizado como uma
questão digna de ser debatida. Tendo em conta a menção às Brontë
(que assinaram como “Bell”) e que esta é uma estratégia tão
recente quanto a autora de Harry Potter, o seu tratamento como
mero passe de prestidigitação é algo ingénuo.
Mas acima
de tudo, estará o papel de Blixen em relação ao “continente
negro”. Não há espaço aqui para explorar aquilo que seria um
ensaio de estudos pós-colonialistas a ler Blixen, trabalho esse já
feito de forma sólida por outros críticos. Não deixa de ser
surpreendente que o título do seu livro mais famoso, em inglês Out
of Africa e no original dinamarquês, e depois tradução
francesa, A quinta africana, tenha sido traduzido em Portugal,
antiga potência colonial, como África minha, optando em
primeiro lugar pela objectificação unitária de todo um continente
variado e vastíssimo num bloco homogéneo e, em segundo lugar, pelo
pronome possessivo na primeira pessoa do singular. É uma tradução
brilhante, na verdade, pois revela precisamente que África é essa:
um objecto possuído. Por mais mitificador que seja o trabalho
explorado por Blixen, que de resto retoma precisamente aquela atitude
prevista por um certo posicionamento, a um só tempo,
“orientalizante” e “feminino”, as suas paisagens, naturais e
sociais, e as suas gentes, são retratadas a partir de categorias
prêt-a-porter para os europeus. O posicionamento
aristocrático da autora, face aos seus “Negros” ou “Nativos”,
é quase clássico: esses povos são constituídos de gente pura,
próxima à natureza, por vezes confundidos com as figuras animais em
torno da luxuriosa paisagem. São inocentes, e sofrem com o avanço
da civilização europeia. Mas sempre sem agência. A própria Blixen
funciona como uma “Salvadora branca”. Bem-pensante, sem dúvida,
mas confirmando os mesmos preconceitos que aqueles que ela própria
julgava contrários à sua visão.
Há uma
cena em que Blixen, já na maturidade e em plena glória literária,
mas antes de se dedicar à preservação do mundo natural com a sua
casa, cumprimenta algumas pessoas (homens, curiosamente). A legenda,
explicando os “valores antigos... em vias de desaparecer”
defendidos pele autora, expõe-nos: “Falava de Honra, de Coragem,
de Respeito pela vida humana e animal”. E Blixen está de casaco
com uma pele de animal (arminho, raposa?) em torno do pescoço. Hoje
em dia, não vemos a caça aos animais selvagens africanos como uma
prova de superação da identidade humana, sobretudo masculina.
Esperemos que a maioria dos leitores deste espaço considere esse
tipo de caça recreativa uma simples barbárie. Poderíamos
argumentar que não podemos remeter, porém, estes valores
contemporâneos ao passado, sendo estas pessoas “próprias do seu
tempo”. Muito bem, aceitemos esse desafio. Ao mesmo tempo,
portanto, não aceitemos então que certas pessoas estariam “à
frente do seu tempo”...
Dito isto,
tendo em conta a oferta de biografias em banda desenhada, e que
muitas vezes são um programa escolar o que dita a estruturação e
fabricação desses projectos, não deixa de ser ver em A leoa
um esforço em construir uma forma alternativa de compreender uma
vida. Uma abordagem mítica, que tem tudo a ver com a assinatura
literária de Karen Blixen. Uma biografia realista que dá espaço à
vida intelectual e imaginativa, e até fantasiosa, que está mais
próxima de uma verdade vivida do que uma visão racionalista.
Uma narrativa pausada e fluida, tal como as navegações da autora
dinamarquesa que, com toda a propriedade, ainda nos permitem
fantasiar também.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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