14 de abril de 2018

A leoa. Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg (G. Floy)


A longo prazo, será produtivo pensar na colaboração desta dupla de uma forma mais analisada. Tentar compreender como é que atingem uma fórmula de fundação sólida tal que a factura dos seus livros não pode ser considerada do ponto de vista de uma “história com desenhos” nem de “desenhos historiados”. Todos os factores contam na sua estruturação prístina, inconsútil, enquanto banda desenhada. A leoa é uma biografia da escritora dinamarquesa Karen Blixen, autora da famosa autobiografia África Minha (graças igualmente ao filme de Sydney Pollack de 1985), A festa de Babette, e de Contos e Inverno. Uma biografia que vai além desses instrumentos, pra devolver uma vida profunda, imaginativa e vivida dessa personagem. (Mais) 

A estrutura narrativa é apresentada de uma forma simples e compartimentada. Depois de uma espécie de intróito mágico, em que o nascimento de Karen é festejado e coroado pela visita de sete fadas, remetendo esta biografia para um género mais fantasioso, seguem-se três blocos. O da sua infância e juventude, em busca de um rumo para os desejos de liberdade e criatividade, suspensos, senão mesmo esmagados, pela cultura puritana da sua classe social (uma linhagem nobre decadente da parte do pai, e uma pequena burguesia tradicional da parte materna); a sua primeira maturidade no Quénia, que será o fruto “romântico” da sua vida; e o regresso à Dinamarca, iniciando finalmente a sua carreira literária, tardia mas majestosa, e onde os fios da sua experiência confluem para a tornar uma autora central das letras europeias do século XX.

No final de volume, apresenta-se uma lista considerável de livros, filmes e documentos consultados para a construção da escrita de A leoa, mas Pandolfo, imaginando que responsável por esse ponto de partida, não constrói uma narrativa densa com o máximo de informações possíveis, antes criando, mesmo em quase 200 pranchas, uma unidade fluida, tranquila e capaz de parar tempo para compreender emoções e consequências internas.

Essa simplicidade estrutural, portanto, apenas serve o propósito da sua organização episódica, já que o tratamento interno lança mão das mais diversas estratégias de escrita, inclusive da visual própria da banda desenhada. Como dissemos atrás, Karen é visitada por sete fadas, e os não-leitores provavelmente compreenderiam essas palavras numa qualquer tradução tradicional ou disneyesca... São fadas no seu mais potente significado etimológico, sem dúvida, já que ditam a fortuna que virá a esta criança, mas cada uma delas representará uma dimensão da biografia da autora que não terá, em retrospectiva, maior proeminência do que as outras, como se se tratasse de uma equação equilibrada: as fadas são Nietzsche, cuja filosofia da vontade de poder será o principal móbil da fuga de Karen do mundo estiolado e abafado que a rodeia; Xerazade, símbolo de uma outra vontade, a de contar histórias, ainda que embrulhada igualmente em questões de poder sexual, sedução e diálogo; Shakespeare, como representante maximal da invenção de, não personagens, mas pessoas, no labor literário; um leão, que ocupará um lugar de fascínio que a aproximará ao continente africano, com as suas contradições políticas dessa mesma simbologia e interpretação; um rei da África negra, uma espécie de nódulo e espelho dos povos com quem Karen iria confraternizar em África, e com quem aprenderia um mundo mais vasto, como os Masai, os Somali ou os Kikuyus; o Diabo, que lhe promete levantar obstáculos para toda a vida e que se irá traduzir na parte trágica da sua vida: as mortes traumáticas do pai, do amante, as dificuldades que a vida lhe reservará por ser mulher, os problemas financeiros; e uma cegonha, que não chegará a poder ditar-lhe as sortes, mas a acompanhará toda a vida na sua ânsia de partir, viajar, migrar, voar.

Os autores não optam por uma biografia realista e linear. Há um equilíbrio suficiente entre as abordagens. Existem momentos apresentados visualmente mas narrados por uma voz externa a essas acções, usualmente de um narrador que não Blixen, explicando o quadro dos acontecimentos, encurtando as durações, buscando informação que escapa à esfera da vida da autora para adensar o mundo social em seu torno. E existem traduções imediatas de sequências com as personagens, dialogantes, fazendo coisas, cumprindo papéis. Risbjerg apresenta aqui uma assinatura mais fluída com o trabalho de linha com o que parece ser pincel, tornada sólida e ancorada por um trabalho sóbrio das aguarelas e aguadas em papel texturado, visível sob as manchas. A opção por uma paleta particularmente limitada de cinzentos, ocres, castanhos, poucos azuis e raríssimos verdes, tornam estranhamente homogénea as paisagens dinamarquesas e quenianas, mas ao mesmo tempo uniformizando a focalização da protagonista e, se quisermos, uma certa ambientação decandentista, finissecular, anémica, que ela herda sem dúvida. As composições de página são extremamente variadas, acompanhando os vários ritmos narrativos, emocionais e de relações das personagens, chegando a mimar alguns episódios: a liberdade e aparente caos do voo dos estorninhos, as memórias glaucas do pai de Karen no país dos Sioux, os crepúsculos africanos sentindo a desaparição das sociedades tradicionais... São sobretudo os dois primeiros capítulos aqueles que apresentam maiores inventabilidades gráficas, demonstrando a vida activa e de busca da personagem principal, reservando-se à terceira parte uma mais convencional abordagem do seu trabalho e recepção literários.

Quando mencionámos o leão, afirmámos que surgiria como um símbolo contraditório, e pensamos que essas contradições, ou problemáticas, estão totalmente ausentes deste volume. Duas dimensões, sobretudo, que uma óptica pós-colonialista e feminista iluminaria com facilidade. É uma biografia celebratória, claro. Não propriamente uma hagiografia, mas um livro que constrói o seu propósito em torno de uma narrativa clara: a vitória de uma mulher, solitariamente, contra toda uma sociedade que lhe desejava um papel tradicional, e uma conquista literária num “mundo de homens”. Na página 55 urge uma verdadeira galeria de referências literárias, que servirão das leituras decisivas da jovem Karen. Inclui as Brontë, Austen, Shelley. Mas não deixa de ser curioso que, na economia deste livro, as figuras mentoras, e actuantes, da literatura nascente da protagonista surjam sob a forma de pessoas tais como Shakespeare e Ibsen, ambas figuras histórias e dramaturgos literatos e psicológicos, e Sherazade, uma figura mítica, feminina e associada à oralidade. Quase todas as figuras femininas com alguma presença actancial no livro são sempre símbolo do domínio dos valores tradicionais e de uma domesticidade limitadora. O recurso de Blixen a um pseudónimo para lançar o seu primeiro livro, Isak Dinesen, é tratado como um jogo, mas não tematizado como uma questão digna de ser debatida. Tendo em conta a menção às Brontë (que assinaram como “Bell”) e que esta é uma estratégia tão recente quanto a autora de Harry Potter, o seu tratamento como mero passe de prestidigitação é algo ingénuo.

Mas acima de tudo, estará o papel de Blixen em relação ao “continente negro”. Não há espaço aqui para explorar aquilo que seria um ensaio de estudos pós-colonialistas a ler Blixen, trabalho esse já feito de forma sólida por outros críticos. Não deixa de ser surpreendente que o título do seu livro mais famoso, em inglês Out of Africa e no original dinamarquês, e depois tradução francesa, A quinta africana, tenha sido traduzido em Portugal, antiga potência colonial, como África minha, optando em primeiro lugar pela objectificação unitária de todo um continente variado e vastíssimo num bloco homogéneo e, em segundo lugar, pelo pronome possessivo na primeira pessoa do singular. É uma tradução brilhante, na verdade, pois revela precisamente que África é essa: um objecto possuído. Por mais mitificador que seja o trabalho explorado por Blixen, que de resto retoma precisamente aquela atitude prevista por um certo posicionamento, a um só tempo, “orientalizante” e “feminino”, as suas paisagens, naturais e sociais, e as suas gentes, são retratadas a partir de categorias prêt-a-porter para os europeus. O posicionamento aristocrático da autora, face aos seus “Negros” ou “Nativos”, é quase clássico: esses povos são constituídos de gente pura, próxima à natureza, por vezes confundidos com as figuras animais em torno da luxuriosa paisagem. São inocentes, e sofrem com o avanço da civilização europeia. Mas sempre sem agência. A própria Blixen funciona como uma “Salvadora branca”. Bem-pensante, sem dúvida, mas confirmando os mesmos preconceitos que aqueles que ela própria julgava contrários à sua visão.

Há uma cena em que Blixen, já na maturidade e em plena glória literária, mas antes de se dedicar à preservação do mundo natural com a sua casa, cumprimenta algumas pessoas (homens, curiosamente). A legenda, explicando os “valores antigos... em vias de desaparecer” defendidos pele autora, expõe-nos: “Falava de Honra, de Coragem, de Respeito pela vida humana e animal”. E Blixen está de casaco com uma pele de animal (arminho, raposa?) em torno do pescoço. Hoje em dia, não vemos a caça aos animais selvagens africanos como uma prova de superação da identidade humana, sobretudo masculina. Esperemos que a maioria dos leitores deste espaço considere esse tipo de caça recreativa uma simples barbárie. Poderíamos argumentar que não podemos remeter, porém, estes valores contemporâneos ao passado, sendo estas pessoas “próprias do seu tempo”. Muito bem, aceitemos esse desafio. Ao mesmo tempo, portanto, não aceitemos então que certas pessoas estariam “à frente do seu tempo”...

Dito isto, tendo em conta a oferta de biografias em banda desenhada, e que muitas vezes são um programa escolar o que dita a estruturação e fabricação desses projectos, não deixa de ser ver em A leoa um esforço em construir uma forma alternativa de compreender uma vida. Uma abordagem mítica, que tem tudo a ver com a assinatura literária de Karen Blixen. Uma biografia realista que dá espaço à vida intelectual e imaginativa, e até fantasiosa, que está mais próxima de uma verdade vivida do que uma visão racionalista. Uma narrativa pausada e fluida, tal como as navegações da autora dinamarquesa que, com toda a propriedade, ainda nos permitem fantasiar também.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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