A palavra “autópsia”, na sua
acepção moderna e médica, formou-se no cadinho da emergência do
pensamento científico, já no século XVII. Originalmente, a palavra
significará tão-somente “ver com os próprios olhos”,
“testemunhar” (e isto implicará sempre a ideia desta visão ser
a de um terceiro sobre um evento que lhe é externo). Apenas na
modernidade passa a significar “a dissecação de um corpo morto
para determinar a causa da morte”.
Como muitos outros críticos já o
disseram, e acima de tudo, o próprio protagonista deste imenso
romance – e esta será uma das poucas instâncias em que o emprego
deste termo técnico literário não é enviesado – em banda
desenhada, From Hell/Do Inferno é uma investigação
dolorosa, cruel, e violenta ao corpo morto que daria origem ao século
XX. Ao contrário do que se poderia imaginar a partir de uma mera
descrição, ou pior, através da miserável adaptação
cinematográfica de 2001 pelos irmãos Hughes, From Hell não
é um “whodunnit”. Focado nos assassínios de prostitutas em
Whitechapel, Londres, no estertor do século XIX, que ficariam
conhecidos como o caso de “Jack, o Estripador”, o livro assinado
por Alan Moore e Eddie Campbell não se interessará tanto pela
identificação do assassino, já que parte desde o primeiro momento
pela sua revelação: o Dr. William Gull. O que interessa aos autores
é a pesquisa do como aconteceu e, até mais, o porquê
íntimo dessas acções. (Mais)
De acordo com Annalisa Di Liddo, cujo volume académico havíamos discutido noutro lugar, é no próprio
argumento para este projecto que Alan Moore havia descrito esta
empreitada como “a dissecação [the post-mortem] de um
evento histórico, empregando a ficção como escalpelo”, revelando
dessa forma a dimensão potencial de ler esta ficção como tendo
facetas ensaísticas. Aliás, existindo várias hipóteses e/ou
teorias da identidade do assassino “Jack”, Moore e Campbell
tornam a “opção Gull”, uma de muitas, apenas como operativa
para a ficção apresentada, tematizando essa problemática no
capítulo-apêndice, no final deste volume, “Dança dos apanhadores
de gaivota”. A ela remetemos para compreender essa dimensão
extra-textual.
Estabelecida a intriga inicial, a de
que o Dr. Gull resolve matar as prostitutas para abafar um escândalo
com a família real e depois a transmute num projecto místico de
transcendência maçónica, Do Inferno acaba por ir largando
todo um naipe de hipóteses interpretativas. Gull é, a um só tempo,
testemunha desse dealbar de um novo momento da vida societal do mundo
ocidental, mas igualmente seu parteiro e prematuro algoz. Em termos
de género, Do Inferno é um veículo que atravessa múltiplos
territórios. Ficarmos presos a qualquer um deles incorrerá no
perigo de perdermos outras das suas dimensões. Do Inferno é
uma ficção historiográfica, uma biografia ficcionada, um romance
policial, uma história de terror, um ensaio sobre religião e magia,
um mapa psicogeográfico de Londres, uma densa rede de referências
intertextuais, um questionamento da racionalidade, uma pergunta
premente feita ao nosso próprio mundo. De certa forma, poder-se-á
dizer que Do Inferno ilustra o conhecido cinismo de Moore para
com a nossa sociedade em geral, assim como dá corpo a um famoso
dictum de Walter Benjamin, a de que “não há documento da
civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”.
De resto, essa é uma prática típica do escritor, Moore, em não
apenas reinsuflar uma nova vida nos géneros em todos os seus
elementos-chave como em reestruturá-los numa nova configuração
possível.
Podemos então ler o livro de uma forma
superficial, como aquela em torno da intriga do crime e da sua
tentativa resolução policial, reduzindo toda a atenção ao novelo
entre o par Gull-Abberline. Mas isso seria querer negar o poder do
escalpelo, e à violenta e reveladora incisão a que dá acesso. O
livro explora as condições de trabalho da classe mais miserável do
centro de Londres, expõe as tensões entre as classes sociais
estratificadas do Reino Unido, demonstra a emergência de novas
preocupações ou soluções políticas, como o comunismo mas também
o fascismo, avalia as conquistas previstas pela ciência, da
relatividade na física à quarta dimensão, e suas implicações
espácio-temporais, questionando, porém, a um só tempo, tanto o
programa obscurantista das sociedades secretas como a cega crença no
avanço civilizacional do positivismo... Isto para não mencionar
algumas das noções que seriam cunhadas e lavradas pelo próprio
Moore, pois parece-nos encontrar já neste livro alguns dos fios que
se teceriam no conceito de Ideaspace, que seria analisada e
praticada abertamente em League of Extraordinry Gentlemen.
Como diz Gull, “Grandes obras têm muitos propósitos”.
Pensamos ser importante que, na leitura
desta obra, se a considere à luz de dois aspectos. Em primeiro
lugar, em relação à história da produção do escritor, Alan
Moore. Em segundo lugar, no que diz respeito à própria circulação
da banda desenhada.
É quase inevitável que esta obra seja
lida no interior de uma fama e corpus que inclua outros
projectos mais famosos, como Watchmen e The Killing Joke,
assim como de outras séries anteriores e posteriores que estejam
disponíveis (Miracleman, Swamp Thing, V de
Vingança, Lost Girls, Providence, o romance
recente Jersusalem). Isso poderá levar a uma criação de
expectativas determinadas por essas outras obras, que poderá ou não
ser gorada ao se enfrentar a obra menos narrativamente concentrada do
autor. Isto é, mesmo que possamos ver noutras experiências
tentativas de tematizar conteúdos não-narrativos (o caso de
Promethea), é Do Inferno a sua obra mais complexa em
termos filosóficos. Essa leitura da economia do autor pode levar
igualmente a um choque com a escolha do artista.
À época, Eddie Campbell era já um
autor com uma grande recepção crítica, mas sobretudo entre outros
cultores da arte, e menos junto a um público alargado. Aliás, pela
sua própria prática, e de um desenho muito expressivo, advindo das
grandes tradições do desenho britânico, Campbell afasta-se
sobremaneira dos autores com uma abordagem mais comercial com quem
Moore havia dado outros passos com que se tornava, já na altura, um
nome incontornável, com Swamp Thing (a partir de 1984) e
Watchmen (1985-1986), por hipótese. Dos artistas com quem
Moore colaborou mais lata e alongadamente na sua carreira, talvez
seja Campbell aquele que mais preencheria o papel de um entendimento
clássico de “autor”. Este livro apresenta-se com uma grelha
inexorável de 3 x 3 vinhetas, sobre as quais os autores apresentam
variações controladas, e as escolhas e aproximações do artista
aos registos da ilustração (que costumavam ser reproduzidas sob
várias técnicas de gravura), as opções de composição das
vinhetas, o uso de referências e mesmo citações visuais, sob a
forma de colagem ou outra, e a flutuação de técnicas de desenho
(inclusive aguarelas e aguadas), tornam toda a plataforma uma bateria
potente sobre as especificidades expressivas e narrativas da banda
desenhada.
Quanto ao outro ponto, vistos a partir
do momento actual da disponibilidade da banda desenhada quase somente
em formatos livrescos, é algo complexo recuperar a ideia e esforço
destas obras à medida que iam surgindo sob a forma serializada
original. From Hell, como havíamos já discutido quando da
leitura do seu Companion, foi iniciada capítulo a capítulo
(uma mera dezena de páginas) na revista Taboo, de pouca dura,
no final de 1989. Até chegarmos à edição num só monumental
volume, esperar-se-iam mais de dez anos. Fica apenas como aviso, já
que a consideração deste formato acarreta um “prestígio
cultural” e uma “patina” emprestada da literatura – ou para
sermos mais precisos, do estado actual de graça do romance
psicológico burguês modernista – que apaga as origens num meio
bastante distinto e acompanhado de outros textos (recordemos como
Maus, Persepolis, Berlin, O homem que passeia
e até As jóias de Castafiore) nasceram sempre de
pequenas porções em circulações não-livrescas, “adivinhassem”
ou não essa segunda vida. Aconselharíamos, por exemplo, a leitura
de cada capítulo individualmente, “interrompendo” o ritmo
verificando as notas finais, e regressando ao próximo capítulo, de
maneira a compreender, de forma mais íntima, a arquitectura
emocional de cada um deles e não simplesmente subsumi-los a uma
continuidade romanesca. Mesmo assim, voltamos a um dos pontos
iniciais, de que esta é uma das poucas obras de banda desenhada em
que esse termo pode ser aplicado com toda a sua propriedade
específica.
Gostaríamos de terminar com algumas
notas soltas em relação à edição portuguesa da Devir. Em termos
de formato, é algo maior do que as edições que conhecemos mas tem
boa “mão”, como se costuma dizer. As páginas demasiado brancas
tornam-se algo agressivas, e quiçá uma opção qualquer de
off-white teria ajudado a sobressair o trabalho rendilhado e
delicado de Campbell. A reprodução/impressão de algumas imagens,
sobretudo aquelas das aguarelas e aguadas, mais difusas, são algo
deficitárias, sobretudo na capa, o que empobrece a experiência
global da sua leitura. Aliás, apesar da capa seguir algumas edições
em língua inglesa, tendo em conta a panóplia de outras imagens
oferecidas pelas capas coloridas feitas pelo artista na edição
serializada pela Tundra, teria havido opções mais subtis, oblíquas
e elegantes do que esta, a nosso ver. A letra mecanizada e fina para
a legendagem é uma boa escolha, pois seria incomportável
financeiramente reproduzir a letra à mão de Campbell e assistentes
numa tradução desta natureza. Porém, é desta forma que se
sublinha a importância da legendagem em estar em consonância
estética com as linhas do desenho. E apesar do formato do livro,
algumas partes tornam-se difíceis de ler. Conhecendo a dificuldade
de traduzir os idiomas ingleses de registos variados e, por vezes,
arqueológicos e obscuros do autor, a tradução segue opções
específicas de domesticação não apenas válidas como sólidas,
tornando o trabalho da tradutora uma vitória. Dito tudo isto, é
óptimo ter em mãos uma edição portuguesa deste monumento e obra
incontornável da banda desenhada, tornando inescusável a ausência
da consideração de obras verdadeiramente adultas, do ponto de vista
cultural e intelectual, deste campo no nosso país (em conjunto com,
por exemplo, Fun Home, O homem que passeia, A
viagem, Maus, ou a obra de Francisco Sousa Lobo).
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume. Com a excepção da última, todas as imagens colhidas na internet.
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