5 de abril de 2018

Do Inferno. Alan Moore & Eddie Campbell (Biblioteca de Alice)


A palavra “autópsia”, na sua acepção moderna e médica, formou-se no cadinho da emergência do pensamento científico, já no século XVII. Originalmente, a palavra significará tão-somente “ver com os próprios olhos”, “testemunhar” (e isto implicará sempre a ideia desta visão ser a de um terceiro sobre um evento que lhe é externo). Apenas na modernidade passa a significar “a dissecação de um corpo morto para determinar a causa da morte”. 

Como muitos outros críticos já o disseram, e acima de tudo, o próprio protagonista deste imenso romance – e esta será uma das poucas instâncias em que o emprego deste termo técnico literário não é enviesado – em banda desenhada, From Hell/Do Inferno é uma investigação dolorosa, cruel, e violenta ao corpo morto que daria origem ao século XX. Ao contrário do que se poderia imaginar a partir de uma mera descrição, ou pior, através da miserável adaptação cinematográfica de 2001 pelos irmãos Hughes, From Hell não é um “whodunnit”. Focado nos assassínios de prostitutas em Whitechapel, Londres, no estertor do século XIX, que ficariam conhecidos como o caso de “Jack, o Estripador”, o livro assinado por Alan Moore e Eddie Campbell não se interessará tanto pela identificação do assassino, já que parte desde o primeiro momento pela sua revelação: o Dr. William Gull. O que interessa aos autores é a pesquisa do como aconteceu e, até mais, o porquê íntimo dessas acções. (Mais)

De acordo com Annalisa Di Liddo, cujo volume académico havíamos discutido noutro lugar, é no próprio argumento para este projecto que Alan Moore havia descrito esta empreitada como “a dissecação [the post-mortem] de um evento histórico, empregando a ficção como escalpelo”, revelando dessa forma a dimensão potencial de ler esta ficção como tendo facetas ensaísticas. Aliás, existindo várias hipóteses e/ou teorias da identidade do assassino “Jack”, Moore e Campbell tornam a “opção Gull”, uma de muitas, apenas como operativa para a ficção apresentada, tematizando essa problemática no capítulo-apêndice, no final deste volume, “Dança dos apanhadores de gaivota”. A ela remetemos para compreender essa dimensão extra-textual.

Estabelecida a intriga inicial, a de que o Dr. Gull resolve matar as prostitutas para abafar um escândalo com a família real e depois a transmute num projecto místico de transcendência maçónica, Do Inferno acaba por ir largando todo um naipe de hipóteses interpretativas. Gull é, a um só tempo, testemunha desse dealbar de um novo momento da vida societal do mundo ocidental, mas igualmente seu parteiro e prematuro algoz. Em termos de género, Do Inferno é um veículo que atravessa múltiplos territórios. Ficarmos presos a qualquer um deles incorrerá no perigo de perdermos outras das suas dimensões. Do Inferno é uma ficção historiográfica, uma biografia ficcionada, um romance policial, uma história de terror, um ensaio sobre religião e magia, um mapa psicogeográfico de Londres, uma densa rede de referências intertextuais, um questionamento da racionalidade, uma pergunta premente feita ao nosso próprio mundo. De certa forma, poder-se-á dizer que Do Inferno ilustra o conhecido cinismo de Moore para com a nossa sociedade em geral, assim como dá corpo a um famoso dictum de Walter Benjamin, a de que “não há documento da civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”. De resto, essa é uma prática típica do escritor, Moore, em não apenas reinsuflar uma nova vida nos géneros em todos os seus elementos-chave como em reestruturá-los numa nova configuração possível.

Podemos então ler o livro de uma forma superficial, como aquela em torno da intriga do crime e da sua tentativa resolução policial, reduzindo toda a atenção ao novelo entre o par Gull-Abberline. Mas isso seria querer negar o poder do escalpelo, e à violenta e reveladora incisão a que dá acesso. O livro explora as condições de trabalho da classe mais miserável do centro de Londres, expõe as tensões entre as classes sociais estratificadas do Reino Unido, demonstra a emergência de novas preocupações ou soluções políticas, como o comunismo mas também o fascismo, avalia as conquistas previstas pela ciência, da relatividade na física à quarta dimensão, e suas implicações espácio-temporais, questionando, porém, a um só tempo, tanto o programa obscurantista das sociedades secretas como a cega crença no avanço civilizacional do positivismo... Isto para não mencionar algumas das noções que seriam cunhadas e lavradas pelo próprio Moore, pois parece-nos encontrar já neste livro alguns dos fios que se teceriam no conceito de Ideaspace, que seria analisada e praticada abertamente em League of Extraordinry Gentlemen. Como diz Gull, “Grandes obras têm muitos propósitos”.

Pensamos ser importante que, na leitura desta obra, se a considere à luz de dois aspectos. Em primeiro lugar, em relação à história da produção do escritor, Alan Moore. Em segundo lugar, no que diz respeito à própria circulação da banda desenhada.

É quase inevitável que esta obra seja lida no interior de uma fama e corpus que inclua outros projectos mais famosos, como Watchmen e The Killing Joke, assim como de outras séries anteriores e posteriores que estejam disponíveis (Miracleman, Swamp Thing, V de Vingança, Lost Girls, Providence, o romance recente Jersusalem). Isso poderá levar a uma criação de expectativas determinadas por essas outras obras, que poderá ou não ser gorada ao se enfrentar a obra menos narrativamente concentrada do autor. Isto é, mesmo que possamos ver noutras experiências tentativas de tematizar conteúdos não-narrativos (o caso de Promethea), é Do Inferno a sua obra mais complexa em termos filosóficos. Essa leitura da economia do autor pode levar igualmente a um choque com a escolha do artista.

À época, Eddie Campbell era já um autor com uma grande recepção crítica, mas sobretudo entre outros cultores da arte, e menos junto a um público alargado. Aliás, pela sua própria prática, e de um desenho muito expressivo, advindo das grandes tradições do desenho britânico, Campbell afasta-se sobremaneira dos autores com uma abordagem mais comercial com quem Moore havia dado outros passos com que se tornava, já na altura, um nome incontornável, com Swamp Thing (a partir de 1984) e Watchmen (1985-1986), por hipótese. Dos artistas com quem Moore colaborou mais lata e alongadamente na sua carreira, talvez seja Campbell aquele que mais preencheria o papel de um entendimento clássico de “autor”. Este livro apresenta-se com uma grelha inexorável de 3 x 3 vinhetas, sobre as quais os autores apresentam variações controladas, e as escolhas e aproximações do artista aos registos da ilustração (que costumavam ser reproduzidas sob várias técnicas de gravura), as opções de composição das vinhetas, o uso de referências e mesmo citações visuais, sob a forma de colagem ou outra, e a flutuação de técnicas de desenho (inclusive aguarelas e aguadas), tornam toda a plataforma uma bateria potente sobre as especificidades expressivas e narrativas da banda desenhada.

Quanto ao outro ponto, vistos a partir do momento actual da disponibilidade da banda desenhada quase somente em formatos livrescos, é algo complexo recuperar a ideia e esforço destas obras à medida que iam surgindo sob a forma serializada original. From Hell, como havíamos já discutido quando da leitura do seu Companion, foi iniciada capítulo a capítulo (uma mera dezena de páginas) na revista Taboo, de pouca dura, no final de 1989. Até chegarmos à edição num só monumental volume, esperar-se-iam mais de dez anos. Fica apenas como aviso, já que a consideração deste formato acarreta um “prestígio cultural” e uma “patina” emprestada da literatura – ou para sermos mais precisos, do estado actual de graça do romance psicológico burguês modernista – que apaga as origens num meio bastante distinto e acompanhado de outros textos (recordemos como Maus, Persepolis, Berlin, O homem que passeia e até As jóias de Castafiore) nasceram sempre de pequenas porções em circulações não-livrescas, “adivinhassem” ou não essa segunda vida. Aconselharíamos, por exemplo, a leitura de cada capítulo individualmente, “interrompendo” o ritmo verificando as notas finais, e regressando ao próximo capítulo, de maneira a compreender, de forma mais íntima, a arquitectura emocional de cada um deles e não simplesmente subsumi-los a uma continuidade romanesca. Mesmo assim, voltamos a um dos pontos iniciais, de que esta é uma das poucas obras de banda desenhada em que esse termo pode ser aplicado com toda a sua propriedade específica.


Gostaríamos de terminar com algumas notas soltas em relação à edição portuguesa da Devir. Em termos de formato, é algo maior do que as edições que conhecemos mas tem boa “mão”, como se costuma dizer. As páginas demasiado brancas tornam-se algo agressivas, e quiçá uma opção qualquer de off-white teria ajudado a sobressair o trabalho rendilhado e delicado de Campbell. A reprodução/impressão de algumas imagens, sobretudo aquelas das aguarelas e aguadas, mais difusas, são algo deficitárias, sobretudo na capa, o que empobrece a experiência global da sua leitura. Aliás, apesar da capa seguir algumas edições em língua inglesa, tendo em conta a panóplia de outras imagens oferecidas pelas capas coloridas feitas pelo artista na edição serializada pela Tundra, teria havido opções mais subtis, oblíquas e elegantes do que esta, a nosso ver. A letra mecanizada e fina para a legendagem é uma boa escolha, pois seria incomportável financeiramente reproduzir a letra à mão de Campbell e assistentes numa tradução desta natureza. Porém, é desta forma que se sublinha a importância da legendagem em estar em consonância estética com as linhas do desenho. E apesar do formato do livro, algumas partes tornam-se difíceis de ler. Conhecendo a dificuldade de traduzir os idiomas ingleses de registos variados e, por vezes, arqueológicos e obscuros do autor, a tradução segue opções específicas de domesticação não apenas válidas como sólidas, tornando o trabalho da tradutora uma vitória. Dito tudo isto, é óptimo ter em mãos uma edição portuguesa deste monumento e obra incontornável da banda desenhada, tornando inescusável a ausência da consideração de obras verdadeiramente adultas, do ponto de vista cultural e intelectual, deste campo no nosso país (em conjunto com, por exemplo, Fun Home, O homem que passeia, A viagem, Maus, ou a obra de Francisco Sousa Lobo).
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. Com a excepção da última, todas as imagens colhidas na internet. 

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