6 de abril de 2018

Santa Camarão. Xavier Almeida (Chili Com Carne)


A possibilidade de escrever uma “autobiografia” de uma outra pessoa, em que um artista “empresta” a sua linguagem para dar voz e corpo à biografia de outrem mas contada na primeira pessoa, não é de todo inédita, se nos recordarmos do projecto de Emmanuel Guibertcom Alan Cope. Os modos de produção são diferentes, porém, já que Guibert colhia a biografia de Cope a partir de conversas gravadas, directas e ao vivo, ao passo que Xavier Almeida estará a trabalhar à distância. O pugilista José Santa “Camarão”, nascido em Ovar e famosíssimo durante as décadas de 1920 e 1930, morreu em 1965. Almeida, instado por um artigo de jornal e criando laços com a sua terra (é também vareiro), criou este pequeno livro de banda desenhada a partir da pequena biografia escrita pelo próprio boxeur. (Mais) 
O registo de Xavier Almeida segue muitas das linhas de uma abordagem brut ou naïf, o que, não preenchendo os mesmos campos, aponta para uma prática despojada de certas regras de correcção académica, uma maior atenção para com a expressão do que para com uma coerência interna da figuração ou perspectiva, etc. Na verdade, uma primeira leitura remeteu-nos a uma obra outsider como aquela que se discutiu a propósito do autor turco Masist Gül. Haveria aqui uma hipotética aliança entre o registo da autobiografia escrita pelo próprio José Santa Camarão, não erudita e franca, e o desenho de Xavier Almeida, que beberia de uma imediaticidade igualmente popular. Repare-se como a capa poderá fazer recordar registos visuais de uma mão-cheia de práticas das artes folclóricas, ao mesmo tempo que remete a referências mais eruditas, como as procissões de figuras carnavalescas de James Ensor. Se o boxeur se sentia deslocado, por razões físicas, das pessoas que o rodeavam na sua vida em Ovar e Lisboa, a capa mostra as outras personagens igualmente transformadas em fantasias de barro ou de títeres.

Gigante, mesmo entre outras nacionalidades com outras médias de alturas masculinas, Santa Camarão media mais de dois metros. Esse é um tema repetido desde o seu nascimento, com os comentários em torno do seu corpo, tamanho, força e tenacidade. Curiosamente, essa informação surge pela forma do texto, mas, e até devido à assinatura gráfica de Almeida, menos pela exploração visual (com algumas excepções marcantes, como a da sombra caminhando por entre as ruas de Almada). Se bem que se poderia argumentar que isso se deveria tão-somente às limitações do desenho, numa óptica redutora e somente académica, poder-se-á ver aí um tratamento respeitoso para com a humildade do próprio desportista, notando-se como o livro abre com uma epígrafe sua, onde confessa que esta faceta da sua vida mais famosa “não vale a pena contá-la”.

A estrutura do livro não é linear e cronológica, tirando partido de saltos na ordem temporal de forma a sublinhar os elos temáticos e as emoções significativas que o fundo social de Santa Camarão jogava na sua ascensão desportiva e mediática. Começamos num combate, que funciona como os limites da memória do protagonista: recuamos à primeira infância, depois seguimo-lo para Lisboa, onde com o pai inicia a sua vida profissional como estivador e fragateiro, o regresso a Ovar já na primeira idade adulta e finalmente a descoberta do mundo do entretenimento, do circo e da luta, onde encontraria a sua carreira. Esta desdobrar-se-ia em combates de boxe muito importantes no desporto, já que chegou a disputar o título europeu de pesos-pesados e combateu nos Estados Unidos com outros campeões. Além disso, teve um papel pontual, mas importante, no cinema. Mas tudo isso está de fora desta biografia em banda desenhada, por ser mais famosa e acessível noutros canais (uma biografia, alguns documentos fílmicos e até o esforço de Ovar com várias acções dedicada a este seu “filho dilecto”) ou, voltando às palavras do próprio, porque “não vale a pena contá-la”. A aventura das Américas fica de fora... Insiste-se noutro foco.

Com efeito, Xavier Almeida opta por uma abordagem quase minimalista e silenciosa da narrativa. Não existem grandes blocos textuais a contextualizar, nem grandes explicações. Apenas frases curtas, retiradas da narração do pugilista. O leitor terá de, a partir das poucas cenas apresentadas, quase aos supetões, e os diálogos lacónicos (escritos por “Pato Bravo”, isto é, B Fachada, isto é, Bernardo Fachada), ir construindo a fantasmática fiada contínua da vida do vareiro. Mas essas cenas, essa vida, deverão ser lidas num esforço de as compreender no quadro do Portugal das décadas de 1910 e seguintes, e o que significaria a vida, e a carestia, para estas personagens. Essa dinâmica é fulcral para a leitura do livro. Se bem que se foque na vida de uma personagem “vitoriosa”, não deixa de poder ser visto como um retrato de um Portugal muitas vezes arreigado da dimensão popular da nossa memória cultural, mais dada à celebração patética de meia-dúzia de “momentos bons”. O posfácio do autor aponta outras dimensões que lhe despertaram a atenção na investigação para este projecto, mas que, se ficaram de fora em termos de presença e representação, lançam sobre a narrativa restante uma sombra que se pressente.

A laconicidade das palavras não significa que não se explorem desvios no que diz respeito à linearidade da imagem. São muitos os momentos em que o olhar do narrador, que poderá tanto ser visto como extradiegético como associado à primeira pessoa de José, voga pelas paisagens marítimas ou fluviais, as nuvens pairando no céu, a paisagem célere à janela do comboio, expandindo assim o horizonte social ao qual o protagonista estaria preso. E à medida que o amadurecimento e as experiências de Santa Camarão se tornam mais complexas, também a matéria se complica, havendo o que parecem ser “traduções” dos seus estados de alma para a superfície da página, por vezes quase atingindo composições dinamistas e até abstractas.

Uma vida não é feita apenas pelos seus eventos e marcos superficiais. Esta (auto)biografia demonstra-lo.

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