8 de abril de 2018

Noite estrelada. Jimmy Liao (Kalandraka)


Como ocorrem nos casos de alguns dos projectos de Maurice Sendak, Shaun Tan, Brian Selznick e António Jorge Gonçalves, por exemplo, também alguns dos livros de Jimmy Liao vivem numa fronteira algo esquiva entre a banda desenhada, o livro ilustrado, e a literatura tout court. Noite estrelada tem apenas umas poucas páginas com texto isolado, mas depois desdobra-se em spreads, ilustrações por página, com texto ou sem ele, e pelo menos uma sequência dividida em vinhetas. Tipologias e divisões que, para além disso, têm explorações formais no interior das próprias imagens, que apresentam planos distintos, texturas, espaços com objectos repetidos (sejam padrões no chão, bibliotecas, jardins, florestas ou os telhados de prédios cheios de néons). (Mais) 


Tema recorrente de Liao, também aqui surge a ideia do crescimento de uma criança e os preços que há a pagar por esse desenvolvimento: o afastamento com um lugar onde a experiência da infância se associava à da convivência com outras pessoas, elas mesmas constituídas por experiências mais genuínas no que diz respeito aos ritmos do mundo e dos seus elementos naturais; o abandono de horizontes mais largos, quer do ponto de vista da natureza quer do da imaginação; a herança de uma variedade de possibilidades, que é coarctada ou encontra limitações na vida urbana; e as perdas, que acabam por ser tornar em pontos de referência e de força para novas etapas da vida.

A protagonista é uma menina, sem nome, que vai rememorando um passado, utilizando-o como uma espécie de marco de comparação com as suas experiências passadas. Num primeiro arco do livro, não há propriamente uma intriga linear, mas antes impressões que vogam à medida livre dessas mesmas memórias e associações. É apenas com o surgimento de um novo menino, tão misterioso, lacónico e imaginativo como a protagonista, que se dá início a um novelo da relação, não apenas entre os dois, mas a imaginação de cada um deles e que os incita à fuga, a qual constrói o âmago da “aventura” do livro.
Dito isto, Jimmy Liao não é um autor que construa os seus livros para que tenham uma estrutura narrativa-imagética subsumida ao putativo programa narrativo. Isto é, em que a composição, figuração ou imagens sejam feitas dos costumeiros “momentos mortos” e “momentos empolgantes” numa distribuição clássica. Toda e qualquer página reserva em si mesmo diferentes intensidades, mas todas aptas a que o leitor ou leitora fique atento ao seu desvendamento. Escondem sempre pistas simbólicas, ou compositivas, ou de elos temáticos, que despedem formas múltiplas para compreender “o que se passa”. Não apenas em relação à tal “acção principal”, mas igualmente no que diz respeito à vida interior dos personagens. Existe uma adaptação cinematográfica, de 2011, mas a transmediação leva a que, no filme, haja uma assunção da “magia” das imagens surreais precisamente a essa natureza, e não, como acontece no livro, a que fique num domínio tenso da responsabilidade exclusiva do leitor. Há como que uma negociação que espelhará a liberdade da protagonista que não é resolvida de modo final, que no filme ganha um corpo separado e, por isso, menos eficaz.

Dito isto, a “fuga” dos dois protagonistas é composta por uma série de oito spreads “silenciosos”, que assinalam a passagem entre os dois mundos que se opõem, e depois mais quatro para o coração da história, a um só tempo móbil do movimento dos personagens e, eventualmente, o segredo que fica por revelar na totalidade e que sustenta a resolução da relação deles.

Todos os espaços que nos são dados a ver são pontuados por janelas, portas, ou paisagens abertas que criam sempre laços com outros espaços ainda. Passagens ou expansões. Há também uma profusão na presença de quadros, vegetação, ou texturas multicoloridas que criam ainda outras sensações de abertura e de um promissor fora-de-campo que exerce a sua influência no que é visível. Liao é um mestre na criação de tessituras para-musicais, de temas e variações, ritornellos e temas, que tornam a leitura uma constante malha de entraçamentos visuais (no sentido preciso da tressage que Groensteen havia estudado no seu Système de la bande dessinée).

Tal como ocorria em Segredos na floresta e, sobretudo, Desencontros, também as paisagens de Noite Estrelada não criam um panorama especificamente cultural identificável. Não há traços particularmente asiáticos na obra, remetendo antes a uma espécie de fundo “neutro-europeu”, que se poderia tornar problemático por essa mesma razão. Isto é, qualificá-lo de “neutro” seria ser-se cego às especificidades da referencialidade europeia a que se entrega (o tipo de paisagem natural, as referências à pintura da Van Gogh, a arquitectura e sociologia urbana que desenha, o espaço social que apresenta, etc.), e qualificá-lo somente de “europeu” impediria de mencionar ou observar as fracturas que permitem abrir a outras interpretações (as relações escolares, a vida com o avô-artista, certas distribuições de acção). Há uma espécie de universalidade bem-pensante, talvez, que é explorada, um pouco como algumas das produções da Ghibli, com as quais os livros de Liao têm óbvias afinidades.

Na ambiguidade que é deixada pelo livro, será o dinamismo e a força do movimento e das intensidades emotivas, e as potencialidades das associações de ideias, imagens e ritmos que fundam uma possível noção de poesia, que se esconderá, sem dúvida, o pomo da lição de Noite Estrelada.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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