Tema
recorrente de Liao, também aqui surge a ideia do crescimento de uma
criança e os preços que há a pagar por esse desenvolvimento: o
afastamento com um lugar onde a experiência da infância se
associava à da convivência com outras pessoas, elas mesmas
constituídas por experiências mais genuínas no que diz respeito
aos ritmos do mundo e dos seus elementos naturais; o abandono de
horizontes mais largos, quer do ponto de vista da natureza quer do da
imaginação; a herança de uma variedade de possibilidades, que é
coarctada ou encontra limitações na vida urbana; e as perdas, que
acabam por ser tornar em pontos de referência e de força para novas
etapas da vida.
A
protagonista é uma menina, sem nome, que vai rememorando um passado,
utilizando-o como uma espécie de marco de comparação com as suas
experiências passadas. Num primeiro arco do livro, não há
propriamente uma intriga linear, mas antes impressões que vogam à
medida livre dessas mesmas memórias e associações. É apenas com o
surgimento de um novo menino, tão misterioso, lacónico e
imaginativo como a protagonista, que se dá início a um novelo da
relação, não apenas entre os dois, mas a imaginação de cada um
deles e que os incita à fuga, a qual constrói o âmago da
“aventura” do livro.
Dito isto,
Jimmy Liao não é um autor que construa os seus livros para que
tenham uma estrutura narrativa-imagética subsumida ao putativo
programa narrativo. Isto é, em que a composição, figuração ou
imagens sejam feitas dos costumeiros “momentos mortos” e
“momentos empolgantes” numa distribuição clássica. Toda e
qualquer página reserva em si mesmo diferentes intensidades, mas
todas aptas a que o leitor ou leitora fique atento ao seu
desvendamento. Escondem sempre pistas simbólicas, ou compositivas,
ou de elos temáticos, que despedem formas múltiplas para
compreender “o que se passa”. Não apenas em relação à tal
“acção principal”, mas igualmente no que diz respeito à vida
interior dos personagens. Existe uma adaptação cinematográfica, de
2011, mas a transmediação leva a que, no filme, haja uma assunção
da “magia” das imagens surreais precisamente a essa natureza, e
não, como acontece no livro, a que fique num domínio tenso da
responsabilidade exclusiva do leitor. Há como que uma negociação
que espelhará a liberdade da protagonista que não é resolvida de
modo final, que no filme ganha um corpo separado e, por isso, menos
eficaz.
Dito isto,
a “fuga” dos dois protagonistas é composta por uma série de
oito spreads “silenciosos”, que assinalam a passagem entre
os dois mundos que se opõem, e depois mais quatro para o coração
da história, a um só tempo móbil do movimento dos personagens e,
eventualmente, o segredo que fica por revelar na totalidade e que
sustenta a resolução da relação deles.
Todos os
espaços que nos são dados a ver são pontuados por janelas, portas,
ou paisagens abertas que criam sempre laços com outros espaços
ainda. Passagens ou expansões. Há também uma profusão na presença
de quadros, vegetação, ou texturas multicoloridas que criam ainda
outras sensações de abertura e de um promissor fora-de-campo que
exerce a sua influência no que é visível. Liao é um mestre na
criação de tessituras para-musicais, de temas e variações,
ritornellos e temas, que tornam a leitura uma constante malha
de entraçamentos visuais (no sentido preciso da tressage que
Groensteen havia estudado no seu Système de la bande dessinée).
Tal como
ocorria em Segredos na floresta e, sobretudo, Desencontros,
também as paisagens de Noite Estrelada não criam um panorama
especificamente cultural identificável. Não há traços
particularmente asiáticos na obra, remetendo antes a uma espécie de
fundo “neutro-europeu”, que se poderia tornar problemático por
essa mesma razão. Isto é, qualificá-lo de “neutro” seria
ser-se cego às especificidades da referencialidade europeia a que se
entrega (o tipo de paisagem natural, as referências à pintura da
Van Gogh, a arquitectura e sociologia urbana que desenha, o espaço
social que apresenta, etc.), e qualificá-lo somente de “europeu”
impediria de mencionar ou observar as fracturas que permitem abrir a
outras interpretações (as relações escolares, a vida com o
avô-artista, certas distribuições de acção). Há uma espécie de
universalidade bem-pensante, talvez, que é explorada, um pouco como
algumas das produções da Ghibli, com as quais os livros de Liao têm
óbvias afinidades.
Na
ambiguidade que é deixada pelo livro, será o dinamismo e a força
do movimento e das intensidades emotivas, e as potencialidades das
associações de ideias, imagens e ritmos que fundam uma possível
noção de poesia, que se esconderá, sem dúvida, o pomo da lição
de Noite Estrelada.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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