Miguel Santos apresenta aqui aquilo que
se chama na indústria de entretenimento um projecto “high-concept”,
isto é, algo que se concentra de forma potente numa premissa, em si
mesmo pejada de implicações narrativas. Neste caso, trata-se de uma
história alternativa, passada numa província colonial portuguesa em
que a guerra colonial terá encontrado uma continuidade terrível por
estar associada a um confronto nuclear no hemisfério norte. Como
está indicado no próprio livro, numa espécie de sub-título, neste
universo a Guerra Fria “aqueceu”. (Mais)
Essa descrição, por si só, é
promissora, porque permitiria explorar toda uma série de dimensões
e desenvolvimentos. O autor, porém, resolve apresentar antes uma
economia inteligente da narrativa de uma cinquentena de páginas. À
parte uma breve introdução de seis pranchas, que age como uma
camada explicativa, exposição temática, e ponto de partida,
seguiremos tão-somente o protagonista sem nome por aquelas terras,
como indicado por uma das personagens da introdução, ermas. O
título pretende que todos os significados dessa palavra tenham aqui
poder: a ideia de isolamento, de um suposto centro; a de despovoado,
reduzindo as pessoas com quem nos cruzamos a figuras ou cifras de
tribos selvagens; e até mesmo de despojado de vida vegetal,
sublinhando a ideia de apocalipse a toda a extensão. Não quer isto
dizer que o autor não tenha, como o faz no seu site, aliás, várias
ramificações diegéticas a partir deste universo.
A vida, se continua, regressa ou
torna-se particularmente transformada num violento jogo de
sobrevivência, tão típica destas narrativas (Mad Max está
lá, e todos os seus derivados). A captura e venda de pessoas
enquanto escravos, a economia reduzida aos mais indignos dos papéis
e à circulação de produtos-chave (minas, café, algodão). O autor
evita a utilização aberta de referências reais à história e,
assim, a uma associação directa com a história real do
colonialismo português, a subsequente guerra colonial e as alianças
e rivalidades matizadas entre todas as populações e classes sociais
envolvidas. Nem todas, claro, uma vez que as palavras de origem
não-portuguesa parecem ser todas oriundas do bantu, emprega-se de
forma liberal o termo pejorativo (e política e etnicamente carregado
de “turra”), associando-se ainda mais à história colonial
portuguesa, assim como as fardas, equipamento, etc., remete a esse
episódio da nossa história.
Por um lado, poder-se-ia ver aí uma
estratégia de de-historicização. Isso ainda se torna mais
dramático se regressarmos ao sub-título, que daria a entender que a
“Guerra Fria” o foi assim mesmo, como se os conflitos na Coreia,
em Angola, no Vietname, no Líbano, etc. não tivessem sido “quentes”
o suficiente para as suas populações. Essa estratégia, aliás,
estende-se inclusive pela criação de grupúsculos – todos aqueles
que entram em conflito entre si – que atravessam as fronteiras da
cor de pele. Portanto, Miguel Santos estará menos interessado em
tematizar o papel responsável na história de Portugal nestes
conflitos do que na construção de uma ficção livre baseando-se
nesta herança, ainda tão pouco explorada pela cultura da banda
desenhada (se bem que existam alguns exemplos, claro, como o recente
Vampiros). Mesmo assim, permitirá, seguramente, a que se
pense o papel desse conflito real num certo imaginário “popular”.
Por outro, é precisamente por essa
opção de ficcionalização quase absoluta que interessará, acima
de tudo, o que a premissa permite explorar. Santos cria então
imagens icónicas dessas personagens-tipo através de pequenos
apontamentos do seu desenvolvimento: penteados específicos, o uso de
caveiras a decorar tanques, a ideia de tribos de crianças soldados,
e um “tesouro” que se torna a missão do soldado sem-nome, depois
apelidado de “Judas”, aumentando a posição quase-alegórica da
narrativa. Aliás, nessa linha, Ermal vem alinhar-se a toda
uma série de narrativas deste tipo em que o “strong silent type”
faz do grande herói masculino da acção que se segue, mesmo quando
nos apercebemos que o seu papel é mais instrumental do que
totalmente integrado (isto é, que ganha ele com a acção
cumprida?). Mesmo aqueles pormenores algo estrambólicos – como
quando o protagonista é crucificado mas mantém os seus óculos
escuros postos – são apenas códigos que validam essa natureza do
género.
Toda a acção está concentrada
somente nessa tal província, então, e na missão central, a qual,
depois de desvendada, se torna algo mais fraca do que a sua putativa
promessa (daí a razão de ser menos efectivo que um “MacGuffin”).
Todavia, é novamente essa economia que se mostra a eficiência de
Ermal. Apresentado num formato oblongo, sublinha-se, como em
outros projectos similares, a ideia de “viagem”, ou pelo menos de
“percurso”. Alinhando-se, dessa forma, a estruturas clássicas
como as da “viagem” de O coração das trevas, de Conrad.
Menos pela sua dimensão colonial do que pelo confronto do
protagonista em descobrir um mundo para além de linhas morais claras
e onde todos aqueles que chafurdam num conflito não saírem dele sem
mácula.
Do catálogo algo errático da
Escorpião Azul, no que diz respeito quanto ao equilíbrio interno
estético de cada projecto, é curioso que aqueles que mais
felicidade parecem atingir são os que, em termos imagéticos,
trabalham no interior de uma elegância simples e desempoeirada e, já
no que concerne a narrativa, preferem ser mais concentrados, deixando
sobretudo ao ambiente e à força das personagens e conceitos a
responsabilidade de chegarem aos seus portos. O registo de Miguel
Santos não é totalmente coeso em termos figurativos, havendo
imagens que serão baseadas claramente em referências fotográficas
– Tina, por exemplo, parece ser baseada numa das muitas líderes
femininas do movimento Black Panther, algumas das imagens da
introdução poderão ser correspondências a referências
fotográficas, etc. – ao passo que outras são variações mais
vacilantes do seu traço. Mas as opções de composição são
perfeitamente adequadas ao storytelling pretendido, criando
suficientes mecanismos de empolgamento, suspense e acção que tornam
toda a estrutura num corpo coerente nessa dimensão (veja-se a
prancha 11, perfeitamente conseguida neste registo). O autor também
prefere fundos das vinhetas regularmente vazios, com uma ou duas
cores basilares (o preto-e-branco e a segunda cor da versão online
parecia-nos mais contudente), de novo reforçando a ideia da
economia, e eficiência, a que temos aventado repetidamente.
Nota final: agradecimentos ao editor,
pela oferta do volume.
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