26 de março de 2018

Master Song. Francisco Sousa Lobo (Kuš)


Este é o último livrinho do autor, e apesar de textualmente estar muito distante do que fez até à data, não deixa de ser surpreendente a maneira como se encaixa perfeitamente no seu programa a longo prazo. Ainda que não haja qualquer elemento que permita uma leitura auto-ficcional, e muito menos autobiográfica, não deixa de ser possível criar uma redoma que, unindo toda a obra, nos faça pensar na continuação e uma pesquisa muito pessoal de uma expressão da própria intimidade. Contado na primeira pessoa, e em verso, podendo falar-se de dísticos rimados, a parte textual transforma-se, como o título indica, numa canção. E como uma canção, ouvi-la várias vezes vai despertando novas ideias. (Mais)

O livro apresenta, de uma forma absolutamente estática, 24 pranchas de 4 vinhetas cada, numa grelha regular. Todas as figuras e objectos são desenhados a preto, mas existem duas cores adicionais, vermelho e azul. Seria tentador fazer uma interpretação idêntica àquela que fizemos em relação ao livro de Mattia Denisse, mas aqui as cores cobrem outras funções, se bem que não haja propriamente uma linha única de simbolismo. O vestido e sapatos vermelhos da protagonista, “M” ou “Emily”, compõem-na e identificam-na enquanto personagem, e logo abrem várias possibilidades de leituras intertextuais, sobretudo com o cinema: desde os The Red Shoes dos The Archers a Don't Look Now de Nicolas Roeg, não faltarão referências que misturem as questões da inocência com a sexualidade selvagem, um hipotético poder, mesmo que “silencioso”, das mulheres, e, claro está, uma abertura a significados religiosos.


Essa dimensão temática é explorada na diegese, já que Emily trabalha como ama-seca, sobretudo com crianças de famílias judaicas, mas não esconde o desprezo que tem para com a fé deles, se bem que mistura, talvez, questões pessoais – ela é cristã - e políticas – fala da questão palestiniana. Há um momento em que Emily acompanha as crianças à sinagoga, e essas são as únicas páginas que aparecem sem cor, reduzindo tudo a um preto-e-branco maniqueísta, traduzindo, talvez, a própria visão de Emily. É ela quem vê o mundo desta maneira redutora, é ela quem o pinta.

Obcecada com o romance As 50 Sombras de Grey, a questão do desejo é tematizada e trazida à tona, na forma como Emily se arranja, entrega a diálogos tórridos online, discute repetidamente assuntos BDSM, sai à noite, e procura parceiros sexuais relativamente descartáveis. Nesta dimensão, haverá a associação intertextual àquele famoso romance, que problematiza o desejo feminino. Por um lado, é um livro que tem tido uma estrondosa recepção junto a um público esmagadoramente feminino, e que encontra possibilidades das suas fantasias reflectidas na história que apresenta. Por outro, de um ponto de vista estritamente feminista, não deixa de ser curioso que seja uma relação absolutamente desequilibrada de poder, e até mesmo abusiva, que se veja tornada no centro desse mesmo desejo. Emily, no fundo, parece estar dividida entre a possibilidade de agir sobre os seus próprios desejos – ela mostra agência nas suas acções – e o fluxo dos acontecimentos em torno dela. A cena em que passa a noite com um homem no apartamento deste, por exemplo, é apresentado a azul somente. Há, então, pistas para que entendamos as cores de uma forma algo simbólica e, assim, compreendamos as tensões presentes da pessoa de Emily.

As frases mais repetidas são “Deus é a minha testemunha” e a citação do seu “Master” - Emily defini-se como “sub”, isto é, “submissa”, nos termos específicos da cultura BDSM. A convergência dos temas está sempre presente, tornando este pequeno livrinho, aparentemente tão concentrado numa história curta, numa bateria densa de linhas cruzadas e que se reforçam mutuamente.

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