Este é o último livrinho do autor, e
apesar de textualmente estar muito distante do que fez até à data,
não deixa de ser surpreendente a maneira como se encaixa
perfeitamente no seu programa a longo prazo. Ainda que não haja
qualquer elemento que permita uma leitura auto-ficcional, e muito
menos autobiográfica, não deixa de ser possível criar uma redoma
que, unindo toda a obra, nos faça pensar na continuação e uma
pesquisa muito pessoal de uma expressão da própria intimidade.
Contado na primeira pessoa, e em verso, podendo falar-se de dísticos
rimados, a parte textual transforma-se, como o título indica, numa
canção. E como uma canção, ouvi-la várias vezes vai despertando
novas ideias. (Mais)
O livro apresenta, de uma forma
absolutamente estática, 24 pranchas de 4 vinhetas cada, numa grelha
regular. Todas as figuras e objectos são desenhados a preto, mas
existem duas cores adicionais, vermelho e azul. Seria tentador fazer
uma interpretação idêntica àquela que fizemos em relação ao
livro de Mattia Denisse, mas aqui as cores cobrem outras funções,
se bem que não haja propriamente uma linha única de simbolismo. O
vestido e sapatos vermelhos da protagonista, “M” ou “Emily”,
compõem-na e identificam-na enquanto personagem, e logo abrem várias
possibilidades de leituras intertextuais, sobretudo com o cinema:
desde os The Red Shoes dos The Archers a Don't Look Now de
Nicolas Roeg, não faltarão referências que misturem as questões
da inocência com a sexualidade selvagem, um hipotético poder, mesmo
que “silencioso”, das mulheres, e, claro está, uma abertura a
significados religiosos.
Essa dimensão temática é explorada
na diegese, já que Emily trabalha como ama-seca, sobretudo com
crianças de famílias judaicas, mas não esconde o desprezo que tem
para com a fé deles, se bem que mistura, talvez, questões pessoais
– ela é cristã - e políticas – fala da questão palestiniana.
Há um momento em que Emily acompanha as crianças à sinagoga, e
essas são as únicas páginas que aparecem sem cor, reduzindo tudo a
um preto-e-branco maniqueísta, traduzindo, talvez, a própria visão
de Emily. É ela quem vê o mundo desta maneira redutora, é ela quem
o pinta.
Obcecada com o romance As 50 Sombras
de Grey, a questão do desejo é tematizada e trazida à tona, na
forma como Emily se arranja, entrega a diálogos tórridos online,
discute repetidamente assuntos BDSM, sai à noite, e procura
parceiros sexuais relativamente descartáveis. Nesta dimensão,
haverá a associação intertextual àquele famoso romance, que
problematiza o desejo feminino. Por um lado, é um livro que tem tido
uma estrondosa recepção junto a um público esmagadoramente
feminino, e que encontra possibilidades das suas fantasias
reflectidas na história que apresenta. Por outro, de um ponto de
vista estritamente feminista, não deixa de ser curioso que seja uma
relação absolutamente desequilibrada de poder, e até mesmo
abusiva, que se veja tornada no centro desse mesmo desejo. Emily, no
fundo, parece estar dividida entre a possibilidade de agir sobre os
seus próprios desejos – ela mostra agência nas suas acções –
e o fluxo dos acontecimentos em torno dela. A cena em que passa a
noite com um homem no apartamento deste, por exemplo, é apresentado
a azul somente. Há, então, pistas para que entendamos as cores de
uma forma algo simbólica e, assim, compreendamos as tensões
presentes da pessoa de Emily.
As frases mais repetidas são “Deus é
a minha testemunha” e a citação do seu “Master” - Emily
defini-se como “sub”, isto é, “submissa”, nos termos
específicos da cultura BDSM. A convergência dos temas está sempre
presente, tornando este pequeno livrinho, aparentemente tão
concentrado numa história curta, numa bateria densa de linhas
cruzadas e que se reforçam mutuamente.
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