23 de maio de 2018

Sem dó. Luli Penna (Todavia)


Há uma tendência, quase automática e, por isso, irritante e vexante, de quando certos círculos discutem qualquer acto criativo da parte de uma mulher, descrevê-lo como contendo “características femininas”, mas sem jamais as revelar, analisar, explicar e muito menos compreender o seu papel na articulação do texto total ou, menos ainda, contextualizá-las no sistema em que emerge. Esse termo é empregue de maneira fantasmática e mágica, como se o seu emprego fosse suficientemente explicativo de algo que, no fundo se recusa a tornar possível. Partindo de uma perspectiva homocêntrica, o que esse passe de magia cumpre é, no fundo, em primeiro lugar a criação de uma posição de “tolerância” que permite ao texto “feminino” a possibilidade de existência e circulação e, sem segundo e mais permanente lugar, a assunção do próprio sistema hegemónico que se confere o direito dessa mesma decisão. (Mais) 

Afirmamo-lo porque, no fundo, incorreremos talvez no mesmo problema ao querer iniciar a leitura de Sem dó através de uma contextualização de um discurso feminista e, quem sabe, impedindo uma leitura mais abrangente de outras estruturas interpretativas. Todavia, é-nos difícil ler a sua intriga sem que vejamos a maneira como se estrutura enquanto discurso anti-hegemónico, mesmo que de uma forma subtil e calma.

Aparentemente, a história apresentada em Sem dó centra-se na intriga de um caso amoroso entre uma empregada doméstica de São Paulo na década de 1920, Dolores, ou como é chamada pela sua família, Lola, numa casa da alta burguesia, e um jovem homem que acabou de chegar à cidade e a parece conquistar de modo avassalador. Todo o papel social e profissional de Lola entra em crise com a paixão por este homem. Falta ao trabalho, mente à família, abraça comportamentos transgressivos para a época. Porém, os segredos da vida do homem serão um entrave à felicidade imaginada por Lola, não sem antes se expressar como obstáculo contra a vontade da sua família, dos seus empregadores, que não são mais do que reflexos do papel que a sociedade desejaria que ela cumprisse, enquanto mulher da sua específica estação social. Da perspectiva de Lola, é a felicidade que lhe está a ser negada, mesmo que o leitor tenha acesso a muita mais informação que Lola e se possa aperceber de que o tal homem é mais ruim do que poderia parecer (o jogo de engano, o modo como evita mostrar o rosto na fotografia, o anúncio policial, etc.)...

Esta relação entre o conhecimento do leitor e das personagens é decisivo no juízo moral que Sem dó constrói, e é aí que residirá uma parte da tensão que o livro propõe, nada clara. Pois se, por um lado, se poderia dizer que, munidos de informação, poderíamos impor um juízo contrário ao de Lola – a de que este homem não é uma boa escolha para ela, que ela deveria antes respeitar o contrato social que é expectável, etc. -, por outro, a narrativa é tecida de maneira a que tenhamos igualmente um acesso privilegiado à interpretação tintada pelas emoções dos mesmos eventos por Lola. Compreender que as escolhas de Lola não são tão abertas quanto as dos homens que a rodeiam é uma constatação de facto do seu tempo histórico. Imaginar que o homem apenas pretende um prazer superficial e momentâneo já será da responsabilidade do leitor ou leitora. Criar laços de empatia com Lola e “ficar do seu lado” já dependerá de ler o livro na sua íntegra, quer dizer, não apenas a sua “história” mas toda a sua matéria visual e estrutural.

Sem dó é, além dessa novela, uma espécie de retrato ou homenagem nostálgica da São Paulo dos anos 1920, não apenas por ser esse o “cenário” da acção, como da pesquisa visual que a autora proporciona ao longo das páginas e à qual retornaremos avante. Mas esse retrato serve para tematizar as desigualdadade de género vigente então (que podem ou não ser distintas daquelas verificadas nos dias de hoje, servindo então de estímulo a essa mesma interrogação do nosso tempo e organização social) e tornar visíveis alguns dos temas propostos pelo feminismo da terceira vaga, envolvendo questões de inclusividade e igualdade no mercado de trabalho, a assunção da complexidade e diversidade nos papéis ao longo do eixo do sexo, e a possibilidade de criar instrumentos de combate e crítica cultural, que permitam re-articulações da distribuição tradicional, que está em vigor na narrativa do livro.

A noção da écriture feminine nasceu no seio da literatura, e elencava estratégias textuais que desafiavam a estruturação convencional que sustentaria a ideologia vigente, patriarcal. Um dos exemplos mais citados dessas estratégias seria o uso incomum dos pronomes, por exemplo, mas também as experimentações em torno da caracterização das personagens, as hierarquias sociais mais usuais, etc., desmontadas pelos exemplos arrolados das autoras, como o caso expoente no Brasil de Clarice Lispector. No campo da banda desenhada, temos de procurar outro tipo de estratégias.


Não há nada de particularmente anti-narrativo em Sem dó. Isto é, não há uma crise em termos do eixo causal, por exemplo, ou a organização espácio-temporal, uma contradição de vozes e posicionamentos, etc. O que há, substancialmente, é uma desaceleração e redução da importância do eixo de acções, abrindo antes espaço a explorar uma perceção diferente dessas mesmas acções, assim como dos espaços, ambientes, tempo e do tecido, se assim se se pode dizer, extrema e ricamente texturado das sensações que lhes estão associadas. A maneira como a autora dispõe a matéria visual é muito importante. São várias as sequências ocupadas tão-somente pelos objectos nos quais cairá o olhar de algumas das personagens, sobretudo a própria Lola, mas não só. Se uma personagem lê um jornal ou uma revista, muitas das vinhetas serão ocupadas pelos anúncios que ocupam essas mesmas páginas, muitas vezes apenas os logótipos das empresas. Quando Lola observa um zootrópio ou uma das sessões de cinema mudo, as imagens que se sucederiam nesses dispositivos ocupam faixas na página impressa que mimam, na sua disposição e formato, esses mesmos mecanismos. Poder-se-ia argumentar, até, que Penna está aqui a elaborar um olhar contrário àquele que Laura Mulvey teorizou como “olhar masculino” (male gaze), não apenas por fomentar a agência das personagens que vêem (não apenas Lola, como o homem sem nome), mas por desligá-lo de um olhar objectificador/sexualizante do desejo, buscando antes efeitos de uma espécie de “objectividade” que vai alterar a matéria do storytelling do livro. Não quer isto dizer que não seja possível interpenetrar muitos dos objectos “vistos” como sendo “objectos de desejo” (de Lola, do homem), quer de um ponto de vista quase literal quer mais metafóricos (o caso das máquinas cinéfilas, actuando até como sombra metatextual ou de mise en abime do próprio livro), e até mesmo como “pistas” da intriga, mas acima de tudo como parte integrante e constitutiva da textura discursiva de Sem dó.

A alteração da matéria visual opera ao nível, por exemplo, dos círculos concêntricos que se espalham nos cenários, como se se tratassem de pequenos símbolos extratextuais (recordem-se dos “flocos” em Blankets, de Craig Thompson), ou nas formas como as linhas vigorosas de negro sobre branco, dadas as opções de distância e ângulo dos desenhos em relação ao que se representa, e depois da composição, fazerem emergir padrões quase abstractos na página. Os múltiplos jogos com padrões de toda a espécie, correspondentes ou não a objectos no interior da diegese (as vinhetas mostrando a acção de passar a ferro tecidos padronizados são uma trouvaille incrível), adensam este trabalho visual. Uma das páginas, que mostra o momento do encontro entre Lola e o homem, joga com todos os objectos presentes – os chapéus respectivos e suas fitas, as linhas dos eléctricos nas ruas de alcatrão, o prédio e sua esquina, a porta aberta para o interior escuro, etc. para criar um conjunto de áreas e linhas brancas e pretas numa complexa e elegante coreografia. Luli Penna deixa que muitos dos momentos se abandonem em olhares deambulantes e acções estendidas no próprio prazer visual do seu movimento e progressão, jamais os subsumindo a uma “velocidade do recontar”.

Apesar de haver uma organização relativamente linear no que diz respeito ao tempo, isso não significa que a narrativa seja somente apresentada numa dimensão temporal. O livro abre com uma imagem ocupando toda a página de uma caixa de lata de biscoitos Duchen e um rádio a pilhas. A página seguinte revela a caixa aberta, com as mãos de alguém remexendo nos objectos guardados nela. A seguir, inicia-se a acção. O leitor é surpreendido com transições entre vinhetas que apresentam ora elipses pouco claras, ou experimentações visuais que necessitam de um trabalho significativo de inferência da parte do leitor. De quando em vez, regressamos à manipulação dos objectos da caixa, enquanto o rádio vai emitindo notícias de trânsito ou as canções que, reconhecendo-as, preenchem um imaginário muito concentrado da MPB da década de 1970. É dessa forma que entenderemos, talvez apenas em retrospectiva, que os objectos guardados nessa caixa correspondem aos souvenirs da aventura amorosa de Lola naquela década recuada, lançando assim toda a narrativa central num nível hipodiegético, integrado, “dentro” da narrativa “do presente”, do acto de rememoração que acompanha a manipulação. Cada objecto, inclusive a própria caixa, têm papéis na narrativa. Isso tornar-se-á claro no fecho do livro, quando esse “presente” se revela e oferece uma (possível) resolução da mesma novela. Não deixa de ser significativo que um dos primeiros objectos manipulados seja um brinquedo de madeira de criança (um kendama, desconhecemos o termo em português), assinalando como que “o fim da inocência”, ao passo que o último é uma caixa de anel, apontando para a resolução, jamais explícita verbalmente, e visualmente ambivalente, já que a assinatura da autora – uma figuração rápida, naïf, simples e muito contrastada, que recorda toda uma família de autores, de Megan Kelso a Dileydi Florez -, permite que se possam confundir algumas personagens e decidir múltiplas leituras.

E há outros momentos complicados, que tornam Sem dó um livro merecedor de leituras múltiplas e analíticas, que desdobrem as formas como a autora explorou a composição e organização da sua matéria narrativa, como na página mostrando o passeio num jardim, em que algumas vinhetas são ocupadas por postais carimbados. Qual o seu papel? São aquelas imagens no “presente da narrativa”, com as interferências gráficas dos selos e carimbos projecções do tempo “futuro” da rememoração? Tratar-se-ão de objectos tangíveis, testemunhados pelas personagens no passeio? Serão interjeições autorais, demonstrando parte dos documentos históricos que coleccionou, verificou e empregou para a fabricação da “sua” São Paulo histórica? Seria possível ler esta página como um exemplo complexo de metalepse na banda desenhada? Estas questões não merecem propriamente que sejam respondidas com uma solução inequívoca, mas antes que se fomente a sua interrogação criativa.


Parte da mimese com o cinema “mudo”, da época (o filme de Sedgwick, The Cameraman, com Buster Keaton, é citado textual/visualmente, e data de 1928, e a autora explica, em várias entrevistas, como a de Ramon Vitral, como usou um filme do realizador brasileiro Mário Peixoto), está presente na opção da autora em apresentar quase toda a narrativa sem recurso à matéria verbal “no presente”, isto é, sob a forma de balões de fala misturados nas vinhetas. Quando surge matéria verbal, é as mais das vezes parte da imagem (quando “lemos” anúncios, letreiros, notícias, cartazes de rua, montras, etc.); se se trata de diálogos, surgirá isolado, a letras brancas, numa vinheta a preto, tal qual as legendas do cinema mudo. Apenas no fecho, e em meras três frases, surgem balões, tal como nas tais páginas da manipulação da caixa, “desencaixando” então essas cenas de toda a outra narrativa “antiga”.

Há, quanto a nós, duas grandes conquistas efectivadas pela emergência das vozes feministas (não apenas “femininas”) na banda desenhada, operadas na década de 1970 acima de tudo, nos Estados Unidos e França. Em primeiro lugar, houve a conquista da recentralização da atenção e do olhar sobre o próprio corpo da mulher, um olhar autobiográfico que o desligava totalmente de idealizações tradicionais (virginal ou carnal, mãe ou amante, santa ou puta) para a tornar um efectivo e mutável corpo humano. Aline Kominsky e Claire Brétecher seriam as duas grandes percusoras dessa estratégia, e Marjane Satrapi – uma das influências-chave para que a ilustradora profissional Luli Penna fosse “arrastada” para o campo da banda desenhada – empregará idênticos instrumentos em Persepolis. Penna dispensa, de certa forma, essa exploração “à flor da pele”, mas não deixa de a tornar presente em Sem dó de modos oblíquos: a atenção para com os anúncios de moda feminina, os sonhos de Lola, os papéis “femininos” de bordar, servir, ser-se subserviente para com a família patriarcal, os favores e atenção do patrão para com ela, que adivinha outra linha possível de desenlace, etc. Essa atenção seria também influente em autores homens (veja-se Fabrice Neaud ou Marco Mendes), mas continuaria a fazer parte da tal écriture.

Em segundo lugar, temos a tematização dos desafios e lutas sociais das mulheres através da construção consciente de narrativas em torno precisamente dos papéis que as mulheres desenpenham na sociedade – sejam aqueles que lhes são impostos (a parte substancial de Sem dó, aliás aquela que é dirigida pelo próprio título) sejam as que de tornam o desejo de conquista (aqui metaforizado no movimento do cinema e no amor livre com o homem). Poder-se-ia argumentar, in extremis, que o trabalho de autoras que não exploram “questões femininas” é igualmente uma conquista do feminismo, já que na sua complexidade, diversidade e interseccionalidade, o ser-se livre para explorar qualquer tema ou género literário-visual é também fruto dessa conquista de liberdade. Daí a tal “irritação” em se identificar essa inscrição a qualquer momento, sem se perceber se essa é ou não uma opção livre e informada das autoras ou autores em questão. Dito isto, a verificação da sua presença, nas mais diversas formas, é igualmente importante, e é essa presença clara que nos leva a ir fazendo esta interpretação do projecto de Penna.
Nota final: agradecimentos à autora, pela oferta do seu livro.

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