20 de maio de 2018

Wonderstruck: o museu das maravilhas. Robert Selznick (Bertrand)


Perguntamo-nos se a publicação deste livro se deve a uma atenção para com a obra deste autor particularmente central na produção de livros cuja natureza se encontra nos interstícios e experimentação conjunta de várias disciplinas, que havia sido publicado em 2011, ou se terá antes a ver com uma esperança de que a sua versão cinematográfica, realizada por Todd Haynes e em exibição em Portugal este mesmo ano, possa suscitar interesse junto aos potenciais leitores. A resposta é, naturalmente, óbvia, até pela capa do livro (veja-se uma nota final), mas pelo menos isso torna-se garante da sua circulação entre o público português. (Mais) 

Como é a assinatura de Selznick, este livro apresenta-se sob duas formas concorrenciais, no pleno sentido da palavra: a imagem e o texto. Todavia, ao contrário de Hugo Cabret (o qual seria também adaptado por Scorsese), os textos e imagens não estão aqui (apenas, ou sempre) numa relação complementar mas apartadas até determinado ponto. Logo, se havíamos discutido que o livro anterior não se tratava de “literatura ilustrada”, essa natureza é ainda mais longínqua neste título. Contudo, mantêm-se muitos dos seus ingredientes conhecidos: personagens jovens, independentes e isolando-se numa aventura no interior de um vasto mundo, lançando relações complexas comas cronologias dos seus coadjuvantes, e envolvendo espaços que encerram outros espaços, interiores, fechados e, por isso mesmo, contendo segredos que depois revelam a sua importância no mundo maior da narrativa.


Wonderstruck conta duas histórias separadas. Temos a história de Rose Kincaid, uma menina que vive do outro lado das margens de Manhattan e sonha com ir visitar, se não mesmo visitar a cidade de Nova Iorque, por razões de um complexo novelo familiar. Esta narrativa tem lugar em 1927 e é contada somente através das imagens, como é típico do autor, sob a forma de desenho debuxados a grafite, monocromáticos, suaves e por vezes intrincados, num belíssimo trabalho de tramas, e ocupando spreads a sangrar. A segunda história, que na verdade é a que enquadra o livro, é a de Ben Wilson, passada em 1977. Ben é do Minnesotta, e também ele é levado numa viagem a Nova Iorque, espoletada por um complexo novelo familiar. Esta narrativa surge somente (com a excepção de uma imagem de lobos correndo, que corresponde à vida interior do rapaz) sob a forma de texto.

Compreenderão desde já os leitores que este “complexo novel familiar” enredará ambas as personagens num encontro, mesmo que não revelemos aqui como é que ambas as histórias se vêem a encaixar. Tudo isto de um modo paradoxalmente simples ou suave. Ambas as personagens são movidas por uma ânsia em encontrarem um espaço liberto das limitações que se lhes impõem, assim como uma busca pelo amor das figuras parentais, as quais assumem papéis variados, desde o afastado ao mítico, ao protector e doloroso. Todavia, o autor cria uma estrutura de paralelismos e modos especulares que os unem ao longo de ambas as narrativas, e não apenas nesses enquadramentos emocionais. Tanto Rose como Ben, ainda que de maneiras diferentes e por razões distintas, são surdos, e toda essa experiência humana e até mesmo a cultura que lhe está associada – isto é, não apenas formas de apreensão do mundo que são diferentes daquelas usualmente empregues na cultura hegemónica e normalizada, sublinhando a descriminação quase inconsciente do capacitismo/ableism, como também as produções de comunicação e expressão próprias – torna-se um tema explorado com cuidado nas narrativas.


Os paralelismos são criados pelas acções de ambas as personagens, em que uma explicação textual do que Ben faz se espelha na acção cumprida por Rose nos desenhos, ou uma realidade do primeiro tem um contraponto ideal na da segunda. Quando Ben fica preso na cabana onde vivera com a mãe, devido a uma tempestade, Rose está a ver um filme “mudo” (o autor sublinha como esse tipo de cinema permitia uma comunidade entre os surdos e os não-surdos, que o advento do som no cinema apartaria) onde decorre uma tempestade. Essa tempestade, depois real na linha temporal de Rose, é “unificada” com a de Ben pelas consequências que têm sobre ambas as personagens. Quando Ben, já em Nova Iorque, é violenta e subitamente assaltado, também Rose sofre um outro tipo de assalto, quiçá mais doloroso. Ambas as personagens visitam o Museu Americano de História Natural ao “mesmo tempo” na matéria folheada no livro, ainda que separados por décadas na cronologia real. Este Museu assumirá um papel preponderante na vida de ambos, em termos de imaginário, nas vidas profissionais, e até mesmo enquanto móbil das acções e estímulo ao seu encontro. A descoberta dos “segredos” do Museu e da razão do “livro dentro do livro”, um catálogo/guia de uma exposição sobre gabinetes de curiosidades precisamente intitulado Wonderstruck, é o nódulo da aliança que se forma acronologicamente entre Ben e Rose e, depois, já no interior do fluxo usual do tempo.


Mais ainda, todas as disciplinas, objectos ou “capítulos do saber” que o museu apresenta – meteoritos, dioramas de lobos, colecções de minerais e ossos, modelos miniaturizados de cidades inteiras, os planetários, a própria história do desenvolvimento do conceito de museu, etc. - constituem pequenos nós de mise en abîme dos elementos constituintes das vidas dos dois personagens. Wonderstruck exige, então, uma leitura dupla, aquela em busca da(s) narrativa(s) central(is) e sua costura, e aqueloutra em permanente identificação dos temas que despede e o faz expandir no eu campo de significado.

O livro é dividido em três partes, sendo a terceira aquela em que se unem as linhas múltiplas dos dois protagonistas. As histórias, nas outras duas partes, estão separadas entre a matéria textual e visual, se bem que neste caso presente, a história de Rose esteja pejada de informações transmitidas textualmente e que devem ser lidas para a sua compreensão: recados e notas e postais escritos, legendas de cinema, títulos de jornais e revistas, letreiros e sinais, pelo que não se pode considerar que estejamos perante “partes” de “imagens sem texto”, demonstrando assim como a colonização do verbal sobre o visual é bem mais naturalizada do que se desejaria.

Tendo em conta, todavia, que a comunicação escrita, a curiosidade intelectual e cultural, são factor principal das acções das buscas respectivas de Ben e Rose e, também, do seu encontro feliz, o seu papel é salvífico. E enquanto livro dedicado a um público mais jovem, o modo como constrói inteligentemente e com respeito as personagens, revelando as suas vontades, anseios e desejos próprios mesmo quando em conflito ou negociação entre si, é um contributo inestimável para a compreensão da natureza humana.

Nota sobre a capa: na esmagadora maioria dos projectos das editoras comerciais, o design das capas de livros não prima pela qualidade, inventabilidade ou bom gosto, preferindo-se efeitos totalmente de superficie. A subsunção de certos romances às capas fotográficas ou, quando há essa possibilidade, às cinematográficas é uma fraqueza, mas que no limite tem a sua justificação pelo domínio comercial da atracção e publicidade gerida pelas versões de cinema. Certíssimo. Mas num projecto em que é a dimensão visual o âmago da sua importância, é quase inadmissível que se apresente um capa que cita o filme e não se procure uma elegância em torno dessa mesma matéria, usando as capas intensamente buriladas do autor.

Nota sobre a tradução: Não tendo algo de especial a dizer sobre a tradução em si, perfeitamente vertida, fica a surpresa de algumas decisões a nível editorial, muito em voga em certos sectores (e nalguns dos quais nós próprios nos envolvemos profissionalmente), de manter no idioma original certas passagens, expressões, ou até mesmo, no caso presente o título. Isto ocorre sobretudo como inglês, já que duvidamos que o mesmo ocorresse se o texto fosse traduzido do polaco, do mandarim ou do italiano. Neste livro, a letra da canção citada de David Bowie mantém-se em inglês no texto corrido, assim como um sem-número de material textual de alguns desenhos. No segundo caso, compreende-se a dificuldade que seria gerir o re-desenho das capas de jornais ou dos cartazes de cinema, mas não se percebe qual o problema em traduzir a canção. Afinal de contas, traduz-se poesia, ela pede para ser traduzida, como escreve Walter Benjamin. O mesmo se diria do título. Temos um sub-título que, timidamente, tenta ocupar esse espaço, mas em toda a estratégia visual, comunicacional e mesmo textual, é o termo em inglês que sobressai. Haverá assim limitações na aceitabilidade da imaginação em português? É uma questão de soar melhor” em inglês, é mais cool? É uma escolha comercial, para haver coincidência com o filme? Qualquer que seja a resposta, é uma perda para o nosso próprio vocabulário. A opção brasileira de o publicar como Sem fôlego é discutível, mas é no idioma dos leitores.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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