8 de junho de 2018

Pequena Bedeteca do Saber, dois títulos (Gradiva)



A Gradiva dá início a esta colecção em português, mas numa ordem diferente da original. O mesmo ocorreu, por exemplo, com a Biblioteca de Babel, a famosa colecção organizada por Franco Maria Ricci e Jorge Luís Borges para a italiana FMR e a espanhola Siruela, e publicada entre nós pela Vega. Aproveitando o projecto editorial original da Lombard, coordenado e pensado na sua génese por David Vandermeulen, autor do magistral Fritz Haber, e contribuindo dessa maneira para a criação de materiais originais e conduzidos por uma ideia central – no caso, a veiculação de conteúdos complexos sobre os mais diversos assuntos científicos, sociais, históricos e culturais da humanidade através de pequenas súmulas em banda desenhada ensaísta (voltaremos a este termo) –, a Gradiva lança mãos de dois temas mais centrais e, sem dúvida, mais caros ao seu próprio catálogo de primeira água. Esperemos, todavia, que não apenas haja uma continuidade deste projecto, pois existem alguns volumes excelentes em termos formais (volumes com os desenhos de Fabrice Neaud, de Alfred, de Jean Solé), tal como temas – organizados em sete categorias – 


fascinantes e tratados de maneira holística (a história da tatuagem, da prostituição, do conflito israelo-palestiniano, da génese dos escritos bíblicos), como não haja um desvirtuamento ou aproveitamento “local” de criar intervenções na colecção (como ocorreu na Biblioteca de Babel portuguesa). (Mais) 

São livrinhos de bolso, e capa brochada, sempre com menos de 90 páginas, estes dois primeiros entre as 60 e as 80, a cores, com uma materialidade excelente para serem lidas de um fôlego, mas também permitindo que se tornem, depois, um guia rápido para as questões colocadas.

Não estando numerados, ajudarão a não criar uma certa dependência psicológica em fazer a colecção, uma actividade muitas vezes mecânica que nada serve a leitura, mas antes permitirão aquisições mais específicas, interessada se integradas num mais complexo processo de aprendizagem. E, acima de tudo, é preciso compreender que estando criados de forma a permitiram uma abordagem relativamente simplificada ou acessível, não são de forma alguma discursos nem simplistas nem perdendo as complexidades que conteriam. Não são livros dirigidos a crianças, ou pelo menos, somente, mas antes a todo um público. Por isso, daquilo que nos é dado a entender, quase sempre os argumentistas são pessoas especializadas nos campos respectivos, entre investigadores, professores ou autores desse mesmo campo, estando nas mãos dos autores de banda desenhada ou a colaboração com eles ou a tarefa da transformação desse discurso.

A utilização acima do termo “ensaístico” deve-se ao facto de que não estamos perante uma mera adaptação de um tema a um veículo narrativo, que criasse uma “história” para, como se costuma dizer, “dourar a pílula” e até torná-la mais fácil de engolir. Existirão estratégias comunicacionais que tornam a veiculação destes saberes mais directa, mas não significa que se apresente uma organização clássica narrativa. Quando falámos da colecção Sociorama, ou nos livros de Squarzoni, apontámos a existência de “empregos” possíveis para a banda desenhada, que cada vez menos deve ser vista como “género” (um erro de categorização de palmatória, mas ainda muito comum) mas antes como “meio”, “veículo” ou “linguagem”. No caso desta Bedeteca há mesmo uma argumentação ensaística, deixando em aberto muitas das questões secundárias ou irresolúveis de cada tema, convidando os leitores a pensar por si mesmos e lançar mãos de leituras e pesquisas consequentes. Não se tratam de guias ou compêndios de papinha feita, mas interpelações que demonstram que estes temas são complexos e, não havendo respostas finais, há que dar início a colocar as perguntas.

Os Direitos do Homem. François De Smet e Thierry Bouüaert.
Neste volume, é a própria Declaração que se nos dirige, antropomorfizada sob a forma de uma voz narrando directamente. Poder-se-ia imaginar que seria uma voz “desencarnada”, mas é mesmo isso que não sucede. Eventualmente poderíamos ter aqui tão-somente os artigos apresentados em 1948 com belas ilustrações utópicas mostrando a felicidade da humanidade sob o seu signo, mas este é um palácio cheio de fracturas, e elas estão bem expostas.

Bem pelo contrário, a Declaração mostra o seu “corpo”, explicando-nos quem são os seus pais, como cada um dos seus artigos foi discutido em minúcia e controvérsia, que consequências e limitações eles tiveram ou têm, quais os seus antecessores legais, as razões imediatas da sua emergência urgente e quais as associações que lança a toda a história global da humanidade. Ao mesmo tempo, os autores fomentam uma “personalidade” na Declaração que não só nos vai acusando dos nossos pecados sociais perpetrados uns contra os outros, como também revela que não basta a sua existência bem-pensante para, num passe de mágica, resolver os problemas que nós próprios infligimos.

Por isso os desenhos de Bouüaert, cultor de linhas nervosas, encavalitadas mas de uma expressividade dramática significativa, se apresentam em composições simples, quase de afirmação, mas numa paleta cromática reduzida a ocres, verdes e rubros opacos, constituindo uma espécie de gravidade.

François De Smet não se coloca a ele mesmo no livro, mas compreendemos ser a sua personalidade e experiência profissional, trabalhando com os direitos dos migrantes, questão cada vez mais premente, complexa e fácil de ser arrastada para posicionamentos simplistas (de parte a parte), que está na linha da frente quando se sublinha sobretudo o trabalho que ainda está por fazer. “Os direitos do homem são uma construção contínua”, está escrito. Este livro ajuda a que o ímpeto se mantenha.

O Universo. Hubert Reeves e Daniel Casanave.
Este é um livro de Hubert Reeves. Isto parece ser uma tautologia, mas os conhecedores das obras mais famosas e populares deste astrofísico compreenderão de imediato o que isso quer dizer. Este livrinho não é, de forma alguma, um pequeno guia sobre a história do universo tal como é compreendido aos olhos da física contemporânea, nem tampouco uma descrição das escalas possíveis da sua análise e estudo (da sopa de quarks à radição cósmica de fundo), se bem que esses elementos também estejam integrados aqui. É um dos “poemas” típicos de Reeves. Não se pode dizer com precisão que O Universo apresente uma estrutura da complexa mistura de pensamento científico de Reeves com a filosofia, já que os “argumentos” principais aqui são reduzidos a uma ou duas imagens. É antes uma celebração, criando metáforas incessantes entre a beleza deste cosmos e outras realidades mais compreensíveis à escala humana, de um quarteto de cordas de Schubert a uma tela de Vermeer, empregando um poema de laivos bíblicos de Antonine Maillet ou cenas de Citizen Kane...

O próprio Reeves surge nas páginas como uma espécie de alegre guia do leitor por este universo em várias escalas, e Daniel Casanave proporciona formas simplificadas e claras, traduzindo de modo directo e descomplicado as palavras e símiles do astrofísico. Trata-se mais de uma espécie de pequena sebenta de introdução a uma atitude perante o universo do que propriamente uma explicação com matéria concreta. O livro abre, por exemplo, com a antiquíssima ideia da “Música das esferas”, para depois termos o Reeves-personagem a declarar “Existe uma relação mais profunda entre nós e as estrelas.../É o que vou tentar explicar nesta banda desenhada.” Todavia, não surgirá aqui o famoso discurso de Carl Sagan na série Cosmos - “O nitrogénio no nosso ADN, o cálcio nos nossos dentes... Somos feitos da matéria das estrelas” - mas antes um passeio por impressões, que muitas vezes cai em tautologias algo mancas (“[a arte] não precisa de explicação: basta-se a si mesma”, mas cria um substrato, digamos, suficiente, para estar, de novo, aberto a colocar estas questões.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os volumes. Imagens fornecidas pela editora. 

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