A propósito de Chantier Interdit auPublic, explicámos o contexto de produção e publicação dos
títulos desta colecção, Sociorama, que, dizendo-o de modo
simplista, são adaptações de trabalhos de cariz académico na
disciplina da sociologia. Daí que se compreenda que as capas revelem
não somente o nome dos autores artísticos que lavraram estas bandas
desenhadas, mas igualmente o dos investigadores, de forma a que se
sublinhe a precisão e instrumentos dessa pesquisa original. Alguns
desses trabalhos foram já publicados em volume, outros existem ainda
sob a forma de teses universitárias. Seja como for, são resultado
da instrumentação teórica, prática e desenvolvida no campo,
em ambos os sentidos, disciplinar e de contacto com o terreno, desse
saber das ciências humanas, que, de uma maneira ou outra, reflecte
uma verdade de experiência das pessoas com quem contacta. Sendo os
objectivos gerais da sociologia a compreensão do indivíduo e dos
grupos que possa completar inseridos na tessitura social e externa,
não se trata tão-somente de entrevistas a esses mesmos indivíduos,
mas à criação de toda uma contextualização global que tanto
integra como destaca a experiência que se está focando. (Mais)
No entanto, se os trabalhos originais
serão acompanhados de todo um instrumentário que consolida as
observações, premissas e conclusões dos sociólogos, a adaptação
à banda desenhada, pelo menos na natureza dos objectivos desta
colecção, procuram que se apresentem essas mesmas ideias sob uma
forma mais narrativa, fluida, atreita à experiência das personagens
que observamos. Não estamos no campo de autores de banda desenhada
que procurem estratégias visuais e de composição que possam
integrar outros modos de apresentação de dados, como estatísticas,
gráficos, dados, isto é, uma forma ensaística, se assim se pode
dizer. Fora introduções com dados, pequenos pontos de partida
contextualizadores, enquadramentos, a narrativa segue-se ao rés da
experiência de uma personagem, que servirá de foco a tudo o que se
discute e aprende. Em alguns casos, trata-se de um trabalho de
investigação social que segue a técnica chamada de “observação
participante”, em que o investigador partilha o mais próximo
possível a integração profissional, vivencial e social do problema
que pretende observar, como são os casos de Marlène Benquet em
Encaisser! Enquête en immersion dans la grande distribuition e
de Muriel Mille em Produire.
Tendo um formato de livro, quase de
bolso, as estratégias de composição são com efeito simplificadas.
Mesmo que tenhamos autores com uma larga experiência artística,
muito expressiva e própria, como é o caso de Anne Simon, de
Encaisser!, os autores escolhem aqui usualmente uma assinatura
gráfica muito célere, simplificada, quase de esboço ou
apontamento, com três a quatro vinhetas, tornando então a leitura
rápida, efectiva, de uma grande legibilidade, aumentando o grau de
popularização destes discursos.
Os quatro volumes a que tivemos agora
acesso tratam dos temas que passamos a descrever sumariamente. O
livro de Simon segue os passos de Benquet enquanto empregada de caixa
registadora de um grande rede de supermercados (chama-se “Batax”,
mas o símbolo leva a adivinhar tratar-se do Carrefour), e o seu
consequente envolvimento com a organização desse mesmo trabalho e
os sindicatos. O que se aprende é a estratificação brutal das
hierarquias e estratégias de distribuição de trabalho,
responsabilidades e informação, confirmando-se a noção de que o
capitalismo sabe muito bem “dividir para conquistar”. A própria
relação com alguns dos sindicatos revela jogos de bastidores
político-económicos que tornam impossíveis aos trabalhadores
individuais quaisquer mecanismos de defesa e justiça social. Cria-se
um ambiente opressivo e quase inumano nessas relações de trabalho,
apesar da imagem externa ser sempre a de uma grande família e uma
gestão equilibrada e justa para todos. Basta pensar na forma como,
nos dias de hoje, parece que a palavra “empregado” desapareceu
para dar lugar a “colaborador”, criando uma ilusão de que o
assalariado tem um maior peso nos processos de decisão e organização
do trabalho (não tem).
Baseando-se no estudo Chirurgiens au
féminin, de Emmanuelle Zolesio, Sous la blouse, adaptação
de Marion Mousse, bebe de toda uma série de entrevistas, observações
directas, estudos de estatísticas para fazer um retrato sociológico
da distribuição de mulheres nos serviços de cirurgia. Um desenho
inicial é muito claro, ao demonstrar que existem cerca de 60% de
candidatas às profissões médicas, percentagens que vão diminuindo
à medida que subimos nas hierarquias hospitalares até chegarmos a
somente 1% de mulheres como chefes de serviço... Se esses números
não são suficientes e não mostram todas as dimensões, é certo,
já dizem muito em si mesmo. Mousse transforma isso numa sucessão de
pequenos episódios, experiências, rememorações, encaixadas umas
nas outras, e sempre enquadradas com comentários imbecis dos colegas
homens em torno, preocupados com as “dificuldades” que as suas
colegas mulheres podem ter face a certa situação, ou pura e
simplesmente subsumindo qualquer conversa a oportunidades de assédios
sexuais. Se bem que parece que o ambiente das cirurgias convida a uma
linguagem e humor desabridos, como uma forma de protecção contra o
que se experiencia e faz nas salas de operações (serrar ossos,
abrir corpos, bombear sangue, mexer em órgãos, etc.), há sempre
uma distribuição de poderes que mal se oculta nessa mesma
linguagem. No entanto, a organização geral do livro centra-se na
figura de uma estudante, Julie, e o seu percurso desde a entrada como
“externa” até à sua primeira conquista profissional, trazendo
como recompensa final a esperança de que as mulheres possam
conquistar, com efeito, o resultado dos seus esforços profissionais,
sem mais.
La plus belle la série é a
única investigação que ainda não foi publicada como tal,
existindo somente sob a forma de tese (Produire, de la fiction à
la chaîne), de Muriel Mille. Adaptado por Émile Harel e
Paul-André Landes (argumentista), seguimos as tarefas de uma jovem
argumentista a trabalhar para uma telenovela
de longa duração, Plus jolie la vie.
Mais do que organizar os elementos narrativos e pessoais das
personagens desse mesmo programa, o livro vai desdobrando-nos à
frente toda a cadeia produtiva, envolvendo questões burocráticas,
financeiras, mesclando tensões criativas e imperativos económicos e
profissionais. Ao mesmo tempo é um estudo do impacto e significação
cultural deste tipo de produções televisivas, que vive numa
permanente fronteira entre o que é legítimo e digno culturalmente,
o ofensivo e pornográfico (sobretudo quando confrontados com os
reality shows, de que se vêm forçadas a aproveitar
elementos), os desejos voyeurísticos do “grande público” e as
discussões éticas que poderão surgir pelo confronto quer com a
recepção teórica destes programas quer dos próprios envolvidos na
sua criação (que podem, bastas vezes, sempre pessoas com uma sólida
formação intelectual superior, mas vão embater neste
embrutecimento). São curiosos os diálogos entre a argumentista, que
defende a “Marselha” da telenovela, tornada um “cenário no
qual todos se possam identificar” e na qual “ancorados na
realidade, estamos super atentos aos temas sociais”, e um
jornalista freelance que procura desmontar esse “realismo”
como uma manipulação. Particularmente pesado em termos de diálogos
e interacções entre as personagens, e não apagando o humor e
prazeres recônditos que estas telenovelas podem suscitar em qualquer
um, há uma sábia construção das personagens e destas vidas. A
intercalação entre os processos de escrita e as cenas finais,
inclusive as hipotéticas e corrigidas, havendo mesmo momentos em que
se mistura a “realidade” das personagens e uma “ficção
projectada”, torna-se uma das estratégias mais curiosas e quase
metatextuais do livro.
La banlieue du 20 heures,
adaptado por Helkarava, é, a título pessoal, e restringindo-nos ao
seu tópico, o mais interessante dos trabalhos. Traduzível como “Os
subúrbios do noticiário das 8”, o estudo de Jérôme Berthaut
foca a maneira como os meios de comunicação social constroem uma
ideia, conceptualização e foco de certos bairros sociais como
“problemáticos”. Se a acusação de “Fake news” está hoje
na ordem do dia em sectores da direita, a verdade é que a suposta
liberdade do jornalismo sempre foi balizada, senão encurtada, por
interesses exteriores à verdade ontológica que deveriam perseguir.
Baseado sobretudo num trabalho de observação da redacção da
France 2, e em reportagens em torno de bairros como Moleenbeek, em
Bruxelas, testemunhamos como é menos importante o captar as vozes
genuínas, múltiplas e matizadas das populações locais do que
posicionamentos políticos específicos que venham confirmar desde
logo os “lugares-comuns” que se esperavam e não apenas confirmam
como reforçam os discursos dos poderes em torno. Ao mesmo tempo
vamos compreendo os jogos de cintura e de hierarquias internas a uma
redacção, que espelham mais as pressões dos interesses económicos
e políticos dos accionistas do que uma suposta ética profissional.
Os momentos mais dolorosos expressam-se no retrato dos jornalistas
mais conscienciosos, sempre negados nos seus projectos mais
democráticos, e depois acusados de “suscetíveis” por ficarem
aborrecidos por essas mesmas negações (uma realidade que, no
momento em que compreendemos entrosar-se na identidade feminina da
jornalista, ganha ainda outros contornos, e aquela palavra um
instrumento de opressão, mesmo quando proferido por outra mulher).
Estes modos de divulgação científica
poderão nutrir-se de contornos por vezes demasiado simplificadores,
subsumindo tudo a estratégias naturalizantes e narrativas para
transmitir as realidades sociais complexas que haviam sido estudadas.
No entanto, não se pode negar que é esse mesmo objectivo
popularizador da colecção e, assim, são projectos que conseguem
atingi-los. Dirigidos a um público bastante alargado, este é um dos
“usos” ou “traduções” em que a banda desenhada se afigura,
na verdade, como particularmente feliz.
Nota final: livros recebidos da
editora, a quem agrademos.
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