Em boa-hora é relançado este título
junto ao público português, numa nova tradução (e novo título),
e num formato melhorado, ou pelo menos, individualizado, do que a
anterior edição da própria Devir através da colecção Série
Ouro com distribuição do Correio da Manhã, há mais de dez
anos. Todavia, precisamente por termos feito uma leitura, que esperamos ainda pertinente, da
mesma obra então, a esse texto remetemos, deixando aqui
considerações de outra natureza.
O objecto é em si tem outras
diferenças substanciais. Materialmente falando, tem uma capa mais
atraente e que se prevê ser um projecto gráfico sustentado na nova
colecção de mangá da editora, com trabalhos de maior maturidade e
para um público mais generalista. Poder-se-ia ter imaginado numa
encadernação mais robusta, próxima da colecção Écritures, da
Casterman (com a qual partilha o mesmíssimo formato), mas haverá
razões substanciais para esta opção. Em termos de conteúdo,
porém, a escolha da Devir é bastante feliz. Em primeiro lugar, não
temos aqui uma edição que reconstitua as páginas numa ordem de
leitura ocidental e em que cada vinheta se mantém idêntica mas numa
posição relativa da prancha invertida, e muito menos as antigas
edições “flipped”, em que pura e simplesmente se apresentava
uma inversão de toda a prancha. É uma edição tal qual a original
japonesa, permitindo esta magia visual tão própria da banda
desenhada e passível de ser desfrutada pelos leitores não-japoneses
(de resto, prática da casa). (Mais)
Em segundo lugar, a presente edição
reúne todas as narrativas originais da colecção e algumas peças
adicionais. Para além de todas as histórias que partilham o mesmo
protagonista, o “sarariman” que observa poeticamente as pequenas
trivialidades que povoam as paisagens urbanas que atravessa,
acrescentam-se outras histórias, com personagens bem distintas,
justificando a divisão do livro em “partes”, inclusive uma
galeria de imagens soltas. É algo discutível se os termos dessas
histórias são os mesmos, istoé, se a sua natureza coincide com a
filosofia das histórias do “homem que caminha”. Uma dessas
histórias, “Continuação do sonho”, remete para um desencontro
emocional de um casal, “Noite de luar” para uma surpreendente e
súbita fantasia de uma viagem no tempo, e “Uma ilusão de Tóquio”
para uma pequena novela passional. Não deixa de enriquecer a edição,
sem dúvida, mas destoam em relação à calmia e “nadas” que são
as outras peças.
Seja como for, reunindo, portanto,
trabalhos de 1992, e depois de 2003 e 2015, não deixarão de servir
igualmente de sinal das distintas abordagens gráficas do autor. A
sua linha límpida e clássica da primeira fase desta pequena saga,
sob a influência maximal de Moebius, algumas das aguarelas coloridas
(mas aqui publicadas a preto-e-branco), e uma linha carregada, de
alto contraste, menos elegante, que remete a algumas das suas obras
de hard boiled... Um percurso que os leitores deste espaço
sabem ter sido abordado ao longo das nossas leituras da sua obra
publicada em francês, inclusive a monografia que lhe é dedicada por
Peeters.
Como se sabe dessas e outras leituras,
uma das dimensões sociais curiosas da obra de Taniguchi na sua
recepção internacional é a maneira como vem complicar a palavra
mangá, sobretudo quando esta é revestida de expectativas
redutoras em termos de estilo, género, qualidade literária,
densidade emocional e intelectual. Taniguchi não é o inventor de um
novo tom na banda desenhada japonesa (recordemos toda a geração dos
anos 1960 dos gekiga e da Garo, que foi decisiva e
quase esmagadora na influência na primeira fase de trabalho de
Taniguchi), mas a sua projecção internacional (sobretudo francesa,
mas não só) veio desarrumar as categorias entretanto formadas. Toda
a octanagem e aventura de um Akira, de um Dragon Ball,
de um Naruto, evola-se por completo nas páginas de O homem
que passeia, para se revelar uma experiência tanto terra-a-terra
quanto transcendental na sua universalidade. É possível que a
colecção da Devir deseje precisamente mostrar essa outra dimensão
(agora sonhemos com edições de Hagio, Suzuki, Abe, Tsuge...).
Naturalmente, é necessário ter
atenção a uma matização substancial da elevação e isolamento de
Taniguchi nesta narrativa. Afinal de contas, no ano em que a
Casterman lançou L'homme qui marche, 1992, também lançou
Gon, de Masashi Tanaka, e de certa forma a aposta em Taniguchi
devia-se ao facto de ter uma estrutura narrativa, formal e conceptual
muito próxima das categorias entretanto existentes da banda
desenhada franco-belga contemporânea de cariz “literário”. Seja
como for, é a qualidade reflexiva do protagonista que agirá sobre o
espírito dos próprios leitores, e que o tornou uma estrela nesse
diálogo e, sem dúvida alguma, um factor importante de abrir
caminhos, que depois se expandiriam das mais diferentes maneiras.
Gostaríamos de deixar uma pequena nota
sobre a tradução do título, e admitindo desde já que poderá
haver aqui um erro tremendo da nossa parte, dado o conhecimento
deficitário da língua japonesa. Uma tradução não é jamais uma
transposição exacta de uma língua para outra, mas uma intepretação
que permite sempre um pequeno intervalo de variações pertinentes.
Logo, as diferenças que se encontrarão maioritariamente entre a
versão de 2005 e a presente não são significativas, sendo a
tradução presente fluida e justíssima (seria bom sabermos se foi
directamente do japonês, ou de outra língua intermédia). Todavia,
o título suscita algumas dúvidas. O título original em japonês
emprega o verbo aruku, que significa literalmente “caminhar” [Nota: vejam nos comentários a mensagem do/a tradutor/a],
apontando sobretudo para o acto físico do movimento pelo espaço, e
implicando toda uma série de preposições necessárias conforme a
direcção, a circunstância, e a inclusão ou exclusão de
informações na frase. A ideia de “passear”, em português,
inclui logo uma segunda dimensão de propósito (ou até vagueza de
propósito), de disposição mental, de tempo livre, de “utilidade”
até. Ora se se poderá discutir que, com efeito, estes pequenos
contos de Taniguchi querem sublinhar a flânerie do
protagonista (suspendamos as últimas três histórias, as quais,
como dissemos, são de um tom díspar), e os resultados dos encontros
fortuitos do momento e a sua capacidade reflexiva e introspectiva,
seria importante deixar o verbo que descreve a acção dele
“esvaziado”, desprovido de uma interpretação mais decisiva, um
pouco da maneira despojada do zen... é a acção que deve levar ao
encontro do propósito, e não colocar nele logo um propósito (o
qual poderá ser ou não cumprido). Na nossa óptica, Taniguchi criou
um “homem que caminha” (como a famosa estátua de Giacometti, e o
seu desequilíbrio permanente, tal qual cantado por Laurie Anderson,
como havíamos mencionado no texto anterior), e se há um “passeio”
que depois emerge, é fruto desse encontro, e não de uma busca. Como
reza Matsuo Bashō,
“Este caminho, não o toma ninguém, só o ocaso outonal.”
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
8 comentários:
Decidi não adquirir esta versão (pelo menos, enquanto o preço não diminuir), por já ter a versão da coleção Ouro.
E uma das dúvidas/questões relativas à aquisição, prende-se com a questão da leitura ser igual ao original japonês, (direita para a esquerda) e se isso traz realmente algum acrescento à obra em si. Na análise é referido que sim, mas continuo com a essa dúvida....
Caro pco69,
Compreendo perfeitamente o problema de optar por comprar "um mesmo" livro, quando há tanta escolha a fazer. A meu ver, esta edição tem mais material, o que agradará a completistas, mas como disse, algum desse material não é, com precisão, da mesma "saga" (e até "filosofia") do "Homem que caminha". Quanto à edição seguir o padrão e organização original japonesas, a meu ver é uma vantagem, já que há distribuições das imagens, direcções das linhas, e organizações visuais-narrativas que foram pensadas de uma forma e que as transformações/adaptações ocidentais poderão distorcer. No entanto, dependerá também da capacidade do leitor em ler "nessa direcção", já que exige, ao princípio, algum esforço... Não estou a chamar nomes a ninguém, atenção!! Lembro-me das primeiras vezes em que fui confrontado com este tipo de edição, há quase vinte anos... isto é, edições traduzidas em línguas que entendia, e me convidava à leitura propriamente dita (e não simplesmente a "olhar" para edições japoneses, que tinha mas não compreendia, fora "os bonecos"). Foi difícil, mas agora faz parte dos meus hábitos.
Espero que tome a decisão que lhe for acertada, mas também posso aconselhar a visitar uma das Bedetecas (Lisboa, Amadora, Beja) e ler esta edição, antes dessa decisão.
Cumprimentos,
Pedro Moura
Daqui um ano na Bedeteca de Lisboa quando o livro vier em Depósito Legal...
bof!
Também tenho a edição do Correio da Manhã, mas compraria esta, sendo uma edição mais cuidada, se não fosse tão cara.
Caro HLM,
De facto, o meu papel é escrever sobre os livros em si, e sou um privilegiado, por vezes, ao recebê-los. Mas com efeito, tendo em conta a materialidade da publicação, o preço pode ser um pouco esticado...
«...prende-se com a questão da leitura ser igual ao original japonês, (direita para a esquerda) e se isso traz realmente algum acrescento à obra em si. Na análise é referido que sim, mas continuo com a essa dúvida....»
Acrescento não traz. Se fosse o contrário é que perderia, como muito bem explicou o Pedro Moura. É uma questão de educação visual. Experimente ver «A Grande Onda» de Hokusai como um ocidental e perderá tudo.
Boa tarde,
Fui eu quem traduziu esta obra e foi diretamente do japonês.
Quanto ao título, o verbo "aruku" quer dizer "andar" e não "caminhar".
Caminhar é uma palavra mais bonita para o mesmo verbo, mas não é a sua tradução literal. No entanto, se fossemos traduzir o título original à letra "aruku hito" significa "a pessoa que anda", o que deixa a poética toda desta Bd de lado.
Por outro lado, depois de sugerir a minha tradução, ela tem de ser aceite pelo revisor e pelo editor, e depois debatida entre nós, mas finalmente o editor toma a decisão final. Não estou com isto a dizer que não está a meu gosto, mas antes que teve de haver um debate antes de se chegar a um consenso.
Contudo, tento sempre passar as intenções do autor mas também fazer alguma localização para os leitores que não saibam nada sobre a cultura japonesa.
Por fim, as histórias extras no final, foram bem difíceis de traduzir pois a obra original tinha uma qualidade desgraçada, cujas letras em cima de desenhos extremamente detalhados foram uma epopeia desvendar!
Dito isto, sou grande fã de Bd e tenho uma grande coleção em casa, pelo que estou bastante contente em poder traduzir japonês e Bd ao mesmo tempo :)
Car@ Hachiko Madoka (peço desculpa por não saber qual o pronome correcto a utilizar),
Fico muito agradecido pelo contacto e os esclarecimentos, ficando ainda mais feliz por termos finalmente acesso à possibilidade de vermos traduções directas sem recurso a línguas terceiras.
Agradeço profundamente também por partilhar os seus conhecimentos levando às correcções em relação ao que escrevi, e assinalarei no texto precisamente para esta sua nota.
Todavia, manteria em termos gerais, ou poético-impressionistas, se preferir, a minha leitura do acto de "caminhar" como mais consciente do que "andar", demonstrando assim a minha preferência pelo título anterior. Dito isto, de pouco importa, uma vez que o que interessa é a sua existência, circulação e qualidade, inegável. E todos estes comentários são sempre feitos com o máximo respeito para com o seu trabalho de tradução tal como para com o esforço de edição da Devir.
Quanto às histórias finais, os meus comentários tinham mais a ver com o facto de estarem algo desligadas da atitude contemplativa das histórias "centrais". Que são bem-vindas enquanto acesso à obra do autor, sem dúvida, só que me parecem algo deslocadas do propósito das histórias do "homem que passeia"...
Muito obrigado! Tenho em meu poder a nova edição em português do "NonNonBa", estou desejoso de o ler.
Pedro Moura
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