“Escolher
e isolar constituintes do real, de lhes dar, através de uma
estrutura, um sentido, um novo dia.” Esta é umas “confissões de
arte” do realizador Bernet, o modo como ele explicita a sua função
e visão dos filmes que faz e quer ainda fazer. Independentemente do
género, da inscrição temporal, das circunstancialidades de
produção do filme, o cerne está, portanto, nestes “constituintes
do real”. Paiment accepté é uma espécie de ensaio sobre
que elementos se preservam mesmo no meio da perda de controle de
todos os meios de produção. (Mais)
A
sinopse leva-nos a 2058, numa sociedade não muito distinta da nossa.
O protagonista é Charles Bernet, um experiente e galardoado
realizador de filmes com alguma recepção crítica mas não de
entretenimento, o que torna difícil, ainda, a angariação de fundos
para a produção de novos projectos. Aquilo que ocupa o seu tempo
presente é um argumento que vem alimentando há décadas,
tornando-se quase uma obsessão e necessidade, se bem que nunca se
expresse dessa forma melodramática.
Na
verdade, as grandes paixões estão quase ausentes no tratamento do
livro. Sim, o amor está lá, quer pela arte quer sexual. Discussões
sucedem-se, impaciência, inconstância, incompreensões,
rivalidades, orgulhos, soberba. Mas há como que uma distância
afectiva das personagens operada pelo autor que nos impede de lhes
entrar nas mentes e vidas, jamais se formando mecanismos de empatia.
Pela proximidade com Charles, elevar-se-á um qualquer grau de
simpatia, mas nunca se consubstanciará por um amor à personagem. A
crise emocional vai aumentando, em primeiro lugar pela conflituosa
amizade com o seu produtor, Donald Junior, as rivalidadezinhas e
maldadezinhas domésticas contra a sua mulher, Jeanne, a relação de
trabalho mutante e dolorosa com o seu assistente de realização, com
todos os envolvidos nas filmagens, e depois atingindo o grande grau
de viragem com um violento acidente de viação, que o deixa quase
paralisado e encafuado num hospital onde tem de fazer fisioterapia.
Durante esse afastamento da sociedade, Charles perde o controlo da
realização do filme, o que o empurra ainda mais para uma contínua
angústia, que o vira contra todos. Aos poucos, e graças a uma
amizade de circunstância com um outro doente do hospital, e através
de vários jogos de Scrabble que acabam por se tornar manipulações
da sua percepção, Charles regressa à vida.
Descrito
desta forma, não apenas se revela a estrutura linear e descomplicada
da intriga, como parece tornar-se toda a matéria sem grumos ou
obstáculos na sua construção. Mas Bienvenu apresenta estas formas
triviais para nelas agregar modos mais matizados de transmitir a
essência das relações humanas. Se nos mantiveremos na esfera do
cinema, pensemos como Jean-Luc Godard não
considera essa linguagem como reprodução da realidade, mas
antes como seu esquecimento;
porém, um esquecimento que é registado e que, enquanto
registo, permitirá então um possível retorno ao real. O livro abre
com a última cena do último filme realizado por Bernet. Vamos
aprendendo alguns títulos de projectos anteriores, mas não teremos
jamais a certeza de qual o registo do seu cinema. Diríamos, todavia,
que talvez seja algo que ronde precisamente os textos de uma
constelação tão diversa quanto Truffaut, Cassavetes, Panahi,
Reygadas... Ou seja, algo que pode beber dos mais variados quadrantes
de género mas pretende sempre colocar um realismo cru e ao
rés-do-chão da existência das suas personagens.
O novo
projecto de Charles Bernet, no entanto, é bem diferente. Parece
revestir-se do género de ficção científica, mas no fundo esse é
apenas o enquadramento que serve para continuar a explorar as
questões humanas que estão no coração da sua carreira. Se nos for
permitida uma comparação manca (todas o são, mas servem o
propósito momentâneo), seria como reduzir o 2001 de Kubrick
ou o Possession de Zulawski a filmes de “ficção
científica” e “terror”, respectivamente, esquecendo todas as
outras suas dimensões ontológicas, que são bem mais marcantes que
esses descritivos. Integradas numa narrativa que se passa no futuro,
e com uma quantidade assinalável de objectos fictícios (por agora:
carros flutuantes, comboios magnéticos, andróides domésticos,
comunicação em holograma, modas futuristas), essa dimensão
futurista surge mais como condimento do que como elemento
necessariamente estruturador da narrativa. Talvez as tecnologias
associadas à produção do cinema neste futuro hipotético sejam
mais curiosas: algoritmos que ditam como deve ser o rosto e voz de
uma personagem, e que calculam a adequação de um determinado actor;
estudos prévios de expectativas de mercado, que apenas aumentam a
produção do lado dos produtores, roubando, digamos assim, as
intuições e liberdade dos criadores (nada que não ocorra já nos
dias que correm em determinados sectores comerciais e industriais do
cinema, mas que atingem em Paiment níveis quase caricatos).
Mas colocando isso à parte, Paiement accepté é a
novela do coração de Charles refazendo-se e tranquilizando-se de
novo com o mundo que o rodeia, que continuará a rodar sem ele, e e
ele mesmo sem o mundo, se necessário for.
Em termos
de figuração, Bienvenu, jovem autor, está no seguimento das
escolas clássicas do realismo naturalista da banda desenhada
francesa, de um Cuvelier ou Gillon, mas com as novas inflexões de um
desenho mais descontraído, ainda que não menos exacto. Até pela
temática de um futuro próximo, no qual o conforto material não se
coaduna com a angústia humana contínua, diríamos que há algo
próximo a Blutch ou P. Peeters. Um dos comentários repetidos desta
sua obra tem a ver com a sua cor, que é matizada, variada mas baça,
como se se tratasse de uma patina plastificada em torno das suas
personagens, e que poderá mostrar mais um elemento expectável do
futuro (revelando, pelo menos em parte, a sua larga experiência
enquanto produtor e realizador de animação, muitos dos projectos com Kevin Manach, inclusive para a
Marvel, com os filmes do Ant-Man).
O
autor usa, para quase todas as personagens, rostos relativamente
conhecidos de “modelos”. Uma das personagens no hospital é
Jean-Luc Fromental, editor da colecção onde este livro se integra.
Há um breve cameo de um actor parecido fisicamente com Depardieu. E
Donald, o produtor de Bernet, é Donald Trump. Na verdade, esta
última personagem surge bastas vezes, e chegamos mesmo a saber
partes da sua biografia, havendo elementos suficientes para
imaginarmos ser um filho do Trump real. Por um lado, poder-se-ia
imaginar que estas inclusões poderiam servir ora de homenagem, jogo,
brincadeira, ora mesmo como comentário a situações reais actuais.
Mas por outro, essas dimensões não assumem força suficiente para
se tornarem pertinentes na interpretação da obra, a nosso ver, e
acabam por ser somente um efeito de superfície.
Não
sendo uma narrativa melodramática nem épica, nem tampouco uma
vincada reflexão do futuro, Paiement
accepté
é um romance concentrado nas pequenas paixões do seu protagonista,
e num percurso simples de redenção perante os demais, mas onde o
ganhador principal é ele mesmo.
Nota
final: agradecimentos a F.D., pelo empréstimo do livro; imagens colhidas da internet.
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