Imaginemos. Daqui a quarenta, cinquenta
anos, olharemos para trás e assinalar-se-á o “Dia do Holocausto
do Mediterrâneo”. Talvez a palavra seja outra, uma vez que se
pretendem exclusividades mesmo na hora do sofrimento, da morte e da
barbárie humana, lançando a ideia de escândalo pela comparação,
excusando-se o mesmo peso de responsabilidades e invertendo os
factores de vitimização. Far-se-ão monumentos, documentários,
filmes ficcionados, obras de literatura, palestras, discussões,
sobre uma das maiores catástrofes (esperemos) do início do século
XXI, já que também temos direito aos nossos próprios horrores. E
então fantasiaremos... “Se tivesse vivido na altura....”, “Se
pudesse, tinha feito...”, “Como é que não se agiu a tempo?”.
E sentir-nos-emos melhor, e continuaremos as nossas vidas. (Mais)
Tzvetan Todorov, em Les abus de la
mémoire, fala de como “sacralizar a memória é uma outra
maneira de a tornar estéril”, de certa forma retomando as mesmas
discussões que Pierre Nora tinha tido sobre os “Lugares de
memória”, contra uma certa ideia de monumentalização. À medida
que os acontecimentos se desenrolam, e passam somente a serem vistos
como estatísticas, situações macro-nacionais distantes, sintoma
dos “problemas” do multiculturalismo, a situação torna-se cada
vez mais ingerível. Não é uma questão de naturalizar, explicar ou
enquadrar toda esta complexidade. Muito menos a de comparar de
barato, que, mais uma vez com Todorov, “não significa explicar...
e menos ainda desculpar”. É mesmo impossível fazê-lo. É
tão-somente ter em mente que há um constante preço humano e que a
herança da sua responsabilidade é de todos nós.
Clube Mediterrâneo é um gesto
de urgência, de resposta imediata no momento em que se presta.
Estruturado em torno de um poema em partes de João Pedro Mésseder,
e acompanhado por uma construção compositiva e visual por Ana
Biscaia (desenhos) e Joana Monteiro (intervenções tipográficas e
design), este pequeno livro poderá ser visto numa certa acepção de
panfleto, já que o seu propósito não é somente ser lido e
apreciado, mas instigar uma acção. Como Que luz estarias a ler?,
é um gesto de resposta política e ética.
O poema de Mésseder não emprega uma
única gota de emotivismo, de sentimentos delicodoces, ou de uma
superioridade moral, muito menos de invectiva pedagógica. Como é
apanágio da sua escrita poética, expressa-se uma espécie de
lirismo combativo, que não apenas procura re-encantar o mundo, como
libertar nos seus leitores uma possibilidade de acção individual.
Nessa dimensão, não apenas como autor de “literatura
infanto-juvenil”, Mésseder é um agente de acção textual.
Dividindo-se em descrições cruas e oníricas das paisagens
atravessadas, com evocações a figuras supra-humanas e
intertextualidades específicas, dirigindo-se tanto aos leitores
não-migrantes como aos migrantes, nossos “irmãos”, o poema,
apesar de curto e até lacónico, estende-numa retórica diversa.
O livro vai-se desdobrando numa
sucessão de spreads, com as imagens de Ana Biscaia
espraiando-se nas três cores eleitas (um laranja vivo, de fogo
súbito, um vermelho ocre, como se fosse barro vivo, e a cinza da
grafite). Entre retratos estáticos e icónicos, corpos em movimento
de fuga ou paisagens esquálidas, as figuras vacilam por entre as
manchas úteis do campo visual de quando em vez partilhando esse
espaço com o texto impresso nas três línguas (e as três cores) e,
aqui e ali, com esparsas intervenções tipográficas com recurso a
filetes e vinhetas tipográficos assim como a carimbos de madeira (o
muro). O texto muda de tipo de letra, dispõe-se de formas
diferentes, surgem por vezes números que ora têm um valor diegético
ora estruturam a divisão do poema. Não havendo propriamente uma
sistematização das relações, obrigarão ao olho uma navegação
tão estocástica como perigosa, quem sabe em empatia (mas nunca
compreensão) com aquelas intentadas por estas gentes. Tira-se
partido da dupla página ou do folhear do livro para dar conta dos
movimentos migratórios, das divisões e apartamentos, mas igualmente
das possibilidades de encontros e diálogos.
Uma das estrofes mais efectivas reza
assim: “Sejam bem-vindos, irmãos,/ aos nossos velhos campos,/ aos
nossos velhos comboios,/ aos nossos velhos muros.” De uma forma
nada paradoxal, Mésseder ilumina a obscuridade da resposta europeia,
esclarece a ambivalência. Não é apenas em todo o programa poético,
imbuído de ironia (o próprio título, que na tradução inglesa se
expressa de forma mais directa: “Club Med”),
que se explicitam as respostas problemáticas, morosas, insuficientes
e conturbadas. As palavras “campos”, “comboios” e “muros”
poderiam surgir num seu papel positivo e apelativo, desdobrando-se
nos seus sentidos de liberdade, mobilidade e protecção do outro,
mas carregam antes o peso da história e do crime, assumindo antes os
papéis de controlo, confinamento e extermínio. De certa forma, é
quase uma tradução poética daquele famoso dictum de Walter
Benjamin: “Não há documento da civilização que não seja ao
mesmo tempo documento da barbárie.”
Que papel documental poderá ser aquele
ansiado por Clube Mediterrâneo? Voltemos a Todorov. Escreveu
ele: “A vida perdeu conta a morte, mas a memória ganha no seu
combate contra o nada (le néant). Mas não estaremos ainda a
tempo de vencer contra a morte?
Nota final: agradecimentos aos
criadores, pela oferta do livro, assim como pelas imagens cedidas.
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