10 de julho de 2017

Clube Mediterrâneo. J. P. Mésseder, A. Biscaia., J. Monteiro (Editora dos Tipos/Xerefé)

Imaginemos. Daqui a quarenta, cinquenta anos, olharemos para trás e assinalar-se-á o “Dia do Holocausto do Mediterrâneo”. Talvez a palavra seja outra, uma vez que se pretendem exclusividades mesmo na hora do sofrimento, da morte e da barbárie humana, lançando a ideia de escândalo pela comparação, excusando-se o mesmo peso de responsabilidades e invertendo os factores de vitimização. Far-se-ão monumentos, documentários, filmes ficcionados, obras de literatura, palestras, discussões, sobre uma das maiores catástrofes (esperemos) do início do século XXI, já que também temos direito aos nossos próprios horrores. E então fantasiaremos... “Se tivesse vivido na altura....”, “Se pudesse, tinha feito...”, “Como é que não se agiu a tempo?”. E sentir-nos-emos melhor, e continuaremos as nossas vidas. (Mais) 

Tzvetan Todorov, em Les abus de la mémoire, fala de como “sacralizar a memória é uma outra maneira de a tornar estéril”, de certa forma retomando as mesmas discussões que Pierre Nora tinha tido sobre os “Lugares de memória”, contra uma certa ideia de monumentalização. À medida que os acontecimentos se desenrolam, e passam somente a serem vistos como estatísticas, situações macro-nacionais distantes, sintoma dos “problemas” do multiculturalismo, a situação torna-se cada vez mais ingerível. Não é uma questão de naturalizar, explicar ou enquadrar toda esta complexidade. Muito menos a de comparar de barato, que, mais uma vez com Todorov, “não significa explicar... e menos ainda desculpar”. É mesmo impossível fazê-lo. É tão-somente ter em mente que há um constante preço humano e que a herança da sua responsabilidade é de todos nós.

Clube Mediterrâneo é um gesto de urgência, de resposta imediata no momento em que se presta. Estruturado em torno de um poema em partes de João Pedro Mésseder, e acompanhado por uma construção compositiva e visual por Ana Biscaia (desenhos) e Joana Monteiro (intervenções tipográficas e design), este pequeno livro poderá ser visto numa certa acepção de panfleto, já que o seu propósito não é somente ser lido e apreciado, mas instigar uma acção. Como Que luz estarias a ler?, é um gesto de resposta política e ética.


O poema de Mésseder não emprega uma única gota de emotivismo, de sentimentos delicodoces, ou de uma superioridade moral, muito menos de invectiva pedagógica. Como é apanágio da sua escrita poética, expressa-se uma espécie de lirismo combativo, que não apenas procura re-encantar o mundo, como libertar nos seus leitores uma possibilidade de acção individual. Nessa dimensão, não apenas como autor de “literatura infanto-juvenil”, Mésseder é um agente de acção textual. Dividindo-se em descrições cruas e oníricas das paisagens atravessadas, com evocações a figuras supra-humanas e intertextualidades específicas, dirigindo-se tanto aos leitores não-migrantes como aos migrantes, nossos “irmãos”, o poema, apesar de curto e até lacónico, estende-numa retórica diversa.

O livro vai-se desdobrando numa sucessão de spreads, com as imagens de Ana Biscaia espraiando-se nas três cores eleitas (um laranja vivo, de fogo súbito, um vermelho ocre, como se fosse barro vivo, e a cinza da grafite). Entre retratos estáticos e icónicos, corpos em movimento de fuga ou paisagens esquálidas, as figuras vacilam por entre as manchas úteis do campo visual de quando em vez partilhando esse espaço com o texto impresso nas três línguas (e as três cores) e, aqui e ali, com esparsas intervenções tipográficas com recurso a filetes e vinhetas tipográficos assim como a carimbos de madeira (o muro). O texto muda de tipo de letra, dispõe-se de formas diferentes, surgem por vezes números que ora têm um valor diegético ora estruturam a divisão do poema. Não havendo propriamente uma sistematização das relações, obrigarão ao olho uma navegação tão estocástica como perigosa, quem sabe em empatia (mas nunca compreensão) com aquelas intentadas por estas gentes. Tira-se partido da dupla página ou do folhear do livro para dar conta dos movimentos migratórios, das divisões e apartamentos, mas igualmente das possibilidades de encontros e diálogos.


Uma das estrofes mais efectivas reza assim: “Sejam bem-vindos, irmãos,/ aos nossos velhos campos,/ aos nossos velhos comboios,/ aos nossos velhos muros.” De uma forma nada paradoxal, Mésseder ilumina a obscuridade da resposta europeia, esclarece a ambivalência. Não é apenas em todo o programa poético, imbuído de ironia (o próprio título, que na tradução inglesa se expressa de forma mais directa: “Club Med”), que se explicitam as respostas problemáticas, morosas, insuficientes e conturbadas. As palavras “campos”, “comboios” e “muros” poderiam surgir num seu papel positivo e apelativo, desdobrando-se nos seus sentidos de liberdade, mobilidade e protecção do outro, mas carregam antes o peso da história e do crime, assumindo antes os papéis de controlo, confinamento e extermínio. De certa forma, é quase uma tradução poética daquele famoso dictum de Walter Benjamin: “Não há documento da civilização que não seja ao mesmo tempo documento da barbárie.”

Que papel documental poderá ser aquele ansiado por Clube Mediterrâneo? Voltemos a Todorov. Escreveu ele: “A vida perdeu conta a morte, mas a memória ganha no seu combate contra o nada (le néant). Mas não estaremos ainda a tempo de vencer contra a morte?
Nota final: agradecimentos aos criadores, pela oferta do livro, assim como pelas imagens cedidas.  

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