Por várias ocasiões, falámos aqui
dos territórios movediços e ambivalentes da autobiografia, a
auto-ficção, a auto-fantasia, e outros descritivos que tanto
assinalam como ofuscam o acto de recontar a sua própria vida sob uma
forma qualquer artística, seja a literária, a cinematográfica, a
teatral, as das artes visuais ou a da banda desenhada. Cada acto, na
verdade, tem sempre os seus próprios contornos, pequenas
redistribuições dos elementos expectáveis ou familiares, cada
gesto as suas próprias contribuições únicas e aproveitamentos de
semelhanças com outros textos. E, assim, ao pensarmos em
constelações variadas que abarquem Miné Okubo, Justin Green, Aline
Kominsky, Guido Buzzelli, David B., Emmanuel Guibert e as suas
fontes, Ana Cortesão, Marco Mendes, Francisco Sousa Lobo, vamos
encontrando uma mancha tão informe quanto expansiva quanto ainda
complexa e numa mutação constante. Que pensar do último projecto
do autor finlandês Marko Turunen? (Mais)
Os leitores deste espaço, e do próprio
Turunen, claro está, saberão como fomos acompanhando dentro da
medida do possível o trajecto deste autor ao longo dos anos, desde
as antologias e zines, passando pelo imenso La morte rôde ici
ao projecto sobre OVNIs, e saberão a maneira como ele explora a
auto-fantasia ao colocar a sua vida, nos seus episódios quotidianos
mais domésticos e triviais, sob a roupagem estilística de uma
figuração da banda desenhada que se apropria dos géneros mais
mainstream possíveis: os super-heróis, a banda desenhada da
Disney, personagens famosas de desenhos animados, clichés e mascotes
comerciais, etc. Lembrar-se-ão dos vários projectos em que ele se
representava a si mesmo como um pequeno “Alien”, e em que esse
estilo de desenho servia um propósito detourné, e aplicado a
narrativas diegeticamente simples, mas cuja mescla desempacotava
novos sentidos.
A origem produtiva de
Vies de Marko Turunen encontra-se numa curiosa estratégia de
auto-invenção ou de desdobramento pela absorção do outro.
Turunen, lançado por mero acaso, pôs-se à procura de outros
cidadãos seus homónimos e foi descobrindo, pelo menos, as suas
profissões, senão um ou outro detalhe dessas biografias distintas.
Utilizando esses elementos, amalgamou-os numa só personagem, chamada
Marko Turunen, que actua como protagonista deste livro, como se
houvesse um centro de experiência que acumulasse aqueles descritivos
reais. Assim, temos um Marko Turunen que, do pé para a mão, muda de
profissão como quem muda de roupa interior diariamente: capitão de
navio, vendedor de animais, jogador de futebol, de golfe, treinador
de judo, guitarrista, director de recursos humanos, concessionário
de automóveis, agente imobiliário, webmaster, capitão de
uma nave espacial, chef, piloto de ralis aéreos, etc. Este
desdobramento de funções profissionais leva a que a narrativa
proceda por breves trechos, episódios muito curtos, por vezes quase
reduzidos a uma prancha ou um spread, mais ou menos
coordenados por cores (vivas, diversas), e por personagens
secundárias recorrentes. Mas ao mesmo tempo, pela concentração num
protagonista, há uma subsunção de todas estas “vidas” a uma
vida real – sem revelar muito da intimidade, entrar no biografismo
barato, ou sequer entrando no segredo autoral, bastará reler com
atenção os livros anteriores, para compreendermos qual o fio que
liga estas “ficções” advindas dos “outros” Markos Turunen”
à vida real, ou pelo menos, já autobiografada na banda desenhada
pelo autor, dele mesmo.
Há ainda um outro filtro
que organiza a narrativa geral e, ainda que surja num momento
avançado, informará toda a extensão do livro. Turunen cita ou
adapta ou reorganiza a história de Job para colocar a “sua”
própria vida (?), ou a deste seu avatar, num mesmo mecanismo de
perda e redenção. Vemos Deus e o Adversário combinando a conhecida
aposta, seguida da queda e miséria do protagonista, em que perde
tudo, quer a sua fortuna material, quer sobretudo a sua família,
corporizada na mulher Amaï (que nas obras anteriores tinha
igualmente uma configuração diferente). No entanto, no momento da
redenção expectável de Job, que é elevado aos olhos de Deus,
Marko recusa-se a essa nova fortuna, preferindo manter o rumo da sua
solidão e sofrimento, procurando reconstruir a sua identidade pelos
seus próprios meios, por mais patéticos e falhados que eles sejam.
Alguns leitores
lembrar-se-ão também de uma breve história de Harvey Pekar em que
este reflecte a existência de outras pessoas com o mesmo nome na sua
cidade (ou estado, não nos recordamos), buscando os seus contactos
na lista telefónica. Turunen aproxima-se desse gesto, mas
transforma-o em componentes da sua estranha prática de mistura entre
ficção de género e de narrativas quotidianas. O procedimento é
feito então por uma estratégia de colagem ou mosaico, que se
reflecte nos saltos narrativos, nas mudanças de unidades espaciais,
mas igualmente ao nível gráfico e material. O livro, oblongo (e
materialmente lindíssimo, já que tem as páginas tintadas de rosa
nos lados, e uma capa cartonada verde de uma textura muito
agradável), apresenta as pranchas de forma horizontal, mas de quando
em vez há como que uma espécie de separador com um desenho-pintura
feito somente a cores, possivelmente aguarelas, muito vivo e
expressivo, que mostra como que uma pose titular do protagonista,
numa qualquer cena espectacular, épica mesmo, que não corresponde
necessariamente a um dos episódios narrativos. Se se pode dividir a
narrativa interna numa série de episódios, sendo o de “África”
o maior de todos, há mesmo partes claríssimas, como um último
trecho de banda desenhada, aparentemente cómica, desenhada por Tea
Tauriainen, e uma parte em prosa (em duas colunas textuais) com
algumas spot illustrations a linha preta (o autor assinala no
fim outros agradecimentos e colaborações pontuais). Essas partes
correspondem a novas “etapas”, uma vez que a parte desenhada por
Turunen corresponde à vida do seu Marko Turunen personagem-de-bd,
que no fim se transforma na figura de uma espécie de super-herói, o
Fantasma Colonial (claramente uma paródia do Fantasma de Lee Falk),
cujas aventuras breves e espatafúrdias são desenhadas por
Tauriainen, numa espécie de intervalo cómico, com piadas de
situação breves. No fim desta etapa, uma segunda metamorfose
ocorre, introduzindo então a novela literária em prosa, intitulada
“Le Fantôme Colonial, La passion du combat”, que tem as suas
próprias características únicas e intrigantes: a descrição
exaustiva de uma partida de Monopólio até à morte é tão
cómica quanto cativante.
Se a parte de leão do
livro de banda desenhada se passa numa “África” fictícia e de
papelão, reutilizando toda uma série de clichés retirados de
alguma literatura ocidental de aventuras clássica – uma das
personagens secundárias, o Professor A, procura provar a sua teoria
de que E. R. Burroughs se baseara em locais, culturas e pessoas reais
para escrever a saga de Tarzan, o que permite uma catadupa de
jogos intertextuais com essas novelas fantásticas –, a segunda
parte desloca-se para a América do Sul, uma Amazónia não menos
fictícia. O livro, que é introduzido pelo Professor A, como se este
estivesse a falar da figura mítica do próprio Marko Turunen, é que
provoca o início em analepse, para acompanharmos a vida do
protagonista. A parte passada na Finlândia mostra toda uma série de
variações de personagens, retiradas das mais diversas fontes
conhecidas da cultura popular (Barbapapa, My Little Pony, bonecos da
Playmobil, brinquedos e jogos de computador), mas todas aquelas
associadas a “África” (insistimos nas aspas pois nenhum país ou
cultura é assinalado, mas antes um intervalo tão falso como mítico,
com canibais, palhotas e animais selvagens, e ritos também
“selvagens” face à “civilização ocidental”) mostram
figurações que bebem de todas aquelas inscrições problemáticas
de estereótipos simplificados. Uma análise mais cuidada seria
necessária para compreender se a utilização destas figuras é tão
problemática como as suas fontes originais, ou se existirá algum
grau de ironia e distância da parte de Turunen que permite
introduzir uma interpretação crítica, que se poderá adivinhar
pela forma como alguns elementos paratextuais “vendem” o próprio
livro, de forma titilante. Se por um lado, queremos acreditar nessa
dimensão, já que toda a figura do “Fantasma Colonial” parece
ser desmontada precisamente com esse intuito (as suas associações
aos fumetti giallo, a citação da figura da “Ameaça
Amarela” sob a forma de um vilão ocidental vestido de chinês e
chamado de “Encarnação demoníaca”), por outro, poderá haver
aqui tão-somente um uso superficial e prazenteiro dessas mesmas
figuras.
Se
acreditarmos que a função dos capítulos é impor um ritmo, uma
respiração, e ao mesmo tempo, e na banda desenhada de forma muito
específica, um efeito do legível, Vies é um objecto
que apresenta toda uma estrutura de sucessivas etapas e estruturas
encaixadas entre si. Não estando dividido de forma clara em
capítulos (aquilo a que se poderia chamar “folhas titulares”
são, as mais das vezes, falsas nessa função), e surgindo os
episódios somente pela forma narrativa interna, apenas a informação
externa de que algumas partes foram pré-publicadas, já para não
falar das tais partes identificadas acima, levariam a uma complicação
desse processo. Não estamos, claro está, perante o tipo de divisão
e divulgação usual da banda desenhada mais comercial: os comic
books norte-americanos ou os capítulos em revistas
franco-belgas, posterior e respectivamente publicados em trade
paperbacks ou álbuns. Ainda assim, é uma dimensão que não
deverá ser descurada numa outra análise. Seja como for, tudo isto
permite, desde logo, senão exige, um igualmente complexo jogo de
(re)leituras e interpretações.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro, e ao autor, pela facilitação dos contactos;
imagens colhidas na internet, inclusive pranchas originais por colorir.
Sem comentários:
Enviar um comentário