1 de julho de 2017

Vies de Marko Turunen. Marko Turunen, com Tea Tauriainen (Frémok)

Por várias ocasiões, falámos aqui dos territórios movediços e ambivalentes da autobiografia, a auto-ficção, a auto-fantasia, e outros descritivos que tanto assinalam como ofuscam o acto de recontar a sua própria vida sob uma forma qualquer artística, seja a literária, a cinematográfica, a teatral, as das artes visuais ou a da banda desenhada. Cada acto, na verdade, tem sempre os seus próprios contornos, pequenas redistribuições dos elementos expectáveis ou familiares, cada gesto as suas próprias contribuições únicas e aproveitamentos de semelhanças com outros textos. E, assim, ao pensarmos em constelações variadas que abarquem Miné Okubo, Justin Green, Aline Kominsky, Guido Buzzelli, David B., Emmanuel Guibert e as suas fontes, Ana Cortesão, Marco Mendes, Francisco Sousa Lobo, vamos encontrando uma mancha tão informe quanto expansiva quanto ainda complexa e numa mutação constante. Que pensar do último projecto do autor finlandês Marko Turunen? (Mais)

Os leitores deste espaço, e do próprio Turunen, claro está, saberão como fomos acompanhando dentro da medida do possível o trajecto deste autor ao longo dos anos, desde as antologias e zines, passando pelo imenso La morte rôde ici ao projecto sobre OVNIs, e saberão a maneira como ele explora a auto-fantasia ao colocar a sua vida, nos seus episódios quotidianos mais domésticos e triviais, sob a roupagem estilística de uma figuração da banda desenhada que se apropria dos géneros mais mainstream possíveis: os super-heróis, a banda desenhada da Disney, personagens famosas de desenhos animados, clichés e mascotes comerciais, etc. Lembrar-se-ão dos vários projectos em que ele se representava a si mesmo como um pequeno “Alien”, e em que esse estilo de desenho servia um propósito detourné, e aplicado a narrativas diegeticamente simples, mas cuja mescla desempacotava novos sentidos.

A origem produtiva de Vies de Marko Turunen encontra-se numa curiosa estratégia de auto-invenção ou de desdobramento pela absorção do outro. Turunen, lançado por mero acaso, pôs-se à procura de outros cidadãos seus homónimos e foi descobrindo, pelo menos, as suas profissões, senão um ou outro detalhe dessas biografias distintas. Utilizando esses elementos, amalgamou-os numa só personagem, chamada Marko Turunen, que actua como protagonista deste livro, como se houvesse um centro de experiência que acumulasse aqueles descritivos reais. Assim, temos um Marko Turunen que, do pé para a mão, muda de profissão como quem muda de roupa interior diariamente: capitão de navio, vendedor de animais, jogador de futebol, de golfe, treinador de judo, guitarrista, director de recursos humanos, concessionário de automóveis, agente imobiliário, webmaster, capitão de uma nave espacial, chef, piloto de ralis aéreos, etc. Este desdobramento de funções profissionais leva a que a narrativa proceda por breves trechos, episódios muito curtos, por vezes quase reduzidos a uma prancha ou um spread, mais ou menos coordenados por cores (vivas, diversas), e por personagens secundárias recorrentes. Mas ao mesmo tempo, pela concentração num protagonista, há uma subsunção de todas estas “vidas” a uma vida real – sem revelar muito da intimidade, entrar no biografismo barato, ou sequer entrando no segredo autoral, bastará reler com atenção os livros anteriores, para compreendermos qual o fio que liga estas “ficções” advindas dos “outros” Markos Turunen” à vida real, ou pelo menos, já autobiografada na banda desenhada pelo autor, dele mesmo.

Há ainda um outro filtro que organiza a narrativa geral e, ainda que surja num momento avançado, informará toda a extensão do livro. Turunen cita ou adapta ou reorganiza a história de Job para colocar a “sua” própria vida (?), ou a deste seu avatar, num mesmo mecanismo de perda e redenção. Vemos Deus e o Adversário combinando a conhecida aposta, seguida da queda e miséria do protagonista, em que perde tudo, quer a sua fortuna material, quer sobretudo a sua família, corporizada na mulher Amaï (que nas obras anteriores tinha igualmente uma configuração diferente). No entanto, no momento da redenção expectável de Job, que é elevado aos olhos de Deus, Marko recusa-se a essa nova fortuna, preferindo manter o rumo da sua solidão e sofrimento, procurando reconstruir a sua identidade pelos seus próprios meios, por mais patéticos e falhados que eles sejam.

Alguns leitores lembrar-se-ão também de uma breve história de Harvey Pekar em que este reflecte a existência de outras pessoas com o mesmo nome na sua cidade (ou estado, não nos recordamos), buscando os seus contactos na lista telefónica. Turunen aproxima-se desse gesto, mas transforma-o em componentes da sua estranha prática de mistura entre ficção de género e de narrativas quotidianas. O procedimento é feito então por uma estratégia de colagem ou mosaico, que se reflecte nos saltos narrativos, nas mudanças de unidades espaciais, mas igualmente ao nível gráfico e material. O livro, oblongo (e materialmente lindíssimo, já que tem as páginas tintadas de rosa nos lados, e uma capa cartonada verde de uma textura muito agradável), apresenta as pranchas de forma horizontal, mas de quando em vez há como que uma espécie de separador com um desenho-pintura feito somente a cores, possivelmente aguarelas, muito vivo e expressivo, que mostra como que uma pose titular do protagonista, numa qualquer cena espectacular, épica mesmo, que não corresponde necessariamente a um dos episódios narrativos. Se se pode dividir a narrativa interna numa série de episódios, sendo o de “África” o maior de todos, há mesmo partes claríssimas, como um último trecho de banda desenhada, aparentemente cómica, desenhada por Tea Tauriainen, e uma parte em prosa (em duas colunas textuais) com algumas spot illustrations a linha preta (o autor assinala no fim outros agradecimentos e colaborações pontuais). Essas partes correspondem a novas “etapas”, uma vez que a parte desenhada por Turunen corresponde à vida do seu Marko Turunen personagem-de-bd, que no fim se transforma na figura de uma espécie de super-herói, o Fantasma Colonial (claramente uma paródia do Fantasma de Lee Falk), cujas aventuras breves e espatafúrdias são desenhadas por Tauriainen, numa espécie de intervalo cómico, com piadas de situação breves. No fim desta etapa, uma segunda metamorfose ocorre, introduzindo então a novela literária em prosa, intitulada “Le Fantôme Colonial, La passion du combat”, que tem as suas próprias características únicas e intrigantes: a descrição exaustiva de uma partida de Monopólio até à morte é tão cómica quanto cativante.

Se a parte de leão do livro de banda desenhada se passa numa “África” fictícia e de papelão, reutilizando toda uma série de clichés retirados de alguma literatura ocidental de aventuras clássica – uma das personagens secundárias, o Professor A, procura provar a sua teoria de que E. R. Burroughs se baseara em locais, culturas e pessoas reais para escrever a saga de Tarzan, o que permite uma catadupa de jogos intertextuais com essas novelas fantásticas –, a segunda parte desloca-se para a América do Sul, uma Amazónia não menos fictícia. O livro, que é introduzido pelo Professor A, como se este estivesse a falar da figura mítica do próprio Marko Turunen, é que provoca o início em analepse, para acompanharmos a vida do protagonista. A parte passada na Finlândia mostra toda uma série de variações de personagens, retiradas das mais diversas fontes conhecidas da cultura popular (Barbapapa, My Little Pony, bonecos da Playmobil, brinquedos e jogos de computador), mas todas aquelas associadas a “África” (insistimos nas aspas pois nenhum país ou cultura é assinalado, mas antes um intervalo tão falso como mítico, com canibais, palhotas e animais selvagens, e ritos também “selvagens” face à “civilização ocidental”) mostram figurações que bebem de todas aquelas inscrições problemáticas de estereótipos simplificados. Uma análise mais cuidada seria necessária para compreender se a utilização destas figuras é tão problemática como as suas fontes originais, ou se existirá algum grau de ironia e distância da parte de Turunen que permite introduzir uma interpretação crítica, que se poderá adivinhar pela forma como alguns elementos paratextuais “vendem” o próprio livro, de forma titilante. Se por um lado, queremos acreditar nessa dimensão, já que toda a figura do “Fantasma Colonial” parece ser desmontada precisamente com esse intuito (as suas associações aos fumetti giallo, a citação da figura da “Ameaça Amarela” sob a forma de um vilão ocidental vestido de chinês e chamado de “Encarnação demoníaca”), por outro, poderá haver aqui tão-somente um uso superficial e prazenteiro dessas mesmas figuras.



Se acreditarmos que a função dos capítulos é impor um ritmo, uma respiração, e ao mesmo tempo, e na banda desenhada de forma muito específica, um efeito do legível, Vies é um objecto que apresenta toda uma estrutura de sucessivas etapas e estruturas encaixadas entre si. Não estando dividido de forma clara em capítulos (aquilo a que se poderia chamar “folhas titulares” são, as mais das vezes, falsas nessa função), e surgindo os episódios somente pela forma narrativa interna, apenas a informação externa de que algumas partes foram pré-publicadas, já para não falar das tais partes identificadas acima, levariam a uma complicação desse processo. Não estamos, claro está, perante o tipo de divisão e divulgação usual da banda desenhada mais comercial: os comic books norte-americanos ou os capítulos em revistas franco-belgas, posterior e respectivamente publicados em trade paperbacks ou álbuns. Ainda assim, é uma dimensão que não deverá ser descurada numa outra análise. Seja como for, tudo isto permite, desde logo, senão exige, um igualmente complexo jogo de (re)leituras e interpretações.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pela facilitação dos contactos; imagens colhidas na internet, inclusive pranchas originais por colorir.  

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